sexta-feira, 29 de abril de 2011

CASO GALILEU (2)

Sumário para o blogonauta 

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos) 
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. A caminho do modelo heliocêntrico
12. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
12A. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
13. O génio do "modelo experimental" (Galileu) - Descobertas
14. Caso Galileu (1)
15. Caso Galileu (2)
16. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
17. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
18. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
19. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
20. Modelo de Einstein
21. Modelo de Friedmann-Lemaître.





(continuação)

A condenação de 1616 veio interromper a intensa actividade de Galileu na defesa do copernicanismo. E não poderá dar-se como desculpa o agravamento da sua saúde (artrites e uma hérnia grave), pois continuou a dedicar-se às suas descobertas: tentou construir, utilizando os movimentos regulares dos satélites de Júpiter, uma espécie de relógio cósmico que permitiria melhorar a navegação marítima, e continuou o seus estudos sobre magnetismo.


Vou abordar duas questões:
- uma, pouco conhecida, sobre o atomismo e o potencial conflito com o dogma da transubstanciação, esse fenómeno miraculoso, para os católicos, que, pela "consagração eucarística", transforma "as espécies" do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo;
- a outra, a mais propalada até com exageros, a da condenação e abjuração de Galileu.

Antes, porém, um pouco de história da sua vida.
O ano 1621 foi um ano terrível, pois perdeu três amigos no conflito que o opunha à Inquisição: Cosme II, grão-duque da Toscana, substituído por um filho menor sem qualquer influência e poder, o papa Paulo VI, com quem se entrevistara várias vezes, e o cardeal Bellarmino, que o deixou sem uma testemunha fundamental de defesa do processo de 1616.
Apesar disso, o novo papa, Gregório XV, autorizou-o a escrever o Il Saggiatore. E Galileu aproveitou para fazer novos amigos em lugares de poder, nomeadamente os poderosos Barberini, um dos quais foi o futuro papa Urbano VIII, com quem mantinha excelentes relações de amizade, mas que se deterioraram, nos anos 30, também por culpa sua, como veremos.

Em 1624, Galileu foi a Roma e teve seis audiências com o papa Urbano VIII, durante as quais, além de algumas honrarias, lhe foi permitido escrever um livro sobre os dois modelos do Universo (ptolomaico e copernicano) com a condição de ser imparcial e se restringir a argumentos astronómicos e matemáticos. Foi ainda autorizado a ensinar o copernicanismo mas não a defendê-lo.  

ATOMISMO E EUCARISTIA
Tentarei fazer um resumo da posição complexa de Galileu sobre o atomismo e depois uma pequena análise das implicações do atomismo de então no mistério da Transubstanciação.

