terça-feira, 11 de outubro de 2011

História da luz: OLHO (1)

Sumário para o blogonauta 

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. A caminho do modelo heliocêntrico
12. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
12A. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
13. O génio do "modelo experimental" (Galileu) – Descobertas
14. Caso Galileu (1)
15. Caso Galileu (2)
16. A caminho das estrelas
17. Primeiras medições astronómicas
18. Desafio das Nebulosas
19. Medição das distâncias: Descoberta das Cefeidas
20. Medição das distâncias: a Fotografia entra em cena
21. Medição das distâncias: Cefeidas como Padrão de Medida
22. Interregno: Mini-Guiness sobre as Estrelas
23. História da Luz: Olho
24. Espectroscopia
25. Espectroscopia aplicada à astronomia (Astrofísica)
26. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
27. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
28. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
29. Modelo de Einstein
30. Modelo de Friedmann-Lemaître.



A luz é tão antiga como o Universo.
Muito cedo, os homens se terão maravilhado com este fenómeno; por isso, os eclipses eram tão temidos. Muito cedo, os filósofos terão começado a procurar explicações sobre o funcionamento do mundo, mas também sobre a luz e sobre a visão que rapidamente terão associado à luz. E ao lado de perguntas como “Por que brilham as estrelas?” rapidamente surgiram outras: “Por que não as vemos durante o dia? Como vemos as estrelas? Por que nos enviavam luz? Ou as estrelas não passam de pequenos orifícios no céu atrás do qual haveria alguma grande fornalha?”.

Universo do século XVII            
Gravura publicada por Flamarion (1888) ilustrando a cosmologia da Terra plana e também a insaciável curiosidade humana que procura olhar para além da “esfera das estrelas fixas” na tentativa de descobrir o que se passa para lá da nossa realidade.

Certamente terá sido fácil perceber que víamos a luz porque tínhamos olhos. Mas qual era o mecanismo envolvido? Outros mais atrevidos teriam colocado uma questão mais difícil: “A informação que temos sobre os objectos vem dos próprios objectos ou está nos olhos? E as cores: existem como qualidades dos objectos ou como construção subjectiva no olho?”.

OLHO, ARMA DE ARREMESSO
O olho, dada a sua enorme complexidade, é um dos órgãos privilegiados (aliás como, embora menos, o cérebro) que tem servido de combate entre os criacionistas e os evolucionistas.


Olho Humano: Complexidade e Identificação dos principais componentes
A retina contém cerca de 137 milhões de células sensíveis à luz: 130 milhões de bastonetes (células para a visão a preto e a branco) e 7 milhões de cones (para a visão a cores). O nervo óptico é formado por 1 milhão de fibras nervosas. Os músculos para a focagem do olho ajustam-se 100 mil vezes por dia.

É certo que o próprio Darwin (p. 187) sentia muita dificuldade em explicar um “órgão tão perfeito” como simples resultado da selecção natural: "Parece absurdo, no mais alto grau, confesso, supor que a selecção natural pudesse ter formado a visão com as inimitáveis disposições que permitem ajustar o foco a diferentes distâncias, admitir uma quantidade variável de luz e sanar as aberrações esféricas e cromáticas". De qualquer modo, tal como o mostra a aceitação do heliocentrismo, também, dadas certas condições, "a dificuldade de admitir que um olho complexo e perfeito possa ser produzido pela selecção natural, embora insuperável pela nossa imaginação, não devia ser considerada como subversiva da teoria."
Curiosamente, apesar da sua complexidade e suposta perfeição, o olho dos vertebrados não é assim tão perfeito e nele estão ainda registadas as chamadas “cicatrizes da evolução”:

1 - a retina está "invertida" (atrás de tudo), o que obriga a luz a atravessar corpos celulares e fibras nervosas antes de atingir os fotorreceptores; além disso, está presa de forma tão precária no fundo do olho que basta um golpe mais forte na cabeça para se descolar;
2 - os vasos  sanguíneos, que se espalham pela superfície da retina, provocam sombras indesejadas;
3 - as fibras ópticas, que se juntam à frente da retina, têm de forçar uma abertura na retina para chegarem ao nervo óptico, originando o ponto cego, assim chamado porque essa zona da retina não detecta os raios luminosos.

Por outro lado, as imperfeições dos olhos dão indicação quanto à sua história evolutiva.

Vertebrado (lado esquerdo): 1 - retina; 2 - fibras nervosas; 3 - nervo óptico; 4 - ponto cego.
Polvo (lado direito): 1 - fibras nervosas; 2 - retina; 3 - nervo óptico; não tem ponto cego.

Como se vê, os olhos dos Vertebrados foram construídos "ao contrário", isto é, de tal modo que obrigam a luz a passar pelas fibras nervosas para atingir a retina, que passa a informação às fibras nervosas, que "furam" a retina (ponto cego) para alcançarem o nervo óptico. Nos Cefalópodes, é "sempre a andar": a luz atinge a retina que passa a informação às fibras ópticas (que estão por detrás dela), que enviam um impulso para o nervo óptico. Esta diferença pode explicar-se pela suas diferentes origens: nos Cefalópodes, os olhos resultam de uma invaginação da pele da cabeça; nos Vertebrados, de uma extensão do cérebro.   

TEORIAS SOBRE A ORIGEM DO OLHO
Darwin, apesar das suas reservas, propos que os olhos altamente complexos dos animais podem ter a sua origem num órgão protótipo muito simples, formado por um nervo óptico (célula fotorreceptora), rodeado por por célula(s) pigmento e coberto por uma pele translúcida, mas sem lentes ou quaisquer corpos refractivos. A função da  célula pigmento é proteger, bloquear a luz de um lado, o que dá ao seu possuidor, porque pode ver de que direcção de onde vem a luz, uma grande vantagem selectiva relativamente aos organismos que não conseguem distinguir entre luz e escuridão. Este protótipo permitia, portanto, não só detectar a luz como informar donde ela vinha (visão direccional).
Entretanto perante olhos tão diversificados, vários autores propuseram que o olho não podia ter uma única origem (teoria monofilética), isto é, deve ter surgido várias vezes ao longo da história da vida (teoria polifilética).
No entanto, estudos recentes forneceram argumentos de muito peso para a origem monofilética. Verificaram que, em todos tipos de olhos,  se encontra a mesma molécula nas células fotorreceptoras e são os mesmos genes que codificavam o desenvolvimento dos vários olhos. E até as proteínas do cristalino (lente) já existiam antes da evolução as aproveitar para aperfeiçoar o olho, embora inicialmente com outra função. Uma dessas proteínas translúcidas foi detectada no sistema nervoso central das Ascídias, onde faziam parte de um órgão para detectar a gravidade. 
Mas vejamos com mais atenção o caso dos fotorreceptores e o dos genes codificadores do olho.

Células Fotorreceptores
Estas células estão especializadas na captação  da luz que chega à retina (detecção) e transmitem ao cérebro o correspondente impulso nervoso (transdução) de modo a que o cérebro possa reconstituir a imagem. São de dois tipos (ciliares e rabdoméricas), mas ambos utilizam a proteína Opsina.
O que realmente temos no olho é a Rodopsina, formada pela associação da Opsina com uma parte não proteica, derivada da Vitamina A, o Retinal, ou mais exactamente o 11-cis-Retinal. É esta parte não proteica que vai desencadear uma cascata de reacções desde a captação de um fotão de luz até à formação do impulso eléctrico enviado para o cérebro.


Contudo, o mais importante não é toda a Rodopsina, mas o 11-cis-Retinal. Quando este é atingido por um fotão de luz dá-se uma rotação no átomo (Carbono) 11 transformando-se em 11-trans-Retinal (isomerização).

O que, então, se passa no olho é a reorganização da Rodopsina, que depois de concluído o  processo que conduz à criação de um impulso eléctrico, retoma a forma inicial, a 11-cis-Retinal.


É evidente que o mecanismo da Visão é muito mais complexo, como pode ver-se, no gráfico seguinte, sem entrarmos em pormenor:



A Rodopsina e a Visão (1*)

Gene Pax6
Estudos recentes de Ghering vieram mostrar que um e o mesmo gene principal de controlo do desenvolvimento do olho, o PAX6 (ele chamou-lhe, então "eyelesse"), pode induzir olhos ectópicos (fora do lugar normal) em diferentes artes do corpo da Mosca da fruta (Drosophila).   


Esse mesmo gene está presente nos Invertebrados, nos Mamíferos e noutros animais, e tem como função regular o desenvolvimento do olho. Para mostrar que se tratava de um gene chave de controlo universal "enxertou" o PAX6 do Rato Mosca, verificando, com surpresa, que o gene do Rato funcionou perfeitamente e induziu um olho na Mosca: não um olho de Rato mas de Mosca, porque o PAX6 funciona apenas como interruptor. Foi como se o PAX6 do Rato dissesse à Mosca "faz um olho". E ela fez o seu próprio olho. 



Inclusivamente foi possível com o PAX6 da Mosca (Insecto) induzir numa Rã (Anfíbio) a duplicação da Retina e da Lente.


A - Embrião de controlo não injectado; nos seguintes foram injectadas quantidades diferentes de PAX6;
B - Embrião injectado mostrando a expansão do epitélio da retina;
C - Embrião injectado mostrando a duplicação da retina;
D - "Corte" do Embrião injectado mostrando a duplicação da lente e da  retina.

Como o próprio Gehring refere, foi por mero acaso que encontrou este gene. Depois descobriu que a mesma base genética estava subjacente a todos os filos (grandes grupos) de animais. Verificou também que os cerca de 2000 genes envolvidos no desenvolvimento do olho eram comandados por um único gene, o PAX6, que funcionava como uma espécie de interruptor, como mostravam os olhos induzidos nas várias partes do próprio corpo ou de animais diferentes.

Confirmação por um "fóssil" vivo
Afinal hoje ainda existem exemplares desse olho protótipo. Um deles é um verdadeiro fóssil vivo, pois praticamente não evoluiu nestes últimos 500 milhões de anos. Trata-se de um poliqueta (uma espécie de verme da classe do filo dos anelídeos), o Platynereis dumerilii, ou melhor das suas larvas. Há também um outro: o das larvas dPlanária Polycelis auricularia. Deles falarei, mais à frente na secção "A Caminho do Olho".  

A equipa da alemã D. Arendt propos que a evolução dos olhos complexos dos animais pluricelulares terá partido de um tipo de célula única multifuncional que já existia nos antepassados dos Metazoários (praticamente tudo o que chamamos animais). Esta célula teria, pelo menos, três funções: 
- detectar a luz através de um organelo fotorreceptivo;
- proteger-se da luz por meio de grânulos pigmentares;
- controlar a direcção do deslocamento através de cílios locomotores.
Estas antigas células eram capazes de mediar a fototaxia (ver abaixo) mesmo na ausência de um sistema nervoso. Este percursor acabou por se diversificar, evoluindo para células especializadas:
- células fotorreceptoras (PRC = PhotoReceptor Cell);
- células pigmentares de protecção (SPC = Shading Pigment Cell);
- células locomotoras ciliadas (LCC = Locomotor Ciliated Cell).

a) Percursor LCC/PRC/SPC que combinava um cílio locomotor, microvilosidade fotossensoriais e grânulos pigmentares protectores;
b) Um subconjunto de células perdem a fotossensibilidade e os pigmentos protectores para se especializar em locomoção (LCC, a verde);
c) As LCC tornaram-se multiciliadas; um "olho" espacialmente separado combina as duas funções restantes PRC/SPC por meio de processos celulares gradualmente mais desenvolvidos que evoluíram para axónios (condutores de impulsos eléctricos entre células);
d) Finalmente deu-se a separação funcional das células PRC (a verde) e das SPC (verde escuro).


HOX
Só por curiosidade, recordo que existem outros tipos de genes quase universais. Por exemplo, o Hoxd13 é o responsáveis pela grande variedade de estruturas morfológicas dos animais com mandíbulas: barbatanas peitorais até aos membros superiores dos mamíferos (2*).


Uma árvore filogenética dos Gnatostomados (todos os animais que possuem mandíbula)
Figura 2 do artigo da Nature 457(2009) 818-823.



HISTