terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os Lusíadas: significado da epopeia (3)

(continuação) 

Sumário para situar o blogonauta
1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia (1)
10. Os Lusíadas: significado da epopeia (2)
11. Os Lusíadas: significado da epopeia (3)
12. As "contra-epopeias"
13. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
14. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
15. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
16. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
17. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
18. Modelo de Einstein
19. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Só para recordar estamos no ponto
4.4.Interpretação
a) Epopeia marítima
...
b) Epopeia nacional
...

E vamos terminar com

c) Uma epopeia universalista
Assim somos levados a ver em Os Lusíadas uma estruturação mais profunda que subjaz sob esta missão do povo português. E daria a palavra a Armando Castro: “Os Lusíadas não assentam no elemento descritivo que é a viagem de Vasco da Gama… nem sequer na aventura espantosa do povo português entre os séculos XV e XVI ao espalhar-se pelo mundo ao serviço da inter-relacionação dos povos da Terra e criando condições ao progresso da civilização. Este é um elemento central porém condicionado por outro ainda mais geral e de significado universalista ainda bem mais amplo – trata-se da caracterização do ser humano como ser específico que se constrói a si mesmo na aventura, numa acção permanente, agindo na dupla vertente da intervenção sobre a natureza e sobre a sua própria condição, de ente gregário, de ente que existe e só existe socialmente. Deste modo, a própria aventura ecuménica do povo português apenas pode atingir todo o seu significado se a ligarmos precisamente a essa mensagem central” (29*)

d) Ilha dos amores: a chave de interpretação
Assim chegamos à Ilha dos Amores como chave última da interpretação do poema.
Antes, para melhor entendermos esta leitura, é preciso analisar dois conceitos estruturantes.

1) Amor: Eros ou Vénus?
Para Camões quem é Vénus? Seguindo M. Esteves (30*), se a identificássemos com a flor erótica, que o poeta parece deleitar-se em desenhar não iríamos muito longe. Mesmo quando se analisa a cena do Olimpo (II, 34-55), é apenas o retrato de uma mulher que, consciente dos seus atractivos, os usa para alcançar os seus objectivos; faz-se bela para conquistar:
E, por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e cara, (II, 35,1-2).


A malícia está mais nos outros, nos deuses mas também no leitor e no próprio poeta, que quer também desfrutar de uma mulher linda despida, até porque seria um contra-senso apresentá-la vestida quer na tradição iconográfica quer na mitológica.
Vénus aparece também “despida” de poderes sobrenaturais:
- não é dotada da elementar prerrogativa divina de ler o futuro, pois precisa que Júpiter a sossegue quanto ao êxito dos portugueses (II, 43-44);
- para ajudar os portugueses precisa da ajuda de terceiros: as ninfas, Eros, os ventos, as divindades oceânicas;
- mesmo o motivo da sua dedicação aos portugueses é humanamente feminino: o fascínio pelo varão forte e destemido, o sentimentalismo por um povo que muito se assemelha a uma outra “gente tão amada sua”:
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,

Com pouca corrupção crê que é a Latina.
Estas causas moviam Citereia, (I, 33-34,1)

Em cada aparição, todos os recursos estilísticos da poesia camoniana tendem ao máximo para a criação de uma atmosfera de suprema harmonia estética. Não é de admirar, dada a importância dada à beleza física pelo neoplatonismo (31*) como reflexo da Beleza Suprema e primeiro grau da identidade triangular Beleza-Verdade-Bem. No ambiente neoplatónico da época, Camões não precisava de fazer a distinção entre Eros (o amor numa concepção mais restrita e sexualizada que hoje se dá a esta palavra) e Vénus (o Amor como uma inata força vital, que instintivamente tende para o Bem). Este Amor-Vénus, dimensão mística do Amor e sua articulação, supõe vitalidade, dedicação, oblação contrapondo-se ou superando o egoísmo, a passividade e a rotina do amor-Eros.

Eros e Agape
Bento XVI, segue um caminho de algum modo semelhante na sua reflexão sobre as relações entre o Eros e o Agapé, na sua primeira encíclica Deus caritas est (DCE), “Deus é amor”.
Convém, antes de mais, ter presente que os Padres da Igreja (32*) se serviram dos termos gregos para expressar a realidade do amor de Deus. Os gregos tinham muitas palavras para designar o amor nas suas múltiplas vertentes: nos extremos desta lista poderíamos colocar Eros, que significa “amor-desejo” e está ligado ao aspecto estético e se torna “o desejo do desejo do outro”, e Ágape, que é o amor universal, “amor que transborda”, gratuito. Os Padres da Igreja fazem uma identificação clara entre os dois termos, como podemos ver nestes dois ou três exemplos:
- Orígenes: “Portanto, não existe nenhuma diferença se nas Sagradas Escrituras se fala de amor (αγάπη) ou de desejo (έρωϛ)” (Comentário ao Cântico dos Cânticos, Prefácio);
- Inácio de Antioquia: “Meu Amor (Ό εμόϛ έρωϛ) foi crucificado, e não há mais em mim fogo para amar a matéria” (Carta aos Romanos 7,2);
- Gregório de Nissa: “Diz-se que o Amor seja uma caridade intensa” (επιτεταμένη γαρ αγάπη ό έρωϛ λέγεται) (Homilia 13 sobre o Cântico dos Cânticos);
- Pseudo Dionísio Aeropagita: “O Amor divino é bom por causa do bem em direcção ao Bem (ό ϑεϊοϛ έρωϛ αγαϑόϛ αγαϑοΰ διά τό αγαϑόν). Este amor (έρωϛ), na verdade, que realiza o bem de todas as coisas que são, preexistem no Bem de modo excelente, não permitiu que Deus permanecesse estéril em si mesmo, e o impulsionou a agir segundo uma superabundância geradora de todas as coisas.” (Sobre os Nomes Divinos IV, 11)
Portanto, “querer ver no termo uma realidade pejorativa seria reduzi-lo, coisa que não fizeram os grandes místicos da Antiguidade, de modo especial àquele que irá influenciar toda a mística ocidental, Pseudo Dionísio Areopagita, o grande defensor do Eros de Deus – isto é – o ‘Amor de Deus’” (33*).

Bento XVI, partindo também deste livro bíblico “mal amado”, o Cântico dos Cânticos, e tendo presente a reflexão patrística, estabelece uma relação profunda entre eros e ágape. Começa por recordar que a palavra eros nunca aparece no NT (e só duas vezes no AT), concluindo daí que “a marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor”. Mas esta marginalização não justifica a acusação de Nietzsche de que “o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício” (DCE 3). O cristianismo “não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o”. Assim, “o eros inebriante e descontrolado não é subida, «êxtase» até ao Divino, mas queda, degradação do homem. Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao homem, não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser”. (DCE 4).
Daqui resultam duas consequências:
- há uma relação entre o amor e o Divino: “o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência”,
- esta relação não pode resultar simplesmente do instinto, pelo que “são necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu «envenenamento», mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.
O fundamento desta análise é antropológico: se o ser humano é composto de corpo e alma, só pode “tornar-se realmente ele próprio, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação. Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza”.
E conclui:” A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar «em êxtase» para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos” (DCE 5).

2) Antropologia de Camões
Também para Camões o ser humano é espírito e carne, como tão bem sintetiza antes da largada de Vasco da Gama:
Por vós, ó Rei, o esprito e carne é pronta (IV, 80,8).

Mas são muitos os exemplos que mostram que o Homem é formado de espírito e de matéria, de alma e de corpo, de vontade e de sentidos: “esforço e arte” (I, 75; II, 59; X, 42); força e saber (X, 71); “esforço e prudência” (X, 29); numa palavra
Gente forte e de altos pensamentos (II,47).

“As minhas maquetes de figurinos vestem tanto o carácter do personagem quanto o corpo e o espírito do actor.”

Assim sendo, o Homem (o herói) deve ser capaz de resistir às tentações da carne e às degradações do espírito. Camões simboliza essas ameaças em duas personagens: Adamastor e Baco.