Atomismo (20*)
Pode falar-se de três etapas na evolução do pensamento de Galileu sobre o atomismo.
1. Começa, em 1612, com a publicação do Discorso intorno alle cose che stanno in su l'acqua o che in quella si muovono (Discurso sobre as coisa que estão debaixo da água e como nela se movem). Seguindo Arquimedes, apresenta como única causa do afundamento dos corpos na água a sua densidade e não, como afirmava Aristóteles, a forma do corpo e a resistência da água. Se a água não oferecia resistência à passagem de um corpo é porque era descontínua e, portanto, formada de partículas separadas: a água encontra-se num estado “atómico”. Isto levou Galileu a um raciocínio elaborado que envolvia a presença de átomos de calor (atomi di fuoco) libertados pela água (21*).
Nesta fase, o seu atomismo não passava de uma hipótese ad hoc para salvaguardar os princípios arquimédicos do movimento.
2. O aparecimento de três cometas, em 1618, que originou vários estudos, foi ocasião para um novo confronto com os jesuítas, especialmente com Orazio Grassi, que sobre o tema escreveu, em 1619, o Libra Astronomica ac Philosophica (texto original latino e na tradução espanhola), como resposta ao Discorso sulla comete (1619), no qual Galileu, para lá de outros aspectos astronómicos, criticava a posição de Aristóteles, segundo a qual os vapores na atmosfera eram produto da rotação da esfera celeste, afirmando que o movimento, enquanto tal, não produzia nenhuma mudança: só o atrito e a compressão são agentes do calor, que resulta da dissolução de um corpo em “fragmentos móveis subtilíssimos”, que, ao penetrarem no nosso corpo, produzem sensações diferentes conforme são muitos ou poucos, rápidos ou lentos. 
Às objecções de Grassi respondeu Galileu, com o Il Saggiatore (O Ensaiador) (1623), deslocando o debate para a o conceito de matéria, afirmando que partículas de diferentes grandeza, forma, quantidade, velocidade chocando contra os órgãos sensoriais, originam sensações diferentes. Neste debate, quase não aparece o termo átomo. No cap. 48 do Il Saggiatore, aparecem inúmeras vezes o termo minimi só (4 vezes) ou adjectivado: minimi ignei (4), particelle minime, corpicelli minimi, minimi del fuoco, minimi sottilissimi e volanti eminimi quanti. Estes minimi são a partícula mais pequena de qualquer substância natural, mas não são os constituintes últimos da matéria, já que podem ser ainda divididos, correspondendo esta decomposição última a uma transformação radical da matéria, qualquer coisa como o que hoje chamamos uma transmutação. E aí, sim, Galileu fala de átomo: essa “ultima ed altissima risoluzion in atomi realmente indivisibili”  (22*). Da citação que se lê nesta nota 22* parece concluir-se que os constituintes últimos da matéria são a luz e o calor. Aliás, já antes se referira, numa Carta a Pedro Dini (23.Março.1615), a “uma substância espiritualíssima, tenuíssima e velocíssima que se difunde pelo universo, penetra tudo, aquece, vivifica e torna fecundas todas as criaturas vivas”, incluindo o Sol, “do qual se expande uma imensa luz pelo universo, acompanhada pelo tal espírito calorífico”. 
3. Finalmente no Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (1638), o último dos seus livros, Galileu sugere que o horror ao vácuo por parte da natureza pode fornecer uma explicação para a resistência dos materiais: quando se funde um metal numa fornalha, as partículas do fogo reduzem-no a um estado líquido rompendo “os pequenos vácuos” (i minimi vacui) que existem no meio do metal, os quais ao arrefecer asseguram a resistência do metal (Primeira Jornada; 23*). 
Nesta fase, abandona a ideia de que a luz e o calor sejam os constituintes últimos da matéria e, embora continue convencido de que a matéria se pode decompor numa espécie de átomos indivisíveis, torna-se vago quanto à sua natureza.

Qualidades primárias e secundárias
Como referi, no Il Saggitore, Galileu elabora um novo conceito de matéria, distinguindo qualidades primárias e secundárias, o que visava eliminar as qualidades subjectivas e, assim, reduzir a natureza a termos quantitativos passíveis de tratamento matemático. Opondo-se a Aristóteles, Galileu alinha com o atomismo grego, distinguindo entre as “qualidades secundárias” (cores, odores, sabores, sons, etc.), que não passam de puri nomi (“puros nomes”) pois só têm existência nos sentidos (Capítulo XLVIII), e as “qualidades primárias” (forma, figura, número, contacto, movimento), que não podem ser eliminadas, pois participam necessariamente do conceito de corpo físico, existindo neste como elemento racional e quantitativo que pode ser tratado matematicamente.


Estas cores existem realmente ou só existem nos nossos sentidos ("puros nomes")?


Assim procura alcançar o seu grande objectivo, o da “matematização da natureza”, criticando o princípio de autoridade e aproveita para mandar mais uma bicada a Grassi: para filosofar, não é “necessário apoiar-se na opinião de algum célebre autor, como se a nossa mente, quando não se casasse com o discurso de um outro, devesse permanecer totalmente estéril e infecunda”. E acrescenta: “A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que continuamente nos está aberto diante dos olhos, mas não se pode entender se primeiro não se aprende a entender a língua e a conhecer os caracteres, com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, meios sem os quais é impossível entender humanamente qualquer palavra; sem estes vagueamos em vão por um escuro labirinto” (cap. VI).     
                                                                              
A hipótese atómica que valorizara para resolver um “caso particular” (o afundamento dos corpos na água), acabou, sob a pressão das críticas, associado a dois importantes problemas da filosofia: a natureza da percepção das qualidades secundárias e a posição epistemológica da matemática. Estando a natureza escrita em linguagem matemática, era função do filósofo ir para além das aparências, tal como se apresentam aos sentidos, para estudar as formas e relações dos constituintes últimos do Universo.
“O mundo galileiano, assim, torna-se um conjunto de entidades separadas. De que modo as partes se adaptam umas às outras? A adopção da hipótese atómica torna indispensável um outro passo: conceber a mente como um instrumento para seleccionar os impulsos singulares. Galileu não deu este passo nem parece que estivesse consciente da sua inevitabilidade. A distinção por ele efectuada abre todo um mundo de novos problemas: Qual é a diferença entre a experiência interior e o mundo exterior? Qual é a relação entre o sujeito e o objecto? Como podemos estar seguros dos dados sensoriais?” (24*).


Última Ceia Pintura Bizantino (1517


Atomismo e Transubstanciação (25*)
P. Redondi (26*), a partir de uma carta denunciadora encontrada nos arquivos do Santo Ofício, faz uma leitura inédita que põe em causa as posições clássicas sobre o Caso Galileu, mostrando que o verdadeiro motivo da sua condenação foram as implicações teológicas da sua teoria atómica. Porque as passagens bíblicas relativas ao movimento do Sol são poucas e pouco significativas, e, além disso, nenhum concílio decretara o geocentrismo como verdade de fé. Em qualquer dos casos, o heliocentrismo nunca podia alcançar a gravidade da violação de um dogma de fé, como é o da Transubstanciação.
Em 1624, depois da publicação do Il Saggiatore, foi feita uma denúncia anónima contra Galileu ao Santo Ofício. O anónimo era certamente o seu bem conhecido Orazio Grassi, não só porque tinha um G no canto da página, mas também porque escrevera, em 1626, sob o pseudónimo de Lothario Sarsi, o livro Ratio ponderum librae et simbellae (27*), no qual acusava o Il Saggiatore de defender uma heresia eucarística (Examen XLVIII, pp. 173ss): “Reduzir as qualidades sensíveis ao domínio da subjectividade conduz a um conflito aberto com o dogma da Eucaristia, porque, quando as substâncias do pão e do vinho são transubstanciadas no corpo e no sangue de Cristo, estão igualmente presentes neles as aparências exteriores: a cor, o cheiro, o sabor… Para Galileu, trata-se de «nomes», e, para os nomes, não há nenhuma necessidade da intervenção miraculosa de Deus” (28*)
As acusações feitas ao santo Ofício eram fundamentalmente duas (29*):
- o nominalismo de Ockham: as qualidades das coisas são apenas nomes, mas não existem na realidade: se vejo a cor vermelha num objecto, essa cor está na minha percepção e não no objecto;
- o atomismo de Demócrito: se os átomos ou minima constituem a substância do objecto, então as percepções sensíveis que são o produto dessas partículas, fazem também parte da substância do objecto.


Acusação de Grassi
As palavras de Jesus na instituição da Eucaristia são muito claras. “Isto é o meu corpo” aparece na primeira Carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 11,24) e nos três Evangelhos sinópticos (Mt 26,26; Mc 14,22; Lc 22,19) e sempre significou que a Eucaristia não é um símbolo do corpo do Senhor mas a sua presença real e substancial. Jesus não está presente porque “caiu” no pão e se “introduziu” nele” (empanação), mas está presente porque o pão se transformou  no seu corpo (transubstanciação).
Desde o século IV, se faz uma distinção clara entre o que se toca e se vê do pão (a “espécie (eucarística)”) e o que se crê que aconteceu na sua realidade profunda (“substância”). Dos longos debates, destacaram-se duas interpretações: a da transubstanciação de Tomás de Aquino e a da consubstanciação (presença simultânea das duas substâncias) de G. de Ockham, interpretação rejeitada pela Igreja (30*).
O IV Concílio de Latrão (1215) oficializou o termo Transubstanciação, isto é, conversão de uma substância noutra (31*). O concílio de Trento (1545 a 1563), depois de afirmar que na Eucaristia “estão contidos verdadeiramente, realmente e substancialmente (vere, realiter et substantialiter) o corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo”, explicita o que significa a Transubstanciação: “Se alguém disser que no santíssimo sacramento da Eucaristia permanece, com o corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, a substância do pão e do vinho e negar esta maravilhosa e singular conversão de toda a substância do pão no corpo e de toda a substância do vinho no sangue, embora permanecendo somente a espécie do pão e do vinho, conversão que a Igreja católica com termo apropriadíssimo chama transubstanciação, seja anátema” (32*).
Este Cânone é a chave da questão, pois ensina que:
- o pão eucarístico se converte realmente no corpo do Senhor;
- os “acidentes” ou “espécies” são sinais da presença do corpo e do sangue de Cristo de modo que esse corpo e esse sangue estão presente apenas sob a forma dessas espécies.
É certo que Grassi não acusa propriamente Galileu. Apenas diz que da sua teoria se “podia realmente deduzir” (recte deducitur) que ele negava a realidade da espécie eucarística. Contudo, Galileu nunca se preocupara com a Eucaristia e até considerou o argumento de Grassi como apenas um pequeno “escrúpulo” (33*) a que não deu especial importância. Ele não afirmara que as espécies sacramentais não existem realmente, mas apenas que as sensações, enquanto sensações, estão unicamente naquele que recebe as sensações. E esta é uma questão que pertence ao âmbito científico, enquanto a transubstanciação pertence ao âmbito da fé. Foi, por isso, certamente, que Galileu não foi condenado. Quem analisou a denúncia percebeu que as considerações de Galileu se colocavam no plano científico e não no plano metafísico e muito menos teológico.

PERÍODO 1624-1633
Depois da autorização do Papa, em 1624, para escrever um livro, que há tanto tempo desejava, Galileu não começou logo a escrevê-lo, não tanto por causa da sua crónica má saúde, mas sobretudo pelo seu desejo de inventar o microscópio. Uma das grandes dificuldades consistia em obter as duas lentes lenticulares (de forma duplamente convexa). Embora se considere que o primeiro a fazer observações microscópicas de materiais biológicos fosse van Leeuwenhoek (1632-1723), há quem afirme que Galileu publicou as primeiras ilustrações detalhadas de insectos, em Roma, em 1625 (34*).
Este “quadro” de Microbial Art foi criado usando
bactérias transgénicas expressando genes de proteínas fluorescentes.

