terça-feira, 5 de outubro de 2010

Descobrimentos e a "ciência" (3)

Sumário para situar o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
12. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
13. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
14. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
15. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
16. Modelo de Einstein
17. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Maravilhas do Espaço: uma imagem por post


NOTA: Este post está intrinsecamente unido ao anterior, de que é a continuação.

Para terminar esta sucinta viagem pelo contributo dos Portugueses para o avanço a caminho de uma ciência moderna, vou referir mais três nomes, cuja principal intervenção aconteceu na «área da saúde», especialmente na farmacopeia.


GARCIA DE ORTA (Castelo de Vide, c.1500 — Goa, c.1568)
Este médico judeu português foi pioneiro no modo de abordar a Botânica, a Medicina Tropical e sobretudo a Farmacologia.
A sua vida teve um primeiro momento dedicado à formação clássica, como muitos do seu tempo. Num segundo momento foi confrontado com as “realidades novas” da Natureza que o apaixonaram pelo seu exotismo. E aqui surge o conflito, aliás próprio da sua época, entre o saber livresco e a observação directa. O seu livro mais conhecido tem um título que é uma espécie de resumo: Colóquios dos simples e drogas he cousas medicinais da Índia e assi dalgũas frutas achadas nella onde se tratam algũas cousas tocantes a medicina, pratica, e outras cousas boas pera saber.

 

Consiste num conjunto de 57 colóquios ou diálogos entre o próprio Garcia de Orta e um colega imaginário, Ruano, que, de visita à Índia, deseja saber mais sobre as drogas, especiarias e outros produtos naturais.
Está dividido em dois volumes: o I, com os Colóquios 1 a 25, e o II, com os restantes Colóquios. Além de estudar a origem, forma e propriedades terapêuticas de muitas “drogas orientais” (praticamente cada colóquio trata de uma), inclui também algumas observações clínicas, das quais se destaca a primeira descrição da cólera asiática, baseada na autópsia de um doente seu, morto por essa doença.
O livro é exemplar no modo de divulgar esse “novo saber” sobretudo por quatro aspectos.
Mostra o enorme esforço que Garcia de Orta dedicou para arrancar à flora indígena o segredo das suas propriedades farmacológicas.
Está escrito em português para permitir que todos pudessem ter acesso a ele e não só os eruditos: “Bem pudera eu compor este tratado em latim, como o tinha muytos annos antes composto, e fora a vossa senhoria mais aprasivel; pois o entendeis milhor que a materna linguoa, mas traladeo em português por ser mais geral, e porque sei que todos os que nestas indianas regiões habitam, sabendo a quem vai entitulado, folgaram de o leer” (“Dedicatória” a Martim Afonso de Sousa, I, p. 5)
Utiliza o “diálogo” como método expositivo, substituindo o tom monocórdico e maçudo dos livros eruditos pela vivacidade espontânea e atractiva de uma troca de argumentos entre representantes de duas “escolas” diferentes. Este diálogo / confronto é, de alguma maneira, uma dramatização do seu conflito interior, atrás referido, entre o “saber especulativo” (representado por Ruano) e o “saber positivo” (representado pelo próprio autor) e cuja resolução era a inevitável defesa do saber positivo, o que implicava afrontar, ainda não de forma decisiva mas já evidente, o “argumento de autoridade” dos antigos: “Não me ponhais medo com Dioscorides, nem Galeno; porque não ey de dizer senão a verdade e o que sey" (Colóquio 9, I, p.105).
Mas vai mais longe. Compreende e perdoa aos antigos devido à sua ignorância. O que não aceita é a atitude passiva e rotineira dos seus contemporâneos, como pode ver-se no Colóquio 46 sobre a pimenta (II, 241-250):
ORTA - Todos a huma voz se concertaram a nam dizer verdade, senão que Dioscorides he digno de perdam, porque escreveo per falsa emformaçam, e de longas terras, e o mar nam ser tam navegado como aguora he; e a esse imitou Plinio, e Galeno e Izidoro, e Avicena e todos os Arábios. E mais os que aguora escrevem, como António Musa e os Frades, tem maior culpa, pois não fazem mais que dizer todos de huma maneira, sem fazer deligencia em cousa tam sabida, como he a feiçam do arvore, e a fruta, e como madurece, e como se colhe.
RUANO - Como, todos esses que diseis, erraram?
ORTA - Si; se chamaes errar a dizer o que não he.
RUANO - Ora pois isso he asi, dizei o que vistes e ouvistes a pessoas dignas de fé; e per derradeiro eu virei com minhas duvidas.”
Depois de descrever a planta da pimenta, ouve uma resposta esperada.


RUANO - Pareceme que destruis a todos os escritores antiguos e modernos, por isso oulhai o que fazeis porque Dioscorides diz...”.
ORTA desmonta o que dizem os antigos com o argumento “e isto sei eu muyto bem sabido como testemunha de vista. E pella mesma maneira sei que ha arvore ...”.
Finalmente Ruano dá-se por vencido (corrido):
RUANO - Verdadeiramente que eu me acho corrido, como eu não via e os outros isto, que está tam craro.
ORTA - Pois vedes aqui ha mais pimenta verde em cachos nacida, neste páo do arvore, e vedes aqui estoutra, que está feita em achar, de vinagre e sal, que não he defrente de todas, se a provardes.
RUANO - Bem vejo tudo, e ja que estou corrido de ver que nunqua isto especularam bem os escritores novos, não me corraes mais; porque Laguna se queixa dos Portuguezes, porque lhe nam dizem estas cousas, e diz que não tem mais cuidado que de robar e esfolar os índios.
ORTA - Verdade he que os Portuguezes não sam muyto curiosos, nem bons escritores: sam mais amiguos de fazer, que de dizer. Trabalham de aquirir per suas licitas mercadorias, porém nam tratam mal os Índios, porque os índios da paz sam muyto favorecidos dos guovernadores.”

Resta-me denunciar a sanha persecutória da Inquisição que chegou ao extremo de exumar os seus ossos e de o condenar à fogueira já morto. (In)felizmente já não foi a tempo de poder sentir o cheirinho à carne humana assada que tão excitante seria para os inquisidores e os muitos mirones, amantes de chafurdar em espectáculos que degradam a dignidade de quem os vê, a eles assiste e os aprecia saborosamente.



AMATO LUSITANO (Castelo Branco, 1511 – Tessalónica, 1568, de peste)
O verdadeiro nome deste notável médico português judeu era João Rodrigues. Estudou medicina em Salamanca, viajou por toda a Europa, sendo impedido de voltar a Portugal pelo receio da Inquisição.
A ele se deve a primeira descrição das válvulas venosas. Também descobriu, enquanto assistente de Cananus, a circulação do sangue, através de inspecções da veia Ázigos, formada pela junção das veias lombar ascendente direita e a subcostal direita. Só na “nossa” wikipedia encontrei esta afirmação.
Do que me lembro, a circulação do sangue é geralmente atribuída a Harvey (1578, Folkestone - 1657, Roehampton). No entanto, talvez o seu principal contributo tenha sido destacar uma situação não totalmente ignorada durante séculos, mas observada apenas de forma parcial e incompleta por vários pesquisadores. Entre estes conta-se Miguel Servet  (1511-1553), que descreveu a circulação pulmonar.
Portanto, Harvey não só pôs em causa teorias erradas anteriores, mas, ao fazer a sua comprovação morfológica e experimental, criou uma nova era no pensamento humano, a era da Experimentação Clínica.