O gigante Adamastor representa os perigos materiais:
Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte! (V, 44)


O gigante simboliza as grandes forças que se opõem à grandeza do Homem, a força corrosiva, gigantesca, desordenada (“O rosto carregado, a barba esquálida, / Os olhos encovados, e a postura /Medonha e má e a cor terrena e pálida; / Cheios de terra e crespos os cabelos, / A boca negra, os dentes amarelos”: V, 39). Mas a coragem dos portugueses é suficiente para vencer estes perigos materiais:
Olhai que ledos vão, por várias vias,
Quais rompentes liões e bravos touros,
Dando os corpos a fomes e vigias,
A ferro, a fogo, a setas e pelouros,
A quentes regiões, a plagas frias,
A golpes de Idolátras e de Mouros,
A perigos incógnitos do mundo,
A naufrágios, a pexes, ao profundo. (X, 147).

Mais complicados se apresentam os perigos espirituais, que Camões representa por Baco. Para o vencer foi precisa a ajuda de Vénus, não bastou a coragem física; precisaram doutros valores, que Vénus incarnava, como veremos.
A escolha de Baco é aparentemente inesperada, pois os Portugueses são seus descendentes através de Luso: “Pois que de Luso vêm, seu tão privado” (I, 39; cf. III.21.5-7; VIII.2.7-8; VIII.4.4). No concílio dos deuses diz recear que os portugueses lhe roubem a fama dos seus feitos na Índia:
O padre Baco ali não consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente
Se lá passar a Lusitana gente. (I, 30,5-8)

Mas devemos ter presente o modo como Camões apresenta o comportamento de Baco, nunca enfrentando os portugueses de rosto descoberto, actuando na sombra, utilizando a cilada, tudo perigos para a dimensão espiritual do ser humano:
- ainda em Moçambique tenta indispor o Xeque, chefe de tribo arábica, com “a sua falsidade”, disfarçando-se de um velho amigo seu:
Dum Mouro, em Moçambique conhecido,
Velho, sábio, e co Xeque mui valido. (I, 77,7-8);

- em Mombaça disfarça-se de mouro para acautelar o rei local:
Que Baco muito de antes o avisara,
Na forma doutro Mouro, que tomara (I, 104,7-8);

- ainda em Mombaça faz-se passar por cristão para enganar os batedores de Vasco da Gama:
Estava nũa casa da cidade,
Com rosto humano e hábito fingido,
Mostrando-se Cristão, e fabricava
Um altar sumptuoso que adorava. (II, 10,5-8)

- bajula Neptuno, apelando aos “deuses dos mares” e  provocando o seu orgulho:
Vistes que, com grandíssima ousadia,
Foram já cometer o Céu supremo;
Vistes aquela insana fantasia
De tentarem o mar com vela e remo;
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Soberbas e insolências tais, que temo
Que do Mar e do Céu, em poucos anos,
Venham Deuses a ser, e nós, humanos. (VI, 29)

- já em Calecute aparece em sonhos a “um devoto sacerdote da lei de Mafamede”:
A isto mais se ajunta que um devoto
Sacerdote da lei de Mafamede,
Dos ódios concebidos não remoto
Contra a divina Fé, que tudo excede,
Em forma do Profeta falso e noto
Que do filho da escrava Agar procede,
Baco odioso em sonhos lhe aparece,
Que de seus ódios inda se não dece. (VIII, 47)

Portanto, o elemento sempre presente em Baco é a mentira e a hipocrisia. Numa palavra a traição, nas suas múltiplas formas, é a grande, a única verdadeira perversão do espírito, porque implica a adesão consciente da vontade.


Mas qual é força que torna os navegadores portugueses inacessíveis à corrupção? O oposto da traição que é a lealdade, que aprece repetidas vezes (II, 87,6-7; IV, 19,6; V, 72,8; V, 90; VIII, 13,8), numa palavra: “Ó grande fidelidade portuguesa!” (III, 41,1). Por isso não perdoa a Fernão de Magalhães:
Ao longo desta costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães, no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade. (X, 140,5-8)

Há, obviamente, uma hierarquia entre a matéria e o espírito:
- porque o espírito pode, se for suficientemente forte, dominar a carne, mesmo nas suas legítimas solicitações:
Destarte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado,
E fica vendo, como de alto assento,
O baxo trato humano embaraçado.
Este, onde tiver força o regimento
Direito e não de afeitos ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não rogando. (VI, 99);

- mas também porque a carne é, por sua natureza, fraca:
Mas em tempo que fomes e asperezas,
Doenças, frechas e trovões ardentes,
A sazão e o lugar, fazem cruezas
Nos soldados a tudo obedientes,
Parece de selváticas brutezas,
De peitos inumanos e insolentes,
Dar extremo suplício pela culpa
Que a fraca humanidade e Amor desculpa. (X,46)


Ilha dos Amores (34*)
Neste contexto de dialécticas (Eros (amor) e Venus (Amor) ou eros e ágape) e no binómio antropológico espírito-matéria, a Ilha dos Amores aparece como a chave da leitura de Os Lusíadas: prémio material e “doce glória”, prémio espiritual:
E porque das insídias do odioso
Baco foram na Índia molestados,
E das injúrias sós do mar undoso
Puderam mais ser mortos que cansados,
No mesmo mar, que sempre temeroso
Lhe foi, quero que sejam repousados,
Tomando aquele prémio e doce glória
Do trabalho que faz clara a memória. (IX, 39)

A recompensa inclui, portanto, a dimensão material (fruição do amor sexual e da beleza sensorial bem como do regalo do banquete) e a dimensão espiritual (conhecimento profético do futuro e da cosmovisão da máquina do mundo).
Da parte material encarregam-se as ninfas. Contudo é bom ter presente que as ninfas não são apenas meros objectos para deleite físico, mas, como “fontes de águas intelectuais” (35*).
Da parte espiritual trata Tétis, a deusa do mar, que sobe ao monte para dar conhecimentos do futuro e da organização do Universo.
A Ilha dos Amores é, assim, “o restabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos heróis, que na ilha e pela ilha se opera, são, também e sobretudo, a recolocação do Amor, do verdadeiro Amor, como centro da Harmonia e do Mundo. A Ilha é uma catarse total, não apenas de todos os recalcamentos, mas das misérias da própria História, e das misérias da vida no tempo de Camões e fora dele. É a reconciliação, a transcendência”.


É a “divinização da humanidade” através daqueles heróis navegantes, seguindo uma velha tradição que faz dos heróis seres divinos, e a humanização dos deuses divinos mitológicos:
Não eram senão prémios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneas e Quirino e os dous Tebanos,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana. (IX, 91)

Não se trata tanto da expansão da Fé e do Império, muito menos da glória ou conhecimentos mundanos, como criticava o Velho do Restelo, mas a Plenitude e a Felicidade última, integral, de corpo e alma. O mundo deve ser regido por esta plenitude que é o Amor
A mensagem de Camões é que “é que a história e a humanidade deixem de ser guiadas pela desarmonia – “desconcerto” (III,138) – e o egoísmo – “filáucia” (IX, 27) – e passem a ser guiadas pelo Amor. Por esta razão, Vénus protege os nautas portugueses ao longo da viagem, até à alegoria final da Ilha do Amor. Procura de amor e de conhecimento, na dialéctica do amor do conhecimento e do conhecimento do amor”.
Assim se explica que “o verdadeiro apogeu da viagem marítima não seja a chegada à Índia, nem o regresso à pátria, ou seja, aquilo que os nautas consciente e intencionalmente procuravam, mas o de todo imprevisto encontro da “ínsula divina” (IX, 21), por Vénus feita emergir das “entranhas do profundo / Oceano” (IX, 40) e até eles levada “como o vento leva branca vela” (IX, 52), fixando-a apenas no instante em que é vista e demandada (IX, 53)”.