Depois dedicou-se à preparação do Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo ptolomaico e copernicano), que foi publicado a 21.Fev.1632.
O livro está dividido em quatro “Jornadas”, que tratam, respectivamente, do confronto entre os sistemas copernicano e ptolomaico, das objecções mecânicas ao movimento de rotação da Terra, das objecções astronómicas ao movimento de translação da Terra e da teoria das marés (flusso e reflusso del mare). A sua preparação iniciou-se com uma longa carta a Ingoli (Set.1624), na qual aparece a primeira formulação explícita do princípio da relatividade do movimento, que deu origem à II Jornada. No final da III Jornada, faz referência aos seus trabalhos inéditos sobre magnetismo, no que terá sido influenciado por W. Gilbert, um dos primeiros experimentalistas sobre magnetismo, que tinha fama de “herético perverso, brigão e um sofisticado defensor de Copérnico”.
Este livro não é uma obra de astronomia, não é um tratado de mecânico ou de física, não é uma obra filosófica, mas é “fundamentalmente uma obra de combate, cujo objectivo claro e indisfarçável é o de fazer rever a condenação de 1616” (35*).
Publicação
Depois da análise do revisor da Inquisição, foi-lhe dada autorização para publicar o livro, condicionada às seguintes alterações:
- mudança do título, De fluxu et refluxu maris (Do fluxo e refluxo do mar);
- reformulação do prefácio e introdução de uma conclusão afirmando explicitamente que o copernicanismo era apenas uma hipótese;
- o tema não pode fazer referência às marés e deve usar exclusivamente argumentos matemáticos sobre o copernicanismo, "com o objectivo de provar que, afastada a revelação de Deus e a doutrina sagrada, poder-se-iam salvar as aparências”.
O censor estava globalmente satisfeito com a obra e até acrescentou uma frase: "o autor pode alterar ou embelezar o fraseado desde que a substância seja preservada".
Galileu abusou desta sugestão e não foi propriamente cumpridor ao publicar o livro. A comissão papal, que o analisou (Set.1632), fez-lhe oito acusações (Relatório da Comissão especial sobre o Dialogo; Set. 1632):
"1. Ter posto o imprimatur de Roma sem autorização e sem comunicar a publicação a quem se afirma ter assinado.
2. Ter posto o prefácio com caracteres distintos, tornando-o inútil como que alienado do corpo da obra e ter colocado a conclusão na boca de um tolo…
3. O fato de faltar muitas vezes na obra o enfoque hipotético das questões e de afastar-se dele…
4. Tratar do assunto como não resolvido…
5. O desprezo pelos autores contrários e por aqueles de que a Santa Igreja mais se serve.
6. Afirmar e declarar incorrectamente certa semelhança, na compreensão das realidades geométricas, entre o intelecto humano e divino.
7. Apresentar como prova de verdade que os ptolomaicos passam a copernicanos e não ao contrário.
8. Ter relacionado erradamente o existente fluxo e refluxo do mar com a estabilidade do Sol e mobilidade da Terra, não existentes.
Todas essas coisas poderiam ser corrigidas, se se julgasse o livro ter alguma utilidade, pela qual houvesse necessidade de fazer-lhe esta graça.”
Efectivamente Galileu, por temperamento, não foi nada prudente. Por um lado ignorou as condições que o seu amigo Urbano VIII lhe colocou de ser imparcial, considerar o copernicanismo apenas como hipótese e não utilizar o argumento das marés em sua defesa, o que permitiu a mobilização contra ele junto do papa.
Por outro lado, a escolha e comportamento dos personagens ajudou ainda mais esses ataques. O livro que foi escrito em italiano, e não em latim, para poder ter uma maior divulgação, utilizava o método do diálogo (36*). Trata-se de um diálogo imaginário entre Salviati (copernicano) e Simplício (ptolomaico), moderado por Sagredo, que acabou por se tornar defensor do copernicanismo. Embora tivesse havido um Filippo Salviati que fora amigo de Galileu e também um Simplicius da Cilícia que escrevera um comentário sobre Aristóteles, Simplício também podia significar que só um simplório podia aceitar o copernicanismo. E ainda para cúmulo colocou na sua boca palavras que Urbano VIII usara, o que foi logo devidamente aproveitado: “Scheiner (o primeiro grande adversário de Galileu) pode e soube apresentar-lhe (a Urbano VIII) a interpretação do argumento papal, que Galileu tinha feito, como uma ridicularização da temática da omnipotentia Dei absoluta e, portanto, como uma ridicularização do próprio Urbano VIII” (37*).
Perante este libelo, Galileu foi intimado a comparecer em Roma. Argumentou com a sua péssima saúde, o que era verdade, mas nada demoveu a Inquisição e teve de ir mesmo.
Em Roma foi submetido a quatro sessões de interrogatórios e esclarecimentos.


Primeiro “depoimento” (12.Abril.1633)
Perguntado em latim se sabia por que estava ali, respondeu, em italiano, que era por causa do seu livro Diálogo.
Por que estava em Roma em 1616? Para estar seguro de ter a opinião santa e católica da Igreja sobre o copernicanismo; soube que para a Congregação do Índice era contrária à Sagrada Escritura e só podia admitir-se ex suppositione (como pura hipótese) tal como fez Copérnico e esclareceu que foi disso notificado pelo cardeal Bellarmino conforme prova a declaração do próprio Belarmino de 26.Maio.1616.
Se, sobre este assunto, fora notificado com um precetto, isto é uma ordem que, uma vez violada, comportava uma pena, disse que uma manhã o cardeal Bellarmino o informara de que não se podia manter nem defender a opinião de Copérnico porque era contrária à Escritura, mas que não se lembrava de quem mais estava presente.
Tendo-lhe sido apresentado uma injunção (precetto) segundo a qual “tinha de ser absolutamente abandonada e não podia, em nenhuma circunstância (quovis modo) manter, ensinar (doceat) ou defender, por palavras ou por escrito (“omnino relinquat, nec eam de caetero, quovis modo, teneat, doceat aut defendatverbo aut scriptis”) (38*), respondeu que não se recordava de na declaração de Bellarmino ver as palavras quovis modo (de qualquer modo) nem nec docere (não ensinar).
Como vimos no post anterior, esta injunção deve ter sido falsificada e acrescentada ao processo.
No Segundo (30.Abril.1633), Galileu deu uma “inesperada” resposta fazendo uma verdadeira autocrítica: que "o livro me parece uma obra diferente e de um outro autor"; que "estava a incorrer num erro alheio à minha intenção"; que “se tratava, portanto, de um erro meu e, confesso-o, de uma ambição vã e de uma pura ignorância e inadvertência”.
A justificação pode estar no facto de, entretanto, se ter decidido “um incrível processo extrajudicial: a 27.Abril.1633, o juiz teve um encontro privado com o acusado, sem chanceler, sem advogados e sem testemunhas” (39*). Além disso, Galileu continuava a ter amigos muito bem colocados.
No Terceiro (30.Maio.1633), apenas apresentou a declaração autografada de Bellarmino de 26.Maio.1616. E no Quarto (21.Junho.1633), disse que “nada tinha a acrescentar”, porque já antes, “tinha as duas opiniões, isto é, a de Ptolomeu e a de Copérnico, porque uma ou outra podiam ser verdadeiras; mas, depois da determinação da Sagrada Congregação do Índice, cessou em mim toda a ambiguidade e tive, como tenho ainda, por veríssima e indubitável a opinião de Ptolomeu”.

CONDENAÇÃO
No dia seguinte foi promulgada a “Sentença de Condenação de Galileu (22.Junho.1633), da qual consta:
- que Galileu foi considerado “veementemente suspeito de heresia, isto é, de ter mantido e acreditado numa doutrina falsa e contrárias às Sagradas divinas Escrituras”;
- para que “o teu grave e pernicioso erro e transgressão não fiquem de todo impunes” e para que sirva de exemplo futuro para outros, “ordenamos que, por édito público, seja proibido o livro do Diálogo”;
- que Galileu era condenado ao cárcere às ordens do Santo Ofício e a rezar cada semana os sete salmos penitenciais (6, 13, 37, 50, 101, 129 e 142).
Como a acusação principal era saber se Galileu desobedecera ou não à ordem formal do papa para não ensinar o copernicanismo, pode concluir-se que a declaração de Bellarmino deve ter sido fundamental. Mas como “ninguém pode escapar à Inquisição e uma vez que um pomposo julgamento plenário tinha sido iniciado, o único veredicto conceptível era descobrir Galileu culpado de qualquer coisa e puni-lo como aviso para os outros. Do ponto de vista da Inquisição, o problema era que levantar uma falsa acusação de heresia era um crime tão grave como a própria heresia. Se Galileu não fosse culpado, os seus acusadores eram-no; e os seus acusadores eram as maiores autoridades da Igreja. Galileu tinha de ser obrigado a confessar alguma coisa” (40*).

ABJURAÇÃO (22.Junho.1633)
O cardeal Barberini, grande amigo de Galileu e um dos três juízes que não assinaram a acusação, deve ter tido um papel importante na persuasão de Galileu, fazendo-lhe perceber que se não se não se considerasse culpado, poderá ser sujeito à tortura e certamente até à fogueira.
Galileu acabou por perceber a gravidade da situação e fez a famosa declaração que termina assim:
“Eu, Galileu Galilei, abjurei, jurei, prometi e me obriguei como mencionado acima, e em fé do verdadeiro, de meu próprio punho subscrevi a presente cédula da minha abjuração e a recitei palavra por palavra, em Roma, no Convento da Minerva, neste vigésimo segundo dia de Junho de mil seiscentos e trinta e três. Eu, Galileu Galilei, tendo abjurado como dito acima, por minha própria mão” (41*).
Graças a Barberini, embora a sentença fosse cumprida, as condições acabaram por ser muito amenizadas: primeiro, foi para prisão domiciliária, na embaixada toscana, em Roma; depois, para a casa episcopal de Siena, cujo arcebispo, Antonio Piccolomini, fora seu aluno; finalmente, para a sua própria casa, perto de Arcetri, a partir de 1634.