Mas voltemos a Amato Lusitano. A sua obra principal, Curationium Centuriae Septem, “As sete Centúrias das Curas Medicinais” (1556), conheceu 59 traduções em diferentes línguas tal foi a sua importância. Cada «Centúria» apresenta 100 (daí o seu nome) casos clínicos («Curas»), com a idade do doente e a descrição da doença e terapêutica utilizada. Este conjunto de dados permitem-nos, para lá dos aspectos meramente médicos, ter também uma visão completa da sociedade do séc. XVI.


CURA V
Da dor de cólica proveniente de lombrigas
A mulher de um canteiro, angustiada com dores de cólica, depois de ter usado muitos e vários remédios, bebeu o antídoto Mitridático, lançou pela boca uma lombriga, arredondada e comprida, ficando sã.
LIÇÃO
É certo que há cólicas originadas pelas lombrigas, pois destas provêm até outras afecções, como a bulimia, fome insaciável. O mesmo se conclui da história sagrada do livro 3º da Medicina da TRALLIANO.

Duas observações:
1) Mitridático: o Mitridato era uma mistura, muito usada desde a Antiguidade, composta por 54 ingredientes entre vinho e drogas, que supostamente prevenia e curava certas doenças, além de proteger contra envenenamentos. Plínio o Velho, na sua Naturalis Historiae, uma enciclopédia em 37 Livros, não acreditava muito nessa mistela tão complexa, sobretudo por causa da disparidade das proporções dos ingredientes: “Que deus teria determinado estas proporcões tão absurdas? Trata-se simplemente de uma ostentória demonstração de arte e de uma fanfarronice da ciência”. Aliás, Plínio mostrou-se também céptico relativamente a alguns dos mitos da sua época. Por exemplo: “O pássaro pégaso, com cabeça de cavalo, e o grifo com orelhas e o bico em forma de gancho (...) eu julgo serem fabulosos. (...) Também as sereias não merecem o nosso crédito (...) Quem acreditar neste género de coisa também não negará que as serpentes, ao lamberem as orelhas de Melampo, lhe deram o poder de entender a língua dos pássaros”.
De acordo com um mito, Melampo foi o primeiro mortal a quem foram concedidos poderes proféticos, foi o primeiro a praticar a medicina e a temperar o vinho com água. Também percebia a linguagem dos pássaros porque as suas orelhas foram lambidas por uma ninhada de serpentes agradecidas por ele as ter salvado das garras dos seus servidores e de ter enterrado os seus ascendentes. Além disso, Apolo ensinara-o a profetizar, observando as vísceras das vítimas sacrificadas (R. Graves, O Grande Livro dos Mitos Gregos, p. 279).
2) Alessandro Tralliano foi um médico do séc. VI, tão famoso que ficou conhecido simplesmente por Alessandro il medico. O seu sobrenome vem de Tralles, uma cidade da Líbia, onde terá nascido.

O nome Amato Lusitano foi adoptado logo no seu primeiro livro: Index Dioscoridis (1536).
É oportuno recordar que Dioscórides (40-90 dC), um greco-romano, é considerado o pai da Farmacopeia, com a sua obra De Materia Medica (Livro I bilingue (grego e latim) e Livros I e II, em grego), uma enciclopédia em cinco Volumes (pode ver a tradução em inglês), de consulta obrigatória em todo o mundo grego, latino e árabe do séc. II até à Idade Moderna. Como o original se perdeu foi sendo sucessivamente copiado durante mais de um milénio


Nesta verdadeira enciclopédia são descritas cerca de 600 plantas, 35 fármacos de origem animal e 90 de origem mineral, dos quais 100 ainda são considerados farmacologicamente. A sua influência foi enorme até ao século XVIII, tendo tido inúmeras traduções.


CRISTÓVÃO DA COSTA (Cabo Verde?, 1515 – Huelva. 1594)
Este cirurgião, médico e botânico judeu português foi, pela primeira vez, à Índia como soldado, tendo ficado prisioneiro. Depois voltou lá por força do seu desejo de encontrar “nas diferentes regiões e províncias homens sábios e curiosos dos quais pudessem aprender alguma coisa de novo e também para ver a diversidade das plantas que Deus criou para melhorar a saúde humana”, como explica na sua obra principal Tractado delas drogas y medicinas de las Indias Orientales (1578). A estrutura desta obra seguiu a dos Colóquios de Garcia de Orta copiando-a em grande parte, mas melhorando-a com um maior rigor e precisão sistemática na descrição das plantas. Além disso acrescentou 47 desenhos muito detalhados e forneceu novas e importantes informações sobre plantas das Índias ocidentais.


Texto original dos dois primeiros parágrafos da página 68:
Vsam delas hojas majadas en las Erisipolas y en los flemones y al redor de las heridas, para defender el humor, que no corra a elas y majadas com sal de Ormuz para resolver flemones, y com cenixa de Cambaya para deshacer las hinchazones flematicas y melancolicas.
Conseruan este Tamarindo com sal para durar mas: y salado le traen a Portugal, y a las tierras del Arabia, y a Persia, y a Turquia. Y haze(~)n del vn vinagre muy gracioso y no menos grata conserua com Açucar se haze del, maduro reziente, y sin sal.

Tradução
"Utilizam as folhas amassadas nas erisipelas e nos fleimões e (para pôr) em redor das feridas para impedir o humor de correr para elas; e amassadas com sal de Ormuz para curar os fleimões; e com cinza de Cambaia para desfazer os inchaços fleugmáticos e melancólicos.
Conservam este Tamarindo com sal para durar mais. E salgado o trazem para Portugal e para as terras da Arábia, para a Pérsia e para a Turquia. E fazem com ele um vinagre saboroso e (também) se faz com ele, maduro reziente (?), com açúcar e sem sal, uma conserva não menos agradável" .

Assim terminei a apresentação de alguns ilustres “cientistas” portugueses que deram um grande contributo não só na dimensão experiencial mas também na gnoseológica. Em tempos de mudança, não bastam descobertas e intuições, são também necessárias ferramentas e mecanismos intelectuais capazes de conceptualizem os dados experimentais e fazer a sua articulação.


1. Progressos na arte de marear
- invenção da caravela, dotada de grande mobilidade, com cerca de 15 metros de quilha e um porte médio de 150 toneladas, de casco alongado e resistente e com velas triangulares que permitiam navegar à bolina, isto é, deslocar-se em ziguezague, de forma a poder avançar com ventos desfavoráveis;


- descoberta dos ventos alísios, fundamental para a facilidade e a segurança das viagens no Atlântico;
- melhoria dos métodos de cálculo da latitude;
- aperfeiçoamento do astrolábio náutico e outros instrumentos indispensável a uma navegação mais segura, como a balestilha e o quadrante, utilizados para ler a altura dos astros e, consequentemente, para determinar as latitudes; o anel graduado e o instrumento de sombras, ambos destinados a medir com maior rigor a altura do sol; o nónio, que melhora a utilização do astrolábio;
- elaboração de roteiros minuciosos com as costas e seus acidentes, guias náuticos, livros de marinharia, regimentos, tábuas solares e outros.

2. Progressos na cartografia
- o mapa ou planisfério de Cantino (1502): a mais antiga carta conhecida onde aparece o Brasil e a Linha de Tordesilhas; é a primeira visão moderna do Mundo, pois foi executado imediatamente a seguir às grandes viagens dos Descobrimentos. Trata-se de uma cópia de uma carta portuguesa anónima existente na Casa da Guiné e da Mina. Supõe-se que o italiano Cantino terá subornado um cartógrafo para fazer esta cópia;

Planisfério de Cantino
- a carta atlântica de 1504 de Pedro Reinel: a primeira carta náutica conhecida com indicação de latitudes;
- o Atlas de Lopo Homem-Reinés ou Atlas de Miller, de 1519, onde surge o Brasil, mostrando indígenas, alguns explorando de pau-brasil.


3. Observação e descrição da natureza
- transformação radical da imagem que os europeus tinham do mundo, desmistificando muitas fábulas através de um saber fundamentado na “experiência”, isto é, na vivência das coisas, na “experiência” (“o que vi”) que não é ainda “experimentação”, provando:
     - a habitabilidade da zona “tórrida” (equatorial);
     - a comunicação entre os hemisférios Norte e Sul;
     - a ligação entre o Atlântico e o Índico;
     - a descoberta de um “Novo Mundo”, o continente americano;
     - a esfericidade da Terra, já defendida pelos Gregos, mas muito contestada na Idade Média;
- contributo para uma nova mentalidade científica, assente na observação e no espírito crítico, recusando o “argumento de autoridade” (dos antigos), embora sem conseguir alcançar uma atitude científica sistemática.

4. Uma única humanidade
Os Descobrimentos trouxeram uma nova visão do Mundo e da Natureza, à escala mundial, o conhecimento de novos povos e novas culturas e a demonstração da não existência de monstros humanos, o que significa que o género humano tem uma e a mesma natureza.

… com um desfecho tão lamentável
Se reparámos, os últimos três autores referidos eram judeus. E até foram perseguidos.
Este facto fez-me lembrar uma observação de D. S. Landers, em A Riqueza e a Pobreza das Nações, com um título muito sugestivo “Os cafres da Europa” (pp. 146-149), aliás de autoria do P.e António Vieira.
“Quando os Portugueses conquistaram o Atlântico sul, estavam na vanguarda da técnica de navegação. Um empenho em aprender com cientistas estrangeiros, muitos deles judeus, fizera que os conhecimentos adquiridos fossem directamente traduzidos em aplicações práticas; e, quando em 1492, os Espanhóis decidiram compelir os judeus a professar o cristianismo ou a abandonar o país, muitos encontraram refúgio em Portugal, nessa época mais complacente quanto aos seus sentimentos anti-judaicos. Mas, em 1497, pressões da igreja católica e de Espanha levaram a coroa portuguesa a abandonar essa tolerância. Cerca de 70 000 judeus forma forçados a um baptismo espúrio, embora válido como sacramento".

«Vi que em Lisboa se alcançaram
povo baixo e vilãos
contra os novos christãos
mais de quatro mil mataram
dos que ouvera nas mãos
os deles queimaram
mininos espedaçaram
fizeram grandes cruezas
grandes roubos e vilezas
em todos quantos acharam.»
(Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea)

"Em 1506, Lisboa viu o seu primeiro progrom que deixou um saldo de 2 000 “cristãos-novos” mortos. Desde então, a vida intelectual e científica de Portugal desceu a nível de intolerância, fanatismo e pureza de sangue. O declínio foi gradual. A Inquisição portuguesa só foi instalada na década de 1540 e o seu primeiro herege foi queimado em auto-de-fé três anos depois; mas só se tornou sombriamente implacável na década de 1580, depois da união das coroas portuguesa e espanhola na pessoa de Filipe II. Os criptojudeus, incluindo Abraão Zacuto e outros astrónomos, acharam entretanto que a vida em Portugal estava a ficar demasiado perigosa para justificar a saída do país em massa. Levaram dinheiro, experiência comercial, ligações, conhecimentos e – ainda mais importante – aquelas qualidades imensuráveis de curiosidade e inconformismo que constituem o fermento do pensamento” (o sublinhado é meu).
Depois, deixou de haver mais jovens portugueses a estudar no estrangeiro e a importação de livros foi reduzida por exigências do Santo Ofício.
As deficiências intelectuais portuguesas não tardaram a tornar-se proverbiais: “a mesquinhez e falta de curiosidade desta nossa nação portuguesa” (Diogo Couto; 1603); “o povo (português) é tão pouco curioso que nenhum homem sabe mais do que lhe é estritamente necessário” (Mary Breadley, visitante inglesa).
“Em 1600, mas mais ainda em 1700, Portugal tornaram-se um país atrasado e fraco”.

Camões já (pres)sentira este movimento irreversível de degradação:
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
De hũa austera, apagada e vil tristeza. (Os Lusíadas X,145)

Mas penso que deveria acrescentar-se à fuga forçada dos judeus e às malfeitorias da Inquisição um outro facto: o desastre de Alcácer Quibir (1578), que ceifou grande parte das nossas lideranças.
Batalha de AlcácerQuibir
Única representação conhecida da batalha (M. LEITÃO DE ANDRADE, "Miscellânea", 1629)

E depois veio a perda de independência (1580) e a catástrofe da Armada Invencível (1588) que acabou com o que restava dos nossos comandantes e organizadores.
E, de novo, foi o POVO, que, como em 1383, foi capaz de se ir organizando e de conseguir conquistar a independência... Mas o fulgor intelectual e científico, quase destruído, não voltou mais com a mesma força interior nem a mesma projecção exterior. É como se ainda andássemos à procura de um "daimon" interior que como povo temos, mas que deixámos adormecer e encobrir por outras "guerras" às vezes fratricidas.  
 
COMENTÁRIO FINAL
Quis finalizar com um balanço do que se fez mas também do que, de repente, deixou de se fazer. Recordar a subida ao céu e a descida aos infernos é um exercício muito oportuno para os tempos que atravessamos. A História continua a ser mestra da vida. E sobretudo ensina-nos que nem os píncaros da fama nos devem fazer perder a cabeça nem os tempos de desgraça nos devem atirar para o desânimo e a inacção. Um distanciamento crítico, mesmo no furacão dos acontecimentos, bons ou maus, podem trazer aquela dose de bom senso e de sabedoria de vida que nos ajude a continuar a ser os agentes de uma História que nunca está acabada, mas que sempre será feita de bons e maus momentos. A nossa força está em saber ser humildes perante as vitórias e corajosos perante os fracassos.
 
Que os cem anos da República e os quase mil anos de existência nos saibam dar a perspectiva histórica e a consciência da responsabilidade que é continuar a cumprir este país. AMEN.

domingo, 3 de outubro de 2010

Descobrimentos e Ciência (2)

Sumário para situar o blogonauta
1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
12. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
13. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
14. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
15. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
16. Modelo de Einstein
17. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Maravilhas do Espaço: uma imagem por post

Não. Nuvens cósmicas esculpidas pelos ventos estelares maciças quentes num aglomerado de estrelas recém-nascidas, Melotte 15, da nebulosa IC1805.

NOTA: Este post está intrinsecamente unido ao anterior, de que é a continuação.

Época dos Descobrimentos: Período de transição cultural
Estamos num tempo de grandes transformações para as quais teve papel preponderante uma plêiade de descobridores e conquistadores que não só deram "novos mundos ao mundo" como se preocuparam em perceber o que se passava. Tiveram a coragem de, apesar de marcados pela cultura clássica e medieval, pôr em questão muitos dos "dogmas" e das maneiras de ver e pensar do seu tempo, tentaram explicar mais objectivamente a realidade, valorizaram e aperfeiçoaram os métodos de olhar a realidade. Cultivaram um "saber de experiência feito", que, não sendo ainda a verdadeira experimentação futura lhe abria o caminho.
Todos estes conhecimentos e descobertas correram toda a Europa em traduções e cópias, preparando o apareciemnto do novo método científico que começou a desenvolver-se a partir do séc. XVII até atingir uma tal sofisticação nos nossos dias que se torna quase impossível prever os avanços futuros a médio e longo prazo.
Nesta nova relação do homem e a natureza podem destacar-se duas fases, a que correspondem modos diferentes de abordar o tema: "Na passagem da geração de Duarte Pacheco Pereira para a de (Pedro) Nunes e (João de) Castro dá-se um dos passos que mais importante se tem revelado na história da física: a passagem do universo do imediato da percepção e do quotidiano do homem para o fundo do pensamento. De facto, com Duarte Pacheco Pereira desponta o primeiro plano a que nos referimos, consubstanciado num discurso sobre a natureza que se apoia no ver e no ouvir, numa vertente eminentemente geográfica, corrigindo e superando considerações dos antigos geógrafos".