Ambiguidade do "conhecer"
Como se verifica, o "conhecimento" na Ilha dos Amores implica um conhecimento físico (com as ninfas) e um conheciemento espiritual (com Tétis).
Hoje a palavra "conhecer" está praticamente associada apenas a uma das dimensões: a intelectual-espiritual, seja conhecer os saberes técnicos, filosóficos ou artísticos, seja conhecer alguém, o que implica saber como é, o que pensa, etc..
No entanto, em tempos mais recuados, temos outros exemplos em que o campo semântico do verbo “conhecer” se alargou às relações sexuais como aparece nalgumas passagens bíblicas.
O exemplo que nos salta à vista é a pergunta que Maria faz ao Anjo no momento da Anunciação:
Πώς έσται τουτο επεί άνδρα ού γινώσκω;
Como pode isso acontecer, se não conheço varão? (Lc 1, 34)
O verbo ginósko (γινώσκω), forma abreviada, a partir de Aristóteles, de gignósko (γιγνώσκω), atestada em Homero, vem da raiz indo-europeia gen-, “conhecer”, que também deu, no latim, através da forma arcaica gnoscere, o verbo noscere, “conhecer, saber, começar a aprender”, e depois se expandiu pelas línguas românicas.
Além deste significado, γινώσκω pode também descrever a relação de familiaridade com pessoas: reconhecer como amigo, querer amigavelmente. Em Ésquilo encontra-se gnostós (γνωστός), “íntimo, familiar”. É questionável se, a partir daqui, se pode entender o uso de γινώσκω no sentido de “coabitar, ter relações sexuais”, de que há exemplos na época helenística. O mais provável é encontrarmo-nos na presença de uma viragem linguística estranha ao grego, embora Leisegang indique que há um parentesco semântico entre γινώσκω e o lat. gignere, “gerar, dar à luz” (cf. gignomai (γίγνομαι), “chegar a ser, nascer”) (36*).
Do AT, podemos citar o episódio acontecido em Sodoma, contado no Livro do Génesis:
“Ainda não se tinham deitado, quando os homens da cidade, os homens de Sodoma, desde os mais novos até aos mais velhos sem excepção rodearam a casa. Chamaram Lot e disseram-lhe: ‘Onde estão os homens que entraram na tua casa, esta noite? Trá-los para fora a fim de os conhecermos’. Lot veio à entrada da casa, e fechando a porta atrás de si, disse-lhes: ‘Suplico-vos, meus irmãos, não cometais semelhante maldade. Eu tenho duas filhas, que ainda não conheceram homem. Eu vo-las trarei. Fazei delas o que vos aprouver, mas não façais mal a estes homens, porque vieram acolher-se à sombra do meu tecto’.
Eles, porém, disseram: ‘Retira-te daí!’. E acrescentaram: ‘Cá está um homem que chegou como estrangeiro e quer agora ser nosso juiz! Pois bem vamos fazer-te pior que a eles’. E empurrando Lot violentamente, avançaram para arrombar a porta” (Gn 19,4-9).
Conhecer aqui é um eufemismo que está em vez de “ter relações sexuais”, tanto homo como hetero. É deste comportamento dos homens de Sodoma (claramente aqui referidos como homossexuais) que deriva a nossa palavra “sodomita”.
Nos mesmos moldes se passou outro episódio referido no Livro dos Juízes (Jz 19,22-24).
Também no Código de Hamurabi se encontra este mesmo conceito:
“Se um awillum (homem livre) teve relações com a sua filha, eles farão esse awillum sair da cidade” (nº 154). 
O verbo lamadum, “conhecer, experimentar” é aqui usado no sentido de “ter relações sexuais” (37*).


CONCLUSÃO
Vénus viu que era necessária uma nova humanidade que não fosse, como a actual, marcada pelo egoísmo, a injustiça, a desconsideração pelos outros:
E vê do mundo todo os principais
Que nenhum no bem púbrico imagina;
Vê neles que não têm amor a mais
Que a si sòmente, e a quem Filáucia insina;
Vê que esses que frequentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doctrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florecente. (IX, 27)
1.imagina (2): pensa;
2.Filáucia (4): egoísmo;
3. Vendem adulação (7): bajulam, adulam;
4. o novo trigo (8): D. Sebastião; há aqui uma Metáfora, figura de estilo que designa um objecto ou uma ideia por uma palavra que corresponde a outro objecto ou ideia, ligados por uma analogia; a metáfora funde, portanto, num único, os dois termos de comparação; aqui o termo de ligação é o (novo) trigo: mondar o novo trigo é separar o trigo do joio; mas este novo trigo florescente é D. Sebastião;
5. vv. 7-8: por culpa dos cortesãos aduladores não pode o jovem príncipe livrar-se das más inclinações e crescer em virtude.

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam sòmente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem. (IX, 28)
1.aqueles … amor divino (1-2): os padres, mais concretamente os Jesuítas; eram gerais, no país, as queixas contra a administração pública que estava nas suas mãos;
2.vã (6): falsa;
3.severidade (2): austeridade;
4.vv 7-8: só estabelecem leis em favor do Rei; nunca a favor do povo.

Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,
Senão o que sòmente mal deseja.
Não quer que tanto tempo se releve
O castigo que duro e justo seja.
Seus ministros ajunta, por que leve
Exércitos conformes à peleja
Que espera ter co a mal regida gente
Que lhe não fora agora obediente. (IX, 29)
1.mal (2): indevidamente;
2.releve (3): suspenda; Vénus não quer que por tanto tempo se suspenda o castigo de tais culpas, castigo que deve ser “duro e justo” e ordena a Cupido (aqui implícito, mas explicitado mais à frente) que vai reconstituir a sociedade sob a lei do amor. Para isso reúne os seus servidores (“ministros”) para formar um exército convenientemente preparado (“conformes”) para a luta (“peleja”) que espera travar contra “a mal regida gente”.

E insiste mais à frente:
Ela, por que não gaste o tempo em vão,
Nos braços tendo o filho, confiada
Lhe diz: – «Amado filho, em cuja mão
Toda minha potência está fundada;
Filho, em quem minhas forças sempre estão,
Tu, que as armas Tifeias tens em nada,
A socorrer-me a tua potestade
Me traz especial necessidade. (IX, 37)
1.as armas Tifeias (6): os raios celestes; Tifeu, um dos Gigantes, foi, depois de vencido por Júpiter, fulminado com os raios e sepultado debaixo do Etna. Camões inspirou-se em Vergílio:
Nate, meae vires, mea magna potentia, solus,
nate, patris summi qui tela Typhoea temnis,
ad te confugio et supplex tua numina posco. (Eneida, I, 664-666)
Meu filho, tu que sozinho és a minha força e o meu grande poder,
meu filho, tu que desprezas os dardos tifeus (que fulminaram Tifeu) do pai supremo,
é em ti que me refugio e, suplicante, imploro os teus poderes.
2.tens em nada (6): desprezas.

Camões, na linha de Platão, que, no Banquete, apresenta o Amor como origem de todo o bem, faz do filho de Vénus o restaurador de uma nova organização social.


Para que surja, regida pelo Amor oblativo e não egoísta, uma humanidade nova – “progénie forte e bela” – ela repete de novo, agora de modo mais explícito, a sua decisão irrevogável:
Quero que haja no reino Neptunino,
Onde eu nasci, progénie forte e bela;
E tome exemplo o mundo vil, malino,
Que contra tua potência se revela,
Por que entendam que muro Adamantino
Nem triste hipocresia val contra ela;
Mal haverá na terra quem se guarde
Se teu fogo imortal nas águas arde”. (IX, 42)
1.reino Neptunino (1): o mar, o reino de Neptuno, deus dos mares;
2.eu (2): Vénus;
3.que muro (5): que nem muro;
4.Adamantino (5): resistente e duro como o diamante;
5.vv. 5-6: alusão ao celibato clerical, segundo Epifânio dias;
5.vv 7-8: dificilmente alguém resistirá se o teu amor (“fogo imortal”) inflamar as Nereidas, as ninfas do mar, pelos portugueses.