DIÁLOGO SOBRE AS DUAS NOVAS CIÊNCIAS
Foi Piccolomini quem o estimulou a voltar a escrever. Então começou a que seria a sua última obra, que foi considerada a pedra angular da física moderna.
Em 2.Jan.1638, informava o seu amigo Elia Diodat de que estava completamente cego.
Nesse ano, publicou então o seu último e mais importante livro, Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (Discursos e demonstrações matemáticas relativas a duas novas ciências) (42*), no qual resume o trabalho de toda a sua vida. As "duas novas ciências" são a resistência dos materiais ou teoria da coesão da matéria e o estudo do movimento, O livro está também dividida em quatro Jornadas:
- a primeira trata das causas da coesão dos sólidos: nela mistura teses atomistas com afirmações de tipo aristotélico, como "a tão falada repugnância que a natureza tem ao vazio" (p. 423); termina com a teoria da queda dos graves;
- a segunda trata da estática e desenvolve as ideias e modelos sobre a resistência dos materiais; 
- nas duas últimas discute o movimento acelerado, a teoria da inércia, as leis do movimento dos projécteis; nelas contém o essencial do seu contributo científico: a elaboração da mecânica racional em bases matemáticas.
Pode dizer-se que "foi o primeiro texto científico moderno, que explicava que o Universo é governado por leis  que podem ser compreendidas pela mente humana e é guiado por forças cujos efeitos podem ser calculados usando a matemática" (43*)
O livro foi proibido em Itália e teve de emigrar clandestinamente sendo publicado em Leiden, em 1638. Talvez, por isso, a Itália, que fora o berço do Renascimento, a partir daí estagnou cientificamente, dando lugar aos países do Norte. 


EPPUR SI MUOVE
É evidente que Galileu não podia ter dito esta frase à saída da abjuração, pois nesse caso teria sido imediatamente queimado. Alguns pensam que a terá dito mais tarde. Mas o que ele fez foi uma anotação pessoal à margem do seu próprio exemplar do Diálogo: “Sobre a questão de apresentar novidades. Quem pode duvidar de que isto levará às piores desordens quando as mentes criadas livres por Deus se vêm obrigadas a submeter-se servilmente a uma vontade exterior? Quando se lhes diz que neguem os nossos sentidos e os submetam ao capricho dos outros? Quando pessoas sem qualquer competência se convertem em juízes dos peritos e se lhes concede autoridade para tratá-los como bem lhes apetece? Estas são as novidades que podem provocar a ruína da comunidade e a subversão do Estado.” (44*)

FONTES


Ver no post anterior.
Principais e documentos relativos ao Caso Galileu: http://sites.google.com/site/casogalileu/documentos