DUARTE PACHECO PERERA (1460-1533)
Foi um notável navegador, militar, geógrafo e cosmógrafo português, de tal modo que Camões lhe chama "Aquiles Lusitano" numa estância, toda ela elogiosa:
E canta como lá se embarcaria
Em Belém o remédio deste dano,
Sem saber o que em si ao mar traria,
O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.
O peso sentirão, quando entraria,
O curvo lenho e o férvido Oceano,
Quando mais n' água os troncos que gemerem
Contra sua natureza se meterem. (Os Lusíadas X,12)
"Traduzindo": Tétis conta que de Belém embarcaria o grande Pacheco para resolver (dar remédio) os danos que o Samorim infligia ao rei de Cochim. Pacheco não sabia os grandes serviços que no mar iria prestar. Quando entrasse na sua nau (curvo lenho), esta e o férvido mar haveriam de sentir o seu peso, proporcional ao seu heroísmo. Era tal o seu peso que os próprios mastros, gemendo, mergulhariam na água, o que vai contra a natureza da madeira: devia flutuar na água em vez de nela mergulhar.

Na sua qualidade de cosmógrafo, foi mandado por D. Manuel para acompanhar os trabalhos e a assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494).


O Rei Venturoso encarregou-o também de uma expedição secreta para reconhecimento de zonas situadas para lá da linha de demarcação do Tratado e para descobrir "uma tão grande terra firme" (um continente e não um simples ilha). Ele dá conta a El-Rei do seu sucesso, que por motivos político-diplomaticos, foi mantido em segredo. Por isso se chamavam viagens "arcanas".


Este episódio levantou uma controvérsia sobre o descobrimento do Brasil. Aliás as viagens ao continente americano estão "mal contadas", por vezes devido ao secretismo (arcano) que as envolvia.
Já em 1325 se contavam lendas e circulavam mapas, em Portugal, sobre uma terra Hy-Brazil. Afonso IV baptizou de "ilha do Brasil" uma ilha que Sancho Brandão descobriu, quando se perdeu da sua armada, e mandou ao Papa, em 12.Fev.1343, uma carta a dar conta da descoberta, acompanhada por um mapa dessa região onde se lê a inscrição "insula de Brasil". Espanhóis e outros portugueses teriam feito várias viagens, "arcanas" ou não, até ao Brasil. Oficialmente, como se sabe, o descobrimento do Brasil foi feito por Pedro Álvares Cabral, em 22.Abril.1500.
De qualquer modo, é a Duarte Pacheco que se deve o primeiro roteiro de navegação a mencionar a costa do Brasil e a abundância do pau-brasil, no seu livro Esmeraldo de Situ Orbis, manuscrito dedicado a D. Manuel que considerou tão valiosas as informações náuticas, geográficas e económicas nele contidas que não autorizou a sua publicação. Só quatro séculos depois foi editado (1892).
Esmeraldo é uma espécie de anagrama formado pelas iniciais, em latim, dos nomes de Manuel (Emmanuel), o rei, e Duarte (Eduardus), o autor. O título pode, portanto, traduzir-se assim: "Acerca dos lugares da terra por Manuel e Duarte".


Para lá de uma primeira parte panegírica e de algumas passagens de mentalidade cruzadística-cavaleiras, tem muitas informações históricas, económicas, etnográficas e náuticas. Por exemplo, veja-se esta descrição da ilha de S. Tomé:
"Ao mar do cabo de Lopo Gonçalves, sassenta léguas de caminho ao loes-noroeste deste cabo, está a ilha que se chama S. Tomé, a qual mandou descobrir o Sereníssimo Rei D. João o Segundo de Portugal, e a povorou. E esta ilha será de longo quinze léguas em comprido e oito em largo, a qual se aparta da equinocial em ladeza, contra o pólo Árctico, um grau; e tem a grande angra, da parte do norte, na qual podem surgir navios de qualquer grandura que quiserem estar. Nesta terra há o mais fermoso arvoredo, nem mais alto e grosso, que se sabe em toda a Etiópia de Guiné; e assi tem muitas e boas fontes e ribeiras de áugua. Nesta ilha se criam as canas de açúcar em tanta aventagem das outras partes, que não pode mais ser. E assi há aqui muitas e muito boas laranjas e limões e cidras; e outras árvores se dão aqui muito bem. Há aqui muitos e grandes lagartos que andam nas ribeiras de áugua doce e assi no mar, que comem os homens. Também há aqui as bíboras, negras pelas costas e brancas pela barriga, da grossura da perna de um homem, maravilhosamente peçonhentas; e a sua longura é conveniente à sua grossura" (Segundo Livro, cap. 11).
Aqui aparece o marinheiro-sábio daquela época, adepto incondicional da experiência: "A experiência é a madre de todas as cousas, per ela soubemos redicalmente a verdade".

Resumindo
A experiência, nesta geração, não é ainda um método experimental, como o entendemos hoje: não implica a rejeição da ciência tradicional e dos seus métodos, mas não receia corrigir o que, pela sua experiência, verifica não estar bem. É antes, sinónimo de “prática”, tendo inclusive um sentido instável, pois mais que uma vez é invocada para descrever "factos" irreais, como quando afirmava ter comprovado a existência na costa africana de cobras com várias cabeças que se desfaziam na água ao entrarem no mar, "facto" «duro de crer a quem não tem a prática destas coisas como nós temos», numa interessante justaposição entre o plano da geografia maravilhosa medieval e o da observação, fazendo-o ver o que na "realidade" não é 'real'".


PEDRO NUNES (1502-1578)
Carlos Fiolhais considera-o o maior cientista português de todos os tempos. Estabeleceu as bases da matemática da navegação, que serviram de referência a matemáticos e europeus de renome, como Tycho Brahe que faz várias referências ao seu trabalho, especialmente ao De Crepusculis (1542), considerado por vários comentadores como a sua obra prima. Neste livro resolve o problema do crepúsculo, faz a proposta do nónio e critica "a maioria dos filósofos do nosso tempo, que consideram de somenos o conhecimento da matemática". Daí ter escrito o Livro de Álgebra en Arithmética y Geometría (1567), neste caso em castelhano, o que mostra a sua preocupação por fazer chegar a todos os seus ensinamentos, escrevendo em várias línguas.


Contudo, Pedro Nunes ficou mais pelas questões técnicas levantadas pelas necessidades postas pela navegação do que pela busca de métodos gerais de pesquisa. O seu trabalho, do ponto de vista epistemológico, baseava-se no diálogo dialéctico e, por vezes, conflituoso entre os dados “científicos” fornecidos por Pedro Nunes aos pilotos e os comentários feitos por estes quando regressavam. Dois dos seus livros tratavam precisamente das dúvidas que alguns navegadores lhe colocavam: Tratado sobre certas dúvidas de navegação e Tratado em defensam da carta de marear e as Taboas do movimento do Sol e sua declinação.
Havia, portanto, uma espécie de dicotomia entre os intelectuais que, embora ligados ao mar, ficavam na retaguarda da acção, dando prioridade à visão épica e à exaltação mítica, ao entusiasmo patriótico e à retórica laudatória e ao estudo matemático, e os homens “práticos” que, na dureza das viagens, descobriram e estabeleceram contacto com um mundo mais alargado e nunca antes conhecido. O seu saber era adquirido não tanto nos livros, mas sobretudo nas experiências vividas que se traduziam nas novas cartas de marear, nos roteiros, diários de bordo. Por isso, às vezes as discordâncias agudizavam-se e eram objecto até de escárnio, como no caso de Pedro Nunes, que nunca foi um navegador.
Ele próprio recorda esta atitude: “Eu fiz tempo há um pequeno tratado sobre certas dúvidas que trouxe Martim Afonso de Sousa quando veio do Brasil. Para satisfação das quais me conveio trazer não somente coisas práticas da arte de navegar, mas ainda partes de geometria e da parte teórica. E sou tão escrupoloso em misturar, com regras vulgares desta arte, termos e pontos de ciência de que os pilotos tanto se riem". De qualquer modo, esta atitude de desprezo pode ter duas componentes: revela claramente uma desconfiança entre letrados e navegadores, mas também indicia que alguns acham essa colaboração necessária.
De facto, a sua concepção da matemática não é ainda a "linguagem" capaz de nos introduzir na explicação global do universo, nem a ponte entre a formulação da hipótese e a respectiva verificação experimental. Mas foi um inventor de vários instrumentos que iriam facilitar a navegação: o anel graduado, o instrumento das sombras, para medir a altura do sol, e o mas conhecido, o nónio, que media fracções de grau.


Resumindo
Convém não esquecer que, em períodos de transição, ainda não existem instrumentos conceptuais capazes de traduzir as intuições e enquadrar correctamente as novas descobertas: antes, a principal preocupação era comentar os autores precedentes; agora, o objectivo passa a ser a obtenção de dados experimentais como forma de informação e de confirmação das novas teorias.
Contudo, o contributo de Pedro Nunes é já um avanço relativamente a Duarte Pacheco: "ao postular a logística dos instrumentos e a lição das regras, supera com o seu espírito de precisão matemática e rigor quantitativo, o mero registo empírico de Duarte Pacheco, embora sem ascender à formulação teórica da metodologia experimental (...) Não implica um repúdio da ciência tradicional e dos seus métodos, muito embora possa implicar a correcção das suas ideias, feitas à luz da prática" (J.S. Silva Dias).

Não destaquei aqui o seu Tratado da Esfera, porque já me referi a ele no penúltimo post.


D. JOÃO DE CASTRO (1500-1548)
Fez a sua primeira viagem à Índia em 1538, acompanhando o cunhado, o vice-rei D. Garcia de Noronha. Regressou a Portugal em 1542, tendo partido de novo para a Índia em 1545, desta vez como governador, passando depois a vice-rei.
É muito conhecido por ter empenhado as barbas como garantia de um empréstimo de que precisava para reedificar a fortaleza de Diu.
Mas também por alguns gestos, entre os quais a recusa de ser armado cavaleiro por Carlo V, depois de uma expedição a Túnis (1535), "por já o haver sido por outras mãos, que o que lhe faltava de reais, tinham de valorosas", bem como rejeitar os 2 000 cruzados que o imperador mandar distribuir por cada um dos capitães da armada, "porque servia com maior ambição da glória, que do prémio".


Pedro Nunes tentou uma espécie de síntese ou melhor de “hibridez” cruzando as duas correntes mentais – uma de inovadora feição técnico-prática (criação inventiva), outra de retrospectiva restituição do saber antigo (subordinação livresca) – que se pode ver no seu Tratado da Esfera.
Mas foi D. João de Castro que deu o passo final desta transição, tendo consciência das suas consequências, pois escreveu: "Neste Roteiro vão escritas muitas coisas que parecem estranhas e impossíveis, as quais escrevi medrosamente, não porque dellas não fosse muy certificado, mas por receeo que tive de sair fora da opinião comum vendo de huma parte que escrevendoas poria espanto nos que as leessem, e doutra que dissimulandoas cahiria em culpa de negligencia". Mas também sentia que estava a alargar e a depurar os horizontes da "filosofia" natural com fundamentos sérios, como se vê por diálogo do Tratado da Esfera:
"Discípulo – Pois quem pode arrancar do mundo essa opinião dos antigos?
Mestre – A muita experiência dos modernos, e principalmente a muita navegação de Portugal. Porque depois que os portugueses pela parte oriental, e os outros espanhóis por seu exemplo para o ocidente, navegaram toda a redondeza do mundo, e descobriram tantas e tão várias terras, nunca desde princípio de mundo descobertas, e as deixaram notadas e postas cada uma em seus lugares, vemos que muitas dessas novas terras ficam para a banda do sul, bem contrárias das antigas, e muitas da banda do ocidente. E, finalmente, quase por toda a redondeza do mar se acham novas ilhas e terras firmes, em contrário sítio das antigas (…) vista pois, tal experiência, fica bem reprovada a opinião dos antigos.


Discípulo – Não acabo de cair bem nessa razão, porque parece totalmente contrariar ao sentido e nega o que se vê com os olhos.
Mestre – Todo engano de imaginação e vista está em não acabar de entender como as coisas passadas caiem a prumo e para cair nesta falsidade, a vista dos olhos nos perdoe, dê-se por vencida e confesse nesta parte sua cegueira, por que por mais aguda que seja fica nesta parte muito grosseira. E é necessário aqui o sentido obedecer ao entendimento, e como cego deixar-se guiar por ele, porque certo está que em muitas coisas nos enganavam os sentidos se não fossem guiados e examinados pelo entendimento.
Discípulo – Pois qual é a razão que convence o entendimento?
Mestre – É a que se toma da experiência dos instrumentos matemáticos".

Não resisto a deixar aqui na íntegra o capítulo, no qual descreve o modo como determinou que as águas do mar Vermelho não eram vermelhas mas águas " normais". É quase um artigo científico da actualidade. Faz referência aos autores antigos, toma nota das explicações dos nativos e depois vai investigar: manda mergulhadores que lhe tragam pedras do fundo do mar e "acontecia que todas ou a maior parte das pedras, que arrancavam, eram de coral vermelho, e outras de coral cuberto de musgo alaranjado". Aplicou esta "mesma prática" em vários locais: onde o mar parecia verde, havia pedras brancas cobertas de "limo muito verde"; no "mar branco" havia apenas "areia muito branca sem outra mistura alguma".




A sua segunda viagem à Índia tinha por objectivos: a determinação das longitudes e latitudes, a representação cartográfica rigorosa, o estudo do regimento dos ventos, das correntes marítimas, das marés e até um problema perturbador que tinha a ver com o campo magnético terrestre que em determinados pontos baralhava a agulha das bússolas.
Escreveu três Roteiros, que são verdadeiros diários de um "cientista": Roteiro de Lisboa a Goa (1538), Roteiro de Goa a Diu (1538-1539) e Roteiro do Mar Roxo (1540-1541). "As obras de Dom João de Castro constituem autêntico marco milenário na história da ciência náutica, e no que respeita a Roteiros portugueses, o padrão que estabeleceram nunca foi ultrapassado" (C. R. Boxer).


Resumindo
É na superação da dicotomia entre a observação e a razão que radicam os caminhos da ciência, a qual se processa por um constante movimento de aproximação à verdade mas não à verdade absoluta: «Devemos de considerar quanto lhe devemos por nos ensinar como não ignoremos o chegado à verdade, como são as cousas humanas que os homens podem saber (...). Não somente se deve contar por virtude dar no fito, mas também chegar perto dele».


FRANCISCO ÁLVARES (1465-1540)
Este padre de Coimbra foi não só um missionário e mas também um esforçado explorador. Era o capelão e esmoler de D. Manuel, que o enviou na primeira embaixada portuguesa ao Negusa nagast (Rei dos Reis), em 1515. Lá encontrou muitos europeus frequentadores da corte, incluindo Pêro do Covilhã, de quem se tornou amigo íntimo.
Durante os seis anos que por lá permaneceu foi registando tudo o que viu e ouviu. A partir destes elementos, redigiu a sua principal obra, a “Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias, Segundo Vio e Escreveo ho Padre Alvarez Capellã del Rey Nosso Senhor” (1540).


Este livro tornou-se um grande êxito europeu, tendo sido traduzido em várias linguas, porque foi a primeira informação fidedigna do “fabuloso” império de Preste João.

Grande parte do interesse e divulgação desta obra está, como acabo de dizer, relacionada com o Preste (Presbyter, “padre”) João, sobre o qual corriam as mais desencontradas histórias e lendas por todo o mundo cristão.

Iluminura do Wappenbuch de Conrad Grünenberg (Constance, 1480)


Nos séculos XV e XVI, no contexto da luta contra os infiéis seguidores de Muhammad (Maomé), deu-se especial relevância à lenda ou melhor ao mito já antigo da existência de um poderoso rei cristão que vivia na Ásia porque poderia ser uma grande ajuda nessa luta. Encontrá-lo tornara-se, pois, num dos sonhos da Idade Média, já que ele desejava socorrer a Terra Santa.
Trata-se de um mito que tem raízes muito antigas e complexas. O dito Preste João teria como antepassado o Rei Mago Baltasar. Ou teria raízes ainda mais antigas, pois seria descendente directo da rainha de Sabá, tendo o seu reino sido evangelizado pelo apóstolo Tomás, segundo o embaixador em Aragão (1450). Há autores que recordam a visita da rainha Sabá a Salomão (1Rs 10,1-13), como também o faz o nosso autor no cap. XXXVII. L. Rauwolf salienta que, embora tivessem sido convertidos pelo Apóstolo Filipe, a quem Francisco Álvares dedica o cap. XXXVIII, os etíopes seguiriam ainda muitos costumes judeus como o sábado, a recusa em comer certos alimentos e a circuncisão.
Por volta de 1165, circulava uma carta que esse rei teria enviado ao papa Alexandre III e a vários reis da Europa. Marco Polo (1254-1324) terá encontrado descendentes seus na Mongólia, pelo que alguns chegaram a considerá-lo o grande Gengis-Khan.
Também contribuía para estas confusões a ignorância geográfica: supunha-se que a África e a Ásia estava separas pelo rio Nilo, o que esfumava as fronteiras entre a Etiópia e a Índia.



É, assim, que, em várias cartas da Idade Média, o Preste João aparece já no continente africano. Zurara conta que o Infante D. Henrique encomendara a Antão Gonçalves, em 1442, saber novas da Guiné mas "nom soomente daquella terra desejava haver sabedorya, mas ainda das Indyas e da terra de preste Joham, se seer podesse"(Crónica dos Feitos da Guiné, p. 89).
Enquanto Bartolomeu Dias dobrava o cabo das Tormentas, Pêro da Covilhã, enviado por terra por D. João II chegava às terras de Preste João. A partir deste momento multiplicam-se as relações entre portugueses e etíopes. É a própria regente etíope, Helena, quem tomou a iniciativa de contactar vários reis europeus. O embaixador, que mandou a Lisboa, foi o mercador arménio Mateus, com uma carta do rei David que queria aliar-se com Portugal.
Foi então que D. Manuel I mandou a embaixada na qual, além do embaixador Mateus, seguia também o P.e Francisco Álvares como capelão. Foi na sequência desta viagem e do seu livro que acabou o “mito do Preste João”.



"Verdadeira Informação..."
obra, de cariz etnográfico, está dividida em duas partes (a I, com 142 capítulos; a II, com 9), que trata da realidade biogeográfica, antropológica, económica, política, institucional, cultural e religiosa (cristianismo de rito copta, com bastantes aderências externas).
O livro está resumido no último capítulo, Parte II, cap. IX “De certas perguntas que o Arcebispo de Braga fez a Francisco Álvares e respostas que a elas deu”. As citações não referenciadas são tiradas desse capítulo.


1.Recursos naturais
Fauna
“Nestas montanhas e serranias há muitas alimárias de diversas nações, seja, leões, elefantes (“infindos elefantes” (p. 121)), tigres, onças, lôbos, porcos, veados, antas e ,de tôdas outras nações que dizer se possam no mundo, salvo duas que nunca vi nem ouvi dizer que as aí houvesse e são: ursos e coelhos”.
“Há neste lago (no reino de Amara) muito grandes alimárias a que chamam nesta terra gomaras, dizem que são cavalos marinhos, assim, há um pescado pròpriamente congro e, assim, é muito grande, tem a mais feia cabeça que se dizer pode e feita como grande sapo e o couro sôbre a cabeça parece pele de lixa, o corpo é mui liso como congro e é o mais gordo e saboroso que no mundo se pode achar peixe.” (p. 160)
“Aves: perdizes, galinhas, codornizes, pombas, rôlas, açores, falcões, gaviões, águias reais, tordos, pardais, andorinhas, rouxinóis, cotovias, patas bravas, adens, marrecas e outras ribeirinhas, garças, grous, emas, e tôdas outras aves que no mundo podem ser, salvo pegas e cucos que nunca viu, nem ouviu dizer havê-los aí.” (ver também p. 22).
“Os cavalos naturais da terra do Preste João são muitos e não bons, porque são como bêstas galegas; os que vêm da Arábia são muito bons como mouriscos. E os de Egipto muito melhores, grandes, muito largos e formosos e muitos senhores, criam cavalos das éguas que têm do Egipto em suas estrebarias.”
Animais de carga
“As mulas de carga não têm conto e também servem os machos de sela como as fêmeas. Servem de uma maneira, os que são para sela, sela, os da carga, carga; há ai também muitos infindos sendeiros galegos para carga e porém despeiam como os cavalos e há muitos asnos que servem melhor que os sendeiros e muitos bois de carga e em muitas terras camelos que carregam muito e estes nas terras chás.” (p. 230).
Flora
“Há aí muita quantidade de mel em tôda a terra e as colmeias não estão em colmeal, mas estão dentro nas casas onde vivem os lavradores”.
“Há ai linho mas não da fibra, nem se faz pano dele, há muito algodão e panos dele. Há aí uma terra muito fria em que vestem burel”.
“Há aí muito manjericão pelos matos e não há árvore dos nossos senão aciprestes, ameixieiros e salgueiros, pelas ribeiras, não há aí melões, pepinos, nem rábanos”.
 Minerais
“Na terra não há moeda de ouro, nem de prata e as compras fazem em trocas de umas cousas por outras, principalmente sal que corre em tôda a terra por moeda”: “Há em ela a melhor cousa que há em Etiópia, seja o sal (sal-gema), que em tôda a terra corre por moeda, assim nos reinos e senhorios do Preste, como nos reinos dos mouros e gentios, até dizerem que vai para Manicongo. Êste sal é de pedra tirado em serra (segundo dizem) e vem de feição de adobes (tijolos de barro” (p. 108).
“Corre nesta terra e em todo o reino de Angote ferro por moeda... Também corre o sal por moeda, por que corre em tôda a terra e valem aqui seis, sete pedras um ferro.” (p.127).

2.Relações sociais
Família
Casamento e Divórcio
“Nesta terra não são fixos os casamentos, porque por qualquer causa se apartam. Eu vi casar e fui em um casamento, o qual não foi na igreja e se fêz desta maneira: num rossio diante umas casas puseram um catre e ali assentaram o noivo e a noiva e vieram aí três clérigos e começaram um cantar em aleluia; então seguiram-no como verso andando estes três clérigos três vezes derredor do catre em que os noivos estavam. Então cortaram ao noivo uma guedelha da cabeça e outra da cabeça da noiva e estas guedelhas molharam em vinho de mel e a guedelha do noivo puseram-na na cabeça da noiva e a da noiva na cabeça do noivo, em aquêle lugar de que lhas cortaram e sôbre isto lhe deitaram água benta e daí avante festejaram suas festas e bodas. E por noite os me teram em sua casa e daí a um mês não via ninguém a noiva, senão um homem só a que chamam padrinho, que está todo êste mês com os noivos. E acabado êste mês se vai o homem ou padrinho. E se é mulher honrada cinco, seis meses não sai de casa, nem tira véu prêto diante do rosto e se primeiro emprenha tira o véu. E passados estes ,meses pôsto que não emprenhe tira o véu” (pp. 53-54).
Poligamia
“E, mais, se hão de casar com a primeira mulher ou com a segunda, casam à quinta-feira antes do Entrudo e casam nesse dia, porque têm que após o casamento podem comer carne dois meses, sendo em qualquer tempo, e, assim comem carne e bebem vinho e comem manteiga tôda a Quaresma” (pp. 302-303).
“E, porque digo ou com a segunda mulher não seja dúvida e não pareça que todos têm mais de uma mulher, porque geralmente têm uma, como dito é, e o que tem bem que comer, tem duas e três e não lhe são vedadas pela justiça secular, senão pela igreja que os deita de si e não são capazes de nenhum benefício como dito é.” (p. 303).
Promiscuidade
“E porque disse que casara Aarão com a mulher de seu irmão, não se espante quem o ler, porque é usança da terra, não estranharem dormir irmão com a mulher de seu irmão” (pp. 55-56)
Comida
“Comummente não come tôda a gente somente uma vez no dia e esta é à noite e jejuam”.
“Por tôda esta terra fazem pão de tôda semente, seja de trigo, cevada e milho zaburro, grãos, ervilhas, lentilhas, feijões, favas, linhaça, tafo, daguça e assim fazem vinho de muitas destas sementes e o vinho de mel é muito melhor que todos” (p. 117).
Mas eles foram bem recebidos: “E fêz-nos grande gasalhado dando-nos muitas galinhas cozidas em manteiga e muito vinho de mel e nos mandou uma mui grande e gorda vaca, onde estávamos aposentado.” (p.48); “nos trouxe de lá um açafate de passas de uvas e uma jarra de vinho de uvas mui bom.” (p. 174); “nos fizeram assentar no chão sôbre esteiras e trouxeram aí uma grande gamela de farinha de cevada pouco amassada e um corno de vinho de mel. E porque tal manjar não havíamos visto, não quisemos comer, mas dês que houvemos a terra em costume, comíamo-lo muito bem” (50). “Não se espante quem ouvir corno de vinho, porque dos grandes senhores e do Preste João, cornos de boi são suas vasilhas para o vinho e há aí corno de cinco, seis canadas” (p.51)
“(Sua Alteza) me mandou dizer se queria beber vinho de uvas ou vinho de mel, ou sauna, que é de cevada. Mandei-lhe dizer que com vinho de uvas me criaram a mim e que o vinho de mel era quente e a sauna fria e que não era para velhos” (p. 243).
Mas, às vezes, as coisas não correram bem: “Nos haviam cada dia de dar pão, vinho e carne e tudo o que nos necessário fôsse. Esqueceu isto e bem mal providos fomos uns dias.” (p. 194)
Vestuário
Em certas regiões, “os homens trazem cingidas umas fraldinhas delas de pano, delas de couro curtido, como de safões, assim franzidas como as de mulheres da nossa terra e seu comprimento não será de dois palmos e indo em pé parece que lhas arredondaram até que cobrisse sua vergonha, abaixando-se ou assentando-se, ou fazendo vento aparece. As mulheres casadas trazem mui pouca cobertura, e menos vergonha as solteiras que não têm maridos ou amigos.” (pp. 85-86).
“As moças andam de mal em pior, são mulheres de vinte ou vinte e cinco anos, e trazem as mamas até à cinta e descoberto seu corpo galante cheio de continhas por cima dele. E algumas muito grandes de corpo e de idade trazem pele de carneiro pendurada pelo ombro, sem cobrir mais que uma ilharga. Casam-se nas partes de Portugal e Espanha por amores e por verem bons rostos e as cousas de dentro lhes são escondidas, nesta terra bem podem casar por verem tudo certo” (pp. 100-101).
Saúde
“Não há maneira de física (medicina), sòmente põem fogo; em alguma doença põem ventosas sem fogo e, para dor da cabeça, sangram na testa com uma faca posta na veia. E dão-lhe com um pau em cima para que tire sangue e porém tomam algumas ervas em beberagem para saírem”.
“Há aí muitos gafos nesta terra e não vivem apartados da gente e vivem todos juntos. Há aí muitas pessoas que por sua devoção os lavam e curam suas chagas com suas mãos”.
Justiça
“Nenhuns homens morriam por justiça e que a muitos açoutavam e alguns tiravam os olhos e a outros cortavam pé e mão segundo a qualidade do crime, porém que êle vira queimar um homem porque fôra achado em dois furtos na igreja”.
“A maneira de açoutar é esta: deitam o homem de barriga e prendem-lhe as mãos a duas estacas e uma corda nos pés ambos e dois homens a puxar ambos por esta corda e assim estão dois como algozes a dar um de um cabo e outro doutro e não dão sempre no açoutado e muitas dão no chão, porque se tôdas as vezes nêle desse, ali morreria, tão forte é o açoutar. E desta companhia eu vi tirar um homem do açoutar, e, antes que o cobris sem com um pano, morreu” (p. 155).
Funerais
“Não metem o finado na igreja, senão põem-no junto da cova, nem lhe fazem nosso ofício, nem lhe rezam salmos, nem lhe dizem nada do livro de Job. Preguntava que era o que lhe rezavam. Disseram-me que lhe rezavam o Evangelho de São João todo comprido (completo). E assim o dão à cova com seu incenso e água benta e não se diz missa por defunto, nem de devoção por nenhum vivo, nem mais de uma missa no dia em cada uma igreja. E todos comungam quantos vão a ela” (p. 58).
Tributos
“Estes grandes senhores que são como reis, todos são tributários ao Preste João, em cavalos, os dêste reino, e o do Barnagais é em brocados e sêdas e alguns panos de algodão. E os daqui avante (segundo dizem) são tributários em ouro, sêda, mulas e vacas e bois de arado e outras cousas que há na côrte. Os senhores que debaixo destes estão, ainda que tenham as senhorias da mão do Preste João, pagam o tributo a estes e de tudo dão conta com entrega ao Preste. As terras são tão povoadas que as rendas não podem deixar de serem grandes e estes ainda que recebem suas rendas, comem à custa do povo e pobre gente” (p. 103).

Armamento e Guerra
“Os chavas que são os homens de armas têm azagaias, arcos e frechas. Os grandes senhores têm algumas espadas, terçados e camisas de malha (não muitas)” (p. 73).
“Acudiu-lhe muita gente e vieram em campo com os mouros e quis Deus ajudar os cristãos que mataram oitocentos dos mouros e dos cristãos morreram cinco. Cortaram os cristãos as cabeças a todos os mouros e foram-nos enforcar de aí a meia légua em árvores sôbre grande estrada por onde todo o mundo passa e mandaram de todos os mouros mortos as adargas e azagaias ao Preste João (e isto sendo nós em côrte). E da vinda que de lá viemos achámos as cabeças penduradas nas árvores sôbre a estrada como dito é e haviamos medo e nojo passar por baixo delas” (p. 117).

3.Religião
Conceito de Deus
“E êles nesta terra qualquer cousa que lhes acontece de bonança ou perda, tudo dizem que Deus o faz” (pp. 102-103). O que explica o episódio seguinte: “Era esta terra tôda coberta de gafanhotos sem asas … Vi estar homens, mulheres, meninos, como pasmados assentados entre estes gafanhotos. Eu lhes dizia: - ¿Porque estais assim morrendo, por que não matais dêstes animais e vingai-vos do mal que vos fizeram seus pais? e ao menos os mortos vos não farão mais mal. Respondiam que não tinham coração para resistir à praga que lhes Deus dava por seus pecados.” (p. 80).
Ministros sagrados
“Os frades não casam, cónegos e clérigos sim. E, quando vivem juntamente, os cónegos em circuito, comem em suas casas, e, os frades em comunidade e os maiorais destas igrejas se chamam licacanate e as mulheres dos cónegos têm casas fora do circuito onde êles vão estar com elas. E o filho do cónego fica cónego e do clérigo não, senão se depois se quere fazer”.
Jejum
“Na Quaresma não se come carne, nem leite, nem ovos, nem manteiga, ainda que estejam para morrer, comem legumes e algumas poucas frutas que aí há. E tôdas as quartas-feiras e sextas do ano jejuam todos, grandes e pequenos” excepto “do Natal até Purificação de Nossa Senhora e da Páscoa da Ressurreição até à Trindade”.
“Há muitos frades que não comem pão na Quaresma e outros que em todo o ano e outros que em tôda sua vida o não comem e disto direi o que vi.” (p. 298)

Baptismo
“A circuncisão quem quere lha faz sem nenhuma cerimónia, sômente dizem que assim o acham escrito nos livros que Deus mandou circuncidar. E não se espante quem isto ler, que também circuncidam as fêmeas como os machos, o que não era na Lei velha. E o baptismo fazem desta maneira: os machos baptizam aos quarenta dias e as fêmeas aos sessenta dias depois de seu nascimento e se antes morrem vão sem baptismo” (p. 56).
Missa
“Os sacerdotes consagram no altar e não mostram o sacramento. Quando vem a comungar o clérigo que a missa diz, toma a partícula pequena que de cima parte e as outras duas partes grandes deixa para comungar o povo. Tôda a gente que vem à igreja há-de comungar cada dia ou não vir à igreja. E acabada a comunhão lhes dão uma pouca de água benta com que lavam a bôca. Nenhuma pessoa se assenta na igreja, nem entram calçados, nem escarram, nem cospem, nem deixam entrar nenhum cão, nem outra alimária na igreja e confessam-se em pé e assim recebem absolvição.” (ver também cap. XII, pp. 31ss)

Dízimo
“Não se paga dízima a nenhuma igreja, vivem das grandes propriedades que as igrejas e mosteiros têm”.

Falta de inciativa
“E me parece que no mundo não é terra tão povoada e tão grossa de pãis e criações de gados infindos, caças de tôdas maneiras as mais bravas. Não há aqui senão tigres, lôbos e raposas e adibes e da outra caça. Não se espante quem isto ouvir ou ler, como pode haver caça em terra campina e de tanta povoação, porque, como atrás disse, não matam, nem sabem matar senão algumas perdizes, que matam com frechas, e outras muitas caças não matam porque as não comem, outras porque não sabem nem têm engenho para isso e, assim se cria porque as não matam e é toda a caça quási mansa, porque não é corrida e sem cãis matávamos e levávamos vinte lebres às rêdes, em uma hora, e outras tantas perdizes às telas assim como tangendo cabras ao curral ou galinhas para casa” (p. 75)

Há um trabalho que compara exaustivamente as “Visões da Etiópia em Francisco Álvares e Pêro Pais”.


Resumindo

Foi um observador atento, sagaz e compreensivo e desmistificou uma sociedade que ficava muito aquém das expectativas. Como diz A.R. Machado, “que distancia entre o império abexim da Verdadeira Informação do padre Francisco Álvares e a sonhada terra onde brotava a Fonte da Mocidade, onde existia a pedra mágica que dava vista aos cegos e tornava os homens invisíveis, onde não havia pobres, nem ladrões, nem assassinos, nem gente falsa, em que não existia o vício e em que o soberano nenhum outro igualava em poderio e perfeição” (Prefácio, p. XXX).
Francisco Álvares assumiu, no entanto, uma atitude pioneira na compreensão e aceitação das diferenças de ritos, desde que pusessem em causa os dogmas cristãos.
É mais um bom exemplo da contribuição dos portugueses para o evoluir da História



PÊRO DA COVILHÃ (Covilhã, 1450 - Etiópia 1530?)
Escudeiro da guarda real , foi enviado por D. João II, em 1487, juntamente com Afonso de Paiva em busca de notícias do mítico reino do Preste João e da Índia. Disfarçados de mercadores e treinados por cosmógrafos régios, fizeram uma verdadeira odisseia, acabando por separar-se. Afonso de Paiva ruma à Etiópia em busca do Preste João, e Pêro da Covilhã vai para a Índia, chegando em Novembro de 1488 a Calecute, que desempenhava um ponto charneira no comércio das especiarias.

a verde, o caminho realizado em conjunto; a laranja, o caminho percorrido por Pêro da Covilhã; a azul, o por Afonso de Paiva; a preto, o caminho percorrido, mais tarde, por Vasco da Gama

Visitou várias cidades da Índia, percorrendo depois a costa oriental da África. Voltou ao Cairo para se encontrar com Afonso de Paiva, que, entretanto tinha morrido. Daí mandou um relatório a D. João II e partiu para a Etiópia à procura do Preste João.
Aí foi bem acolhido pelo imperador Alexandre, descendente do Preste João, casou e teve filhos. Foi conselheiro régio da nova rainha Helena, que, por indicação sua, enviou o embaixador Mateus a Lisboa.

Resumindo
Pêro da Covilhã foi o primeiro português que viajou no Índico, no Golfo Pérsico e, que absolutamente sozinho, percorreu longas regiões da Índia, Pérsia, Arábia e África Oriental, fornecendo informações precisoas que permitiram a D. joão II prepara a viagem de Vasco da Gama até Calecute.
Quanto ao "poderoso império" de Preste João, verificou que afinal o mítico reino não passava de um povo pobre e incapaz de prestar qualquer ajuda a Portugal na luta contra os infiéis. Foi isso e toda a sua experiência que transmitiu ao P.e Francisco Álvares que lhe faz uma larga referência nos cap. CIII e CIV da sua "Verdadeira Informação...".


NOTA: Por falta de espaço, este tema terminará no próximo post.
As fontes serão referidas no final.