Assi Vénus propôs; e o filho inico,
Pera lhe obedecer, já se apercebe:
Manda trazer o arco ebúrneo rico,
Onde as setas de ponta de ouro embebe.
Com gesto ledo a Cípria, e impudico,
Dentro no carro o filho seu recebe;
A rédea larga às aves cujo canto
A Faetonteia morte chorou tanto. (IX, 43)
1.inico (1): travesso, cruel, maligno (segundo os vários comentadores); a fonte é Virgílio:
- Saevus Amor docuit natorum sanguine matrem
Commaculare manus; crudelis! Tu quoque, mater!
Crudelis mater magis, an puer improbus ille?
Improbus illo puer; crudelis tu quoque, mater. (Bucólica VIII, 50);
O Amor cruel ensinou a mãe a macular as mãos
Com o sangue dos seus filhos: cruel! Tu também mãe!
Foi a mãe mais cruel ou foi aquele menino malvado?
Aquel menino foi cruel; mas também tu foste cruel, mãe.
- Improbe Amor, quid non mortalia pectora cogis? (Eneida IV, 412)
Maldito amor, ao que obrigas os corações mortais?
Parece estranha esta referência tão negativa ao amor, já que, como veremos, o Amor é a solução que Camões vai propor na sua epopeia. De qualquer modo, talvez aqui ainda haja reminiscências das suas dores de amor da juventude, que certamente o fizeram rever-se nas palavras duras de Appolonius: “Miserável Eros, castigo cruel, grande objecto de ódio para os mortais; de ti vêm as discórdias funestas, as lamentações, os gritos de luto e, para lá de tudo isto, todas as inumeráveis dores que atormentam a alma humana” (IV, 445) (38*);
2.Ebúrnio (3): de marfim (latinismo);
3.Embebe (4): introduz no arco que há-de impeli-las;
4.Cípria (5): Vénus, que tinha muitos devotos em Chipre; os dois principais centros de culto a Vénus eram a ilha de Cítera (“a Deusa em Cythera celebrada”: I, 100), e Chipre (Cyprus), daí o cognome de Cípria;
5.impudico (5): liga-se a ledo; gesto ledo e impudico;
6.aves (7): cisnes;
7.cujo canto…chorou (7-8): Cisne ou Cicno (Κύκνος Kýknos, ‘cisne’), filho de Esténelo e rei da Ligúria, chorou tão comovidamente a morte de Fetonte que os deuses, por compaixão, o transformaram em cisne (39*).

Este ambiguidade que encontramos relativamente ao amor, pode explicar-se, como já referi, pelo cruzamento das suas experiências de jovem rebelde e atrevido com as suas leituras dos clássicos e do meio ambiente.


De tudo isto resultou uma concepção de amor, muito complexa e nada fácil de entender: “Na linha de Platão e do neoplatonismo, também renascentista, com Marsílio Ficino e Leão Hebreu, mas também naquela outra, mais subterrânea, que procede da mística islâmica, da Cabala judaica e da lírica erótica provençal e galaico-portuguesa, e abrindo, porventura, para mais indirectas fontes orientais, há em Luís de Camões um complexo e multiforme tratamento de eros, no qual, por via poética e experiencial, se expressam e reflectem as doridas alegrias do desejo amoroso, em suas múltiplas tendências e tensões, luzes e sombras, nas variações tonais da unidade que vai da pulsão mais carnal ao afecto mais humano e ao arroubo declaradamente metafísico, místico-religioso e divino. Que o amor, entendido como desejo unitivo, é o centro mesmo da obra camoniana, não só da lírica mas também, como aqui pretendemos mostrar, da épica, enunciou-o o mesmo poeta, nessa declaração-desafio perenemente feita a cada leitor: “E sabei que, segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento de meus versos!” (40*), que é a frase final deste soneto:
Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.
Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos.
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos.

E para terminar, a primeira estância em russo
Оружие и рыцарей отважных,
Что, рассекая волны океана,
Отринув жизни суетной соблазны,
Проплыли морем дальше Тапробаны.
Цвет нации великой и бесстрашной,
Что средь племен неведомых и странных
Могучую державу основала
И тем себе бессмертие снискала,

e em mirandês (41*)
Aqueillas armas i homes afamados
Que, d’Oucidental praia Lusitana,
Por mares datrás nunca nabegados,
Passórum par’alhá la Taprobana,
An peligros i guerras mui sforçados
Mais do que permetie la fuorça houmana,
I antre giente de loinge custruírun
Nuobo Reino, que tanto angrandecírun;




Referências
(29*) ARMANDO CASTRO, Unidade estrutural de Os Lusíadas, in Estudos Camonianos, p. 98.
(30*) M.H.A. ESTEVES, O sistema alegórico de Os Lusíadas, pp.45-57.
(31*) Para a influência do neoplatonismo e, concretamente do Pseudo Donísio ver EGÍDIO NAMORADO, Camões: Poeta-Filósofo?, in Vértice, pp. 417-428.
(32*) U.R.L. TROPIA, A semântica de “έρωϛ” no tempo patrístico, in Horizonte, Vol. 5, nº 9, , Dez. 2006, pp. 106-128.
(33*) Id. p. 127.
(34*) Como me servi de várias fontes e para não tornar "pesando" o texto com notas de roda-pé aqui deixo os principais artigos que utilizei :
PAULO A. E. BORGES, Eros e Iniciação em Luís de Camões. A «Ilha dos Amores»;
H.S.C. LANGROUVA, A ideia de viagem de Homero a Camões (1);
H.S.C. LANGROUVA, A ideia de viagem de Homero a Camões (2);
M.H.A. ESTEVES, O sistema alegórico de Os Lusíadas
(35*) Profírio, «Na cave das Ninfas no Canto XIII da Odisseia», 3 (tradução inglesa)
(36*) L. COHEN, E. BEYREUTHER e H. BIETENHARD, Diccionario Teológico del Nuevo Testamento, Sígueme, Salamanca 1985, vol. I, p. 299.
(37*) E. BOUZON, O Código de Hammurabi, Vozes, 1980, p. 71.
(38*) Virgile, Oeuvres, Hachette, p. 519.
(39*) Ovídio, Metamorfoses II, 368-580.
(40*) PAULO A. E. BORGES, a. cit., p. 1.
(41*) Ls Lusíadas, an Mirandés traduçon de Fracisco Niebro, Âncora, Lisboa 2010. 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Os Lusíadas: significado da epopeia (2)

(continuação)

Sumário para situar o blogonauta
1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia (1)
10. Os Lusíadas: significado da epopeia (2)
11. Os Lusíadas: significado da epopeia (3)
12. As "contra-epopeias"
13. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
14. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
15. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
16. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
17. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
18. Modelo de Einstein
19. Modelo de Friedmann-Lemaître.

4.3. Resumo
Numa síntese curta podemos dizer que Os Lusíadas descrevem a viagem marítima até à Índia - ida e volta - realizada por Vasco da Gama. Depois veremos que não será assim tão simples.



Canto I
A narração, como já disse, começa com as naus já no Índico, entre "a costa etiópica e a famosa / Ilha de S. Lourenço” (Madagáscar), mas imediatamente sobe ao Olimpo para assistir ao concílio dos deuses que vão decidir o destino daquela navegação. Nele se desenha o confronto, que irá acompanhar todo o poema, entre Vénus, defensora dos portugueses, e Baco, que tudo tentará para os impedir de alcançar os seus objectivos.


Voltamos à ilha de Moçambique, onde Baco começa aplicar a sua estratégia. O piloto, que os guiará, vai enganá-los, mas acabam por conseguir chegar a Mombaça, onde novos perigos os espreitam. Camões termina com um lamento:
No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno? (106)

Canto II
Perante nova cilada em Mombaça, Vénus intercede e Júpiter mandar avisar os portugueses para que sigam para Melinde, onde serão bem recebidos e terão tudo o que precisam. O rei pede a Vasco da Gama que lhe descreva a sua terra.



Canto III
Vasco da Gama começa por situar Portugal na Europa “quase cume da cabeça / De Europa toda” (20), passando depois à nossa história e descrevendo os vários reinados até D. Fernando. Aqui se destacam os episódios de Egas Moniz, da batalha de Ourique, da “formosíssima Maria”, da batalha do Salado e da morte de Inês de Castro.



Canto IV
Passa à segunda dinastia até D. Manuel, acabando com a partida para a Índia, dando especial atenção à batalha de Aljubarrota, ao sonho profético que teve D. Manuel e ao Velho do Restelo.



Canto V
Vasco da Gama descreve a viagem de Lisboa até Melinde. Aqui dá destaque à grande aventura marítima e ao espanto dos marinheiros perante vários fenómenos: a constelação do Cruzeiro do Sul, o fogo de Santelmo, a tromba marítima, o Adamastor, a doença e a morte causadas pelo escorbuto e as aventuras de “Veloso amigo” nos seus contactos com os nativos.



Canto VI
Despedem-se de Melinde, dando mais uma oportunidade a Baco que vai pedir a Neptuno que afunde aquelas naus. Mas, protegidos por Vénus, a viagem decorre calmamente o que permite a Veloso contar a história dos “Doze da Inglaterra” onde se incluía o famoso Magriço. Mas depois da bonança rebenta uma pavorosa tempestade que obriga Gama a pedir ajuda à “Divina Guarda”, até que conseguem chegar a Calecute.
O poeta termina com mais uma reflexão sua: os heróis não se fazem “encostados sempre nos antigos / Troncos nobres de seus antecessores”, nem com “varios deleites e infinitos”, mas numa luta dura e cheia de perigos e através de grandes feitos:
Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores;
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zebelinos;
Não cos manjares novos e esquisitos,
Não cos passeios moles e ouciosos,
Não cos vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não cos nunca vencidos appetitos,
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nenhum que o passo mude
Pera algũa obra heróica de virtude;

Mas com buscar, co seu forçoso braço,
As honras que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado com um árduo sofrimento; ( 95-97)



Canto VII
Camões começa por comparar os feitos dos portugueses na luta contra os Muçulmanos e na expansão do Cristianismo com a divisão e conflitos internos dos outros povos cristãos.
Vasco da Gama desembarca e encontra-se com o Samorim, que envia o seu Catual colher informações dos portugueses não só junto do Monçaide, um mouro hispânico que falava castelhano e servira de intérprete entre Gama e o Samorim, mas também junto de Paulo da Gama que lhe explica o significado das figuras desenhadas nas bandeiras.
Mas antes, mais uma vez, o poeta termina com uma reflexão autobiográfica lamentando-se da forma como tem sido tratado, ele que só quis servir a pátria:
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram! (81)

Painel em azulejos no Liceu da Praia


Canto VIII
Paulo da Gama descreve aqueles varões ilustres: Luso, Viriato e Sertório, Conde D. Henrique, Afonso Henriques, Egas Moniz, Fuas Roupinho. Destaca a “ínclita geração”, os filhos de D. João I e Filipa de Lencastre.


No dia seguinte, o Samorim tenta tirar vantagens económicas do tratado com os portugueses, acusando Vasco da Gama de apátrida e pirata, mas acaba por autorizá-lo a comercializar. Entretanto, durante a noite, Baco moveu intrigas e convenceu o Catual a atacar os portugueses contras ordens do Samorim: fez Vasco da Gama refém e só, por medo do Samorim, aceitou trocar Vasco da Gama por mercadorias das naus.
Mais uma vez, Camões faz considerações sobre o poder demoníaco do “metal lusente e louro”:
Este rende munidas fortalezas;
Faz tredoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências;
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude! (98-99)

Canto IX
O Catual ainda tenta demorar os portugueses para dar tempo que chegue uma armada muçulmana. Mas Monçaide, convertido agora ao cristianismo, consegue informar o capitão português dos planos dos inimigos, vender a mercadoria e obter especiarias. Vasco da Gama, com mercadoria e alguns prisioneiros indianos, pode finalmente partir trazendo provas da sua chegada à Índia.
Neste regresso Vénus decide premiar os navegadores inventando a Ilha dos Amores onde ao prazer físico se acrescenta um lauto banquete que retempera o corpo.
Assi a fermosa e a forte companhia
O dia quási todo estão passando
Nũa alma, doce, incógnita alegria,
Os trabalhos tão longos compensando;
Porque dos feitos grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prémio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e subido. (88)


Mas o seu objectivo é bem mais elevado e universal: quer que surja uma nova raça, uma humanidade nova, para o que dá ordens expressas ao filho:
Quero que haja no reino Neptunino,
Onde eu nasci, progénie forte e bela;
E tome exemplo o mundo vil, malino,
Que contra tua potência se revela,
Por que entendam que muro Adamantino
Nem triste hypocresia val contra ela;
Mal haverá na terra quem se guarde
Se teu fogo imortal nas águas arde. (42)

Canto X
Depois de saciado o corpo, é tempo de saciar o espírito. Primeiro através da “bela ninfa” Sirena que profetiza os grandes feitos que os portugueses farão no Oriente. E, acabado o banquete, Tétis explica-lhes como funciona a Máquina do Mundo.


Faz uma referência ao naufrágio de Camões, em que se salvou a nado com Os Lusíadas, e a previsão de que a sua «Lira sonorosa / Será mais afamada que ditosa», isto é, a sua obra seria mais famosa do que a sua vida infeliz:
Este (o rio Mecon) receberá, plácido e brando,
No seu regaço os Cantos que molhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa. (128)

Depois disto, os portugueses embarcam e chegam sem mais problemas a Lisboa.


Epílogo
A epopeia termina com um epílogo (145-156), em que o poeta lamenta mais uma vez as injustiças que o Reino lhe terá cometido e renova a dedicatória a D. Sebastião, recomendando-lhe que sempre se aconselhe com os melhores, governe com justiça, premeie apenas e sempre quem merece, lute com bravura e inteligência para expandir Portugal e a fé cristã.
Mas também mostra as suas dúvidas quanto ao futuro deste povo:
Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
De hũa austera, apagada e vil tristeza. (145)

É um Camões que termina não só cansado de escrever, mas desgostoso com o modo como encara o futuro e magoado com o mau tratamento que a Pátria lhe deu. Foi-lhe estabelecida uma pensão razoável, mas que só se manteve por três anos, sendo paga de forma irregular, fazendo com que o poeta passasse por dificuldades materiais. De tal modo que terá vivido os seus últimos anos num quarto de uma casa próxima da Igreja de Santa Ana, em Lisboa, numa situação, segundo narra a tradição, da mais indigna pobreza, "sem um trapo para se cobrir".



4.4.Interpretação
a) Epopeia marítima
Numa leitura superficial, a nossa epopeia descreve a viagem de Vasco da Gama até à Índia, durante a qual, por vários meios, se vai contando a história e os feitos dos Portugueses. Vasco da Gama poderia ser o protagonista, o herói:
Vasco da Gama, o forte Capitão,
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e de altivo coração,
A quem Fortuna sempre favorece, (I, 44)
De qualquer modo, trata-se de uma epopeia do mar, já que o valor dos feitos náuticos se sobrepõe ao dos feitos militares, de que praticamente não se fala no poema. Já para Pedro Nunes, como atrás citei, os grandes actos heróicos dos portugueses estavam essencialmente ligados à conquista do mar. E também Diogo de Sá, apesar de crítico de Pedro Nunes, escrevia, dirigindo-se a D. João III: “Qual deles (dos Antigos) travou conhecimento com o que era ignorado para a maior parte dos homens? Quem encheu o mar de navios e bergantins? Quem deu a conhecer todas as zonas habitáveis? … Na verdade ninguém, a não ser a gente Lusitana, sujeita a Vossa Alteza” (18*).
Esta é, pois, uma epopeia do Mar, ou melhor, dos homens que num “lenho leve” (I, 27) dominaram os vastos oceanos. Não se trata já do mar interior de Homero ou de Virgílio, mas dos mares exteriores dominados por novas técnicas de navegação.
Neste contexto pode encontrar-se a explicação para o facto de Camões, não ter como em todas as epopeias anteriores e do seu tempo, uma descida aos infernos. “Camões aproveita a ideia da catábase (descida aos infernos) não para o interior da terra, mas para o interior do mar, no contexto experimental e geográfico dos navegantes portugueses, os quais, arriscando a vida e suportando dificuldades, estavam a percorrer o desconhecido para além do limite que lhes era vedado pelo saber dos deuses. Trata-se de uma catábase marinha, inovadora na epopeia, por ser a epopeia dos tempos modernos. As catábases das epopeias greco-latinas e do Orlando Furioso eram intra-telúricas. Em Os Lusíadas, trata-se de uma catábase marinha, não de um herói (como Ulisses, Eneias), nem de Juno a convocar Alecto, nos infernos, para a discórdia (Eneida,VII, 323-341), no espaço intra-telúrico, nem de contacto com as sombras dos mortos, mas de uma catábase marinha, realizada por um deus ligado à terra, ao Oriente e à festa (Baco) que pede a Neptuno que convoque um concílio dos deuses marinhos para tentar mudar o futuro das viagens marítimas para o Oriente” (…) Camões veio dar novas conotações muito profundas à viagem de catábase. Concilia a catábase marinha, no início do Canto VI, a meio do poema, com a anábase, no ascenso de Vasco da Gama, com Tétis, na Ilha do Amor, no final de Os Lusíadas; conclia, na lírica, a catábase ou desafio às profundezas do eu-lírico com a anábase, nas redondilhas Sobolos Rios. Pelo que acabamos de expor, o ascenso a um saber superior, ao conhecimento antecipado do futuro, é conferido aos heróis das epopeias homérica e vergiliana, apenas através da descida aos infernos, onde era possível o contacto com os mortos e os segredos do espírito. A catábase greco-latina está enraizada em complexas concepções do divino e relacionada com os mistérios e o orfismo. Com o aparecimento do cristianismo, a iniciação a mistérios apenas para uma minoria de seres foi assumida pela comunidade dos Essénios e pelos gnósticos, tendo continuado na Idade Média, através do esoterismo, da alquimia e dos ritos das sociedades secretas. A grande novidade da religião cristã é que todos os homens podem procurar Deus, porque o próprio Deus encarnou e teve existência histórica, na figura de Jesus Cristo. Assim tornou-se possível para todos os homens procurá-Lo por via mística ou outra” (19*).

Dante e Virgílio no Inferno (E. DELACROIX; 1822)


b) Epopeia colectiva
Mas aprofundando um pouco mais verificamos que Vasco da Gama é um herói, mas com poderes limitados, porque não só depende muito da ajuda dos deuses mitológicos (maravilhoso pagão) mas também precisa da ajuda e da confiança “naquele Deus que o mundo governava” (II, 12): “em nenhuma outra cousa confiado / senão no sumo Deus que o céu regia” (III, 43); “A Deus pedi que removesse os duros / casos que Adamastor contou futuros” (V, 60); “os joelhos no chão, as mãos ao Céu, / a mercê grande a Deus agradeceu” (VI, 93); “do Deus que tem do mundo o regimento” (VII, 69).
Portanto estaríamos perante um herói colectivo: o povo português, os lusíadas, que até deram nome ao nosso poema épico. Camões rapidamente deve ter percebido que, para lá da extraordinária viagem marítima até à Índia, havia algo mais profundo que apontava para uma epopeia colectiva, qualquer coisa de novo que transcendia os feitos contados pelos poetas de todos os tempos, como refere em I, 3, já comentada atrás.
Aliás esta ideia já a encontrámos em textos, citados em posts anteriores, de Pedro Nunes ou Garcia de Orta e outros que poderia citar de Duarte Pacheco ou de João de Castro.
Parece, pois, evidente que o objectivo de Camões não foi apenas glorificar os portugueses, mas sim imortalizá-los, sem esquecer que nem todos se comportaram com dignidade, como refere em várias passagens (já citei VIII, 88-89) e resumiu nestes dois versos:
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algũas vezes. (IV, 33,7-8)

Camões acreditava no discurso dominante em Portugal na sua época, de que os portugueses tinham uma missão civilizadora a cumprir no mundo. “Na sua juventude amou mulheres que nada tinham de incorpóreo; na segunda metade da sua vida sublimou, no amor da pátria, um temperamento apaixonado que os sofrimentos e o tempo não o podiam acalmar”. Este amor, esta verdadeira paixão pelo seu país, vai-se manifestando ao longo da epopeia: “pátria tão querida” (III, 12), “ditosa pátria minha amada” (III; 21); “pátria amada” (III, 24; IX, 51; X, 143). Colocava-se, assim, na linha daqueles que celebravam “a quinhentista dilatação imperial, conferindo-lhe um valor religioso e por vezes messiânico e apocalíptico, tendendo a ver Portugal como um novo povo eleito para a consumação do triunfo do cristianismo e do sentido da história” (20*), de que é exemplo paradigmático o “Quinto Império” do P.e António Vieira.
Camões não tem dúvidas sobre a alta missão confiada aos portugueses:
Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que à custa de vossas várias mortes
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do céu deitadas são as sortes,
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade:
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! (VII, 3)
1.poucos quanto fortes (1): são tão fortes quanto são de poucos;
2.várias mortes (3): mortes em batalhas, em naufrágios, em prisões, etc.;
3.lei da vida eterna (4): há quem veja aqui uma referência à religião cristã; mas Camões também poderia querer dizer que por causa das diferentes mortes na defesa da fé e do império (alguns) Portugueses se imortalizaram;
4.do céu deitadas as sortes (5): é uma missão, dada por (do, agente da passiva) Deus, que muito façais pela cristandade, lutando contra os muçulmanos.

Impérios Muçulmanos em 1555
Fonte: Os Lusíadas, Porto Editora, p. 461

Camões manifesta a convicção de que a missão dos Portugueses é um mandato (directo) de Deus. Por isso, não deixa de ser curioso que, enquanto afirma a ideia de um poder supremo, criador e regulador do mundo, claramente identificado com o Deus dos cristãos (“O falso deus adora o verdadeiro”: II, 12) a que Gama várias vezes recorre, as ajudas divinas (não mitológicas) são praticamente inexistentes. É o Homem, na sua pequenez (“bicho da terra vil e tão pequeno” (21*), a fazer lembrar o Salmo 8) que combate numa “total desarmada solidão” (22*) contra o mundo hostil:
Oh! Grandes e gravíssimos perigos,
Oh! Caminho de vida nunca certo,
Que, aonde a gente põe sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança!

No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno? (I, 105-106)?
Eu não concordo que o homem lute sozinho. Prefiro outra leitura: a de Deus, como Causa primeira, a actuar através de causas segundas, neste caso os seres humanos, que, com as suas forças, na sua, só aparentemente, “total desarmada solidão”, fazem andar a História:
Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda. (X, 85,1-2).

Uma missão para todos os povos cristãos
Camões ia um pouco mais longe: a missão de dilatar a Fé ("a lei da vida eterna dilatais": VII,3) não era só dos Portugueses, mas de todos os povos cristãos, sob o comando dos Portugueses (embrião do Quinto Império atrás referido). Por isso, condenava tão veementemente os outros povos cristãos, que, em vez de também eles defenderem em conjunto a fé cristã, preferiam não só guerrear-se entre si dispersando forças, mas, pior ainda, chegarem alguns ao cúmulo de se aliar ao inimigo que deviam combater.


Assim o vemos a zurzir cada um desses povos:
- os alemães, por apoiarem a reforma protestante e recusarem a autoridade do Papa:
Vedelos Alemães, soberbo gado,
Que tão largos campos se apacenta;
Do sucessor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa
Vedelo em feias guerras ocupado
Que inda co cego error se não contenta,
Não contra o superbissimo Otoamno,
Mas por sair do jugo soberano. (VII,4)
1.soberbo (1): rebelde
2.gado (1): corresponde a “pastor” (4);
3.sucessor de Pedro (3): Papa;
4.apacenta (2): habita;
5.novo pastor (4): Lutero;
6.nova seita (4): protestantismo;
7.feias guerras (5): sobretudo as guerras entre protestantes e católicos, no reinado de Carlos V  (1500-1558), Imperador do Sacro Império Romano (e também Carlos I de Espanha);
8.cego error (6): luteranismo;
9.superbíssimo Otomano (7): foi no reinado de Solimão II (1520-1566) que o império turco atingiu o seu maior poder e grandeza;
10.por sair (8): para se furtarem;
11.jugo soberano (8): obediência ao Papa;


- “o duro inglês”, por romper as suas relações com a Igreja Católica, criando a Igreja Anglicana:
Vedelo duro Inglês, que se nomeia
Rei da velha e santíssima Cidade,
Que o torpe Ismaelita senhoreia
(Quem viu honra tão longe da verdade?),
Entre as Boreais neves se recreia,
Nova maneira faz de Cristandade:
Pera os de Cristo tem a espada nua,
Não por tomar a terra que era sua. (VII, 5)
1.duro (1): possível referência a Henrique VIII (1509-1547) que decapitou duas das suas mulheres;
2.se nomeia (1): se intitula; não parece absolutamente certo que Henrique VIII se intitulasse “Rei de Jerusalém”; mas "quem viu honra tão longe da verdade?”;
3.santíssima Cidade (2): Jerusalém;
4.torpe (3): porque segue “do Arabio (Muahmmad = Maomé) lei maldita” (IV, 100);
5.Ismaelita (3): muçulmano; Ismael era filho de Abraão e de Agar, porque a sua mulher Sara, não conseguindo ter filhos, disse a Abraão: “Visto que o Senhor me tornou uma estéril, peço-te que vás ter com a minha escrava." (Gn 16,2). E assim nasceu Ismael, de quem também nasceria um grande povo (Gn 21,13; 25,12-18). Por isso, se fala também de Ismaelitas ou Agarenos; 
6.senhoreia (3): Jerusalém pertencia ao império turco desde 1517;
7.nova maneira de Cristandade (6): Igreja anglicana;
8. espada nua (7): desembainhada; pronta para combater;
9. por (8): para.

Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei
A cidade Hierosólima terreste,
Enquanto ele não guarda a santa Lei
Da cidade Hierosólima celeste. (VII, 6,1-4)
1.falso (1): ilegítimo;
2. Cidade Hierosólima (Jerusalém): latinismo como Urbs Roma, “cidade (de) Roma”
3.terreste(2): terrestre; talvez por influência de celeste (4);
4.ele (3): Henrique VIII;
5.Hierosólima celeste (4): Reino de Deus;


- o “indigno” o reino da França que não procura defender a Igreja dos contra-reformadores:
Pois de ti, Galo indigno, que direi?
Que o nome «Cristianíssimo» quiseste,
Não pera defendê-lo nem guardá-lo,
Mas pera ser contra ele e derribá-lo! (VII, 6,5-8)
1.Galo indigno (4): Francisco I de França (1515-1547) que, na guerra contra Carlos V, se aliou aos Turcos;
2. “Cristianíssimo” (5): a França era chamada “a filha mais velha da Igreja” (la fille aînée de l’Église), por ter sido a primeira nação convertida ao Cristianismo e porque tinha uma tradição de protectora da Igreja desde Carlos Magno. Tendo sido coroado pelo papa Leão III, no Natal de 800, Carlos Magno, ao tornar-se assim Imperator Romanorum, concebeu a sua missão numa perspectiva cristã, assumindo como projecto a realização da “Cidade de Deus” de S.to Agostinho. A formulação exacta do seu pensamento está expressa na sua Carta ao Papa: “Compete-me defender no exterior e por todas as partes a santa Igreja de Cristo contra as incursões pagãs e as devastações cometidas pelos infiéis e corroborar no interior a fé católica enuncinado-a com clareza e submetendo-me a ela” (23*). Além dos títulos Rex Francorum (rei dos francos), ou Franciae Rex (rei da França), que Luís IX (1214-1270)  foi o primeiro a usar, os monarcas franceses também eram intitulados Rex Christianissimus (rei cristianíssimo).
Achas que tens direito em senhorios
De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,
E não contra o Cinífio e Nilo rios,
Inimigos do antigo nome santo?
Ali se hão-de provar da espada os fios
Em quem quer reprovar da Igreja o canto.
De Carlos, de Luís, o nome e a terra
Herdaste, e as causas não da justa guerra? (VII, 7)
1.Cinífio(3): um rio da Líbia;
2.Cinifo e Nilo (3): estão aqui por Tripolitana, uma das regiões da Líbia, e Egipto, que há muito professavam o Islamismo e pertenciam já ao império otomano;
3.nome santo (4): Jesus Cristo = religião cristã;
4.da Igreja o canto (6): a pedra angular da Igreja (Mt 16,18), o Papa;
5.Carlos (7): Carlos Magno;
6.Luís (7): S. Luís IX;


- e a própria "Itália", onde se situa a sede da Igreja Católica, mas que está mergulhada em vícios e se deleita com os prazeres mundanos:
Pois o que direi daqueles que em delícias,
Que o vil ócio no mundo traz consigo,
Gastam as vidas, logram as divícias,
Esquecidos de seu valor antigo?
Nascem da tirania inimicícias,
Que o povo forte tem, de si inimigo.
Castigo, Itália, falo, já summersa
Em vícios mil, e de ti mesmo adversa. (VII, 8)
1.logram (1): gozam, fruem;
2.divícias (3): riquezas, latinismo divitiae;
3.inimicícias (5): inimizades, latinismo inimicitiae;
4.tem (6): mantém;
5. de si inimigo (6): inimigo de si mesmo, porque este povo forte está dividido em muitos estados que se guerreiam encarniçadamente;
6.vv.7-8: há aqui certamente uma influência de Ariosto:
O d’ogni vizio fetida sentina,
Dormi, Italia imbriacata, e non ti pesa
Ch’ora di questa gente, ora di quella
Che già serva ti fu, sei fatta ancella? (Orlando Furioso, XVII, 76,5-8)
Oh! De todos os vícios do esgoto fétido
Itália embriagada, dormes; e não te pesa
Que ora a uns povos ora a doutros,
Que já foram teus escravos, estejas submetida?
Dante foi bem mais violento:
Ahi serva Italia, di dolore ostello,
nave sanza nocchiere in gran ecipro,
non donna di province, ma bordello! (Divina Comédia, Purgatório, VI, 76-78)
Ai serva Itália, que és da dor hotel,
nave a que arrais no temporal não resta,
não dona de províncias, mas bordel! (tradução de V. Graça Moura)


- enfim, todos os cristãos que não se unem para se defender do inimigo turco:
Ó míseros cristãos, pola ventura
Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,
Que uns aos outros se dão à morte dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?
Não vedes a divina Sepultura
Possuída de Cães, que, sempre unidos,
Vos vem tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se famosos pela guerra? (VII, 9)
1.dentes, de Cadmo desparzidos (2): Cadmo, para vingar a morte de alguns companheiros, matou o dragão que os devorara. Atena apareceu-lhe e aconselhou-o a semear os dentes do animal, o que ele fez, e imediatamente da terra brotaram homens armados. Estes homens tornaram-se perigosos e Cadmo resolveu atirar-lhes pedras para se defender. Não vendo quem os feria, acusaram-se reciprocamente e massacraram-se. Sobreviveram apenas cinco, que ajudaram Cadmo a fundar Tebas;
2.de um ventre produzidos (4): nascidos do mesmo ventre;
3.divina Sepultura (5): Santo Sepulcro (de Cristo);
4.de Cães (6): de Turcos; de em vez de por, agente da passiva;
5.vossa antiga terra (7): Jerusalém;
6.guerra (8): as Cruzadas que os cristãos organizaram.


Assim faz um paralelismo entre o comportamento dos países cristãos e os portugueses.
Caindo no pecado do anacronismo, gostaria de abrir um parêntesis para dar a palavra ao crítico literário brasileiro Silviano Santiago, pois só pode ser enriquecedor ouvir o outro, o que foi “descoberto”:
"A colonização pela propagação da Fé e do Império é a negação dos valores do Outro (Camões infelizmente não foi bastante lúcido para perceber que a moeda tem duas faces). A tripla negação do Outro para ser mais preciso. Primeiro: do ponto de vista social, já que o indígena perde a liberdade, passando a ser súbdito de uma coroa europeia. Segundo: o indígena é obrigado a abandonar o seu sistema religioso (e tudo o que ele implica de económico, social e político), transformando-se - pela força da catequese - em mera cópia do europeu. Terceiro: perde ainda a sua identidade linguística, passando gradativamente a expressar-se por uma língua que não é a sua.” (24*)

Velho do Restelo
Neste contexto de exaltação dos feitos dos portugueses, em resposta à missão recebida de Deus, não pode passar despercebido um dos episódios mais controversos e discutidos de Os Lusíadas, o do Velho do Restelo (25*) não só pela densidade multifacetada e tamanho do longo discurso (11 estrofes), mas, sobretudo, pela sua colocação num ponto privilegiado:
- no final do canto (IV), espaço que Camões reserva para as suas considerações filosófico-morais;
- e quase no centro do poema, exactamente antes do canto V, um verdadeiro canto-charneira, pois a partir daqui entra-se no “presente” da acção e Camões deixa claro, na sua parte final,  que, apesar do recurso à simbologia mitológica, ele apenas conta a verdade:
Ventos soltos lhe finjam e imaginem
Dos odres, e Calipsos namoradas;
Harpias que o manjar lhe contaminem;
Decer às sombras nuas já passadas:
Que, por muito e por muito que se afinem
Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,
A verdade que eu conto, nua e pura,
Vence toda grandíloca escritura! (V, 89)
1.Ventos soltos… dos odres (1-2): na ilha Eólia, Ulisses recebeu um odre que continha os ventos desfavoráveis à viagem para a sua Ítaca; mas, enquanto dormia, os seus marinheiros, pensando que continha ouro e prata, abriram-no, atrasando o seu regresso (Odisseia X, 16-55);
2.finjam e imaginem (1): o sujeito destes verbos é Homero e Virgílio;
3.Calipsos namoradas (2): a ninfa de Ogígia que se enamorou de Ulisses e o reteve sete anos até ser obrigada por Zeus a libertá-lo;
4.Harpias (3): monstros alados, com rosto de mulher, orelhas de urso e garras nos pés, que tentaram envenenar Eneias (Eneida III, 227s);
5. descer (4): alusão à descida aos infernos de Ulisses (Odisseia XI) e Eneias (Eneida V);
6.sombras nuas (4): as almas despidas do corpo;
7.passadas (4): já falecidas;
8. afinem (5): descubram, afirmem;
9. sonhadas (6): fantasiadas;
10.nua e crua (7): exacta, rigorosa;
11.gradíloca escritura (8): as epopeias da antiguidade clássica: Ilíada, Odisseia e Eneida.


Camões quis dar aqui espaço a uma corrente muito significativa dos que eram contra uma estratégia aventureirista do "Deixas às portas o inimigo, / Para ires buscar outro de tão longe, / por quem se despovoe o Reino antigo, / Se enfraqueça e se vá deitando a longe":
Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia. (IV, 100-101).

O Velho do Restelo critica esta ousadia dos que se dispõem a afrontar os mares e os perigos, desejosos da "vã cobiça", da "glória de mandar" e de "esta vaidade a quem chamamos fama", dominados por um inexplicável “fogo de altos desejos”, os que se dispõe a tudo sacrificar, até a própria vida, atirando-se para o desconhecido, chamando esforço e valentia à brutal crueldade e ferocidade. O Velho do Restelo quer advertir contra esta arrogância e ambição desmedidas, nascidos de "altos desejos". O resultado só pode ser a ruína, como aconteceu tanto a Fetonte, "o moço miserando", que se atreveu, sem ter capacidade para o fazer, a conduzir o carro do seu pai, Hélios (o Sol), queimando a Terra, pelo que foi fulminado por Zeus, como a Ícaro, que não resistiu à tentação de voar até ao Sol com as suas asas de cera, que rapidamente derreteram, precipitando-o mortalmente contra a Terra.
O Velho tem uma visão pessimista sobre a condição humana ("mísera sorte, estranha condição"), apenas sujeita ao desejo de fama, glória e riqueza. Não percebeu que tudo isso não chega, porque o que nos comanda é o Sonho, a conquista de novas fronteiras, materiais ou espirituais, que o Homem é tão corajosamente ambicioso como Prometeu e tão saudavelmente louco como Ícaro:
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança. (26*)

O Povo-Herói
Para Camões, o Herói não é o que escuta sensatamente os conselhos do bom senso e da razão do Velho do Restelo, não é o que fica sossegado "na sua quinta" não se envolvendo na construção de uma História nova deixando-se levar pelos acontecimentos.
O Herói para Camões é o povo que aceita a missão divina de ir por toda a terra espalhar a fé, que está pronto a enfrentar os perigos e o desconhecido para saber mais e poder deixar em herança um mundo melhor, que está sempre pronto para partir, pois “Em qualquer aventura, / O que importa é partir, não é chegar” (27*),  que acredita que "Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena" (28*), que responde, sem saber para onde vai, sempre que “outro valor mais alto se alevanta” (I, 3,8), impelido por uma força irresistível, pelo “fogo de altos desejos”, que basicamente se identifica com aquele Amor que Vénus representa, aquele impulso vital instintivo, mas também profundamente humano, tendente à realização da própria grandeza moral, a glória a que se refere o poema.

Esta leitura leva-nos a uma apreciação ainda mais profunda de Os Lusíadas: o grupo dos navegadores chefiados por Vasco da Gama representa mais do que o povo português, representa toda a Humanidade, o Homem, como Camões o concebe, forte e leal no espírito, resistente e sofredor no corpo. Aliás as próprias palavras do Velho do Restelo apontam já nesse sentido. Apesar de se dirigir aos que iam partir e aos que tudo organizaram, ele vai pontuando as suas reflexões com referências à "humana geração" (104), à "geração daquele insano (Adão)" (98), ao comportamento de Prometeu (103).


Referências
18*) Citado por LUÍS DE ALBUQUERQUE, « Do clima em que Camões planeou ‘Os Lusíadas’ » in VérticeNº436-439 (Set/dez.1980), p. 346.
(19*) H.S.C. LANGROUVA, A ideia de viagem de Homero a Camões (2)
(20*) PAULO A. E. BORGES, Eros e Iniciação em Luís de Camões. A «Ilha dos Amores».
(21*) CAMÕES, Canção VII "Junto de um seco, fero e estéril monte", 75.
(22*) M.H.A. ESTEVES, O sistema alegórico de Os Lusíadas, p. 44.
(23*) AA.VV., Nueva História da Iglesia, II. La Iglesia en la Idade Media, p. 87.
(24*) SILVANO SANTIAGO, Por que e para que viaja o europeu?, p.225, citado aqui.
(25*) M.H.A. ESTEVES, O sistema alegórico de Os Lusíadas, pp. 57-63.
(26*) ANTÓNIO GEDEÃO in Movimento Perpétuo (1956).
(27*) MIGUEL TORGA, Viagem in Câmara Ardente (1962).
(28*) FERNANDO PESSOAMar Português in Mensagem.

(continua)