(20*) WILLIAM R. SHEA, Galileo e l’atomismo, in Acta Philosophica 20 (2001) 257-272.
(21*) “Volendo poi veder sensatamente da che derivi questo ricrescimento, andate com diligenza osservando, e vederete che secondo che gli atomi di fuoco si vanno moltiplicando per l’acqua ed aggregandosene molti insieme, formano alcuni piccoli globettini, li quali in gran numero vanno ascendendo per l’acqua e scappando fuori della sua superfície” (Risposta alle opposizioni del S. Lodovico delle Colombe e del S. Vincenzo di Grazia (1615))
(22*) “E forse mentre l’assottigliamento e attrizione resta e si contiene dentro a i minimi quanti, il moto loro è temporaneo, e la lor operazione calorifica solamente; che poi arrivando all’ultima ed altissima risoluzione in atomi realmente indivisibili, si crea la luce, di moto o vogliamo dire espansione e diffusione instantanea, e potente per la sua, non so s’io debba dire sottilità, rarità, immaterialità, o pure altra condizion diversa da tutte queste ed innominata, potente, dico, ad ingombrare spazii immensi.”.
(23*) STEPHEN HAWKING, Aos ombros..., p. 429.
(24*) WILLIAM R. SHEA, a. cit., p. 272.
 (25*) LUCAS F. MATEO-SECO, Galileo e l’Éucaristia. La questione teológica dell’ACDF, Index, Protocolli, EE, f. 291r-v, in Acta Philosophica 20 (2001) 243-256. (ACDF = Arquivos da Congregação da Defesa da Fé). Este artigo traz muitas informações sobre o Caso de Galileu.
(26*) PIETRO REDONDI, Galileu Herético, Companhia das Letras, 1991.
(27*) O título completo do livro é um bom exemplo do “ódio de estimação” mútuo entre Galileu e Grassi: RATIO PONDERUM LIBRAE ET SIMBELLAE IN QVA QVID È LOHARII SARSII LIBRA ASTRONOMICA, QVIDQVE È GALILEI GALILEI SIMBELLATORE, “Relação dos argumentos da Libra e o Palhaço em que a Libra Astronomica (ac philosophica) é de Lotário Sarsi e o Palhaço (Il Saggiatore) é de Galileu. Estas polémicas com os Jesuítas vieram a ter graves consequências para Galileu pois os Jesuítas, mais próximos de Galileu que os Dominicanos, acabaram por se afastar voluntariamente do processo de 1633 e terem uma influência negativa no desenrolar dos acontecimentos.
(28*) AUGUSTO J.S. FITAS, Notas sobre a Vida e Obra de Galileu, pp. 8-9.
(29*) ETIENNE COUVERT, A verdade sobre Galileu.
(30*) YVES GRINGAS, L’atomisme contre la transsubstantiation, in La Recherche nº 446 (Nov.2010), pp. 92-94.
(31*) “Da Trindade, etc.. Cap. I. Da fé católica”, in DS (DENZINGER-SCHÖNMETZER), Enchiridion Symbolorum Definitionum et Declarationum de rebus fidei et morum, nº 802 (p. 260).
(32*) Sessão XIII, cânones 1 e 2 sobre "o ss. Sacramento da Eucaristia" (DS nº 1652; p. 389).
(33*) Como reconhece o próprio Grassi: "Nonnullus tamen qui me angit scrupulus aperiendus" (Ratio, Examen XLVIII, p. 174).
(34*) JOHN GRIBBIN, o. cit., p. 110.
(35*) PABLO RUBÉN MARICONDA, o. cit., pp. 138-141
(36*) Fiz referência, em post anterior, a que este método, inventado por Garcia de Orta, iria influenciar, entre outros, Galileu.
(37*) ANTONIO BELTRÁN MARÍ, Galileo y Urbano VIII. La trama del equívoco, in ÉNDOXA: Series Filosóficas, n.° 21,2006, pp. 35-73. A citação vem na p. 71.
(38*) Ver texto completo no segundo documento transcrito na nota 21* do post anterior.
(39*) JUAN MARÍA LABOA, FRANCO PERINI, GUIDO ZAGHENI, Historia de la Iglesia, San Pablo, Madrid 2005, p. 642.
(40*) JOHN GRIBBIN, o. cit., p. 113.
(41*) “Io Galileo Galilei sodetto ho abiurato, giurato, promesse e mi sono obligato corne sopra et in fede del vero, di mia propria mano ho sottoscritta la presente cedola di mia abiuratione et recitatala di parola in parola, in Roma, nel convento délia Minerva, questo di 22 Giugno 1633. Io Galileo Galilei ho abiurato corne di sopra, mano propria.”
(42*) Ver a tradução portuguesa em STEPHEN HAWKING, Aos ombros..., pp. 415-642.
(43*) JOHN GRIBBIN, o. cit., p. 114.
(44*) Citado por PAUL JOHSNON, Historia del Cristianismo, Vergara, Barcelona 2004, p. 433.

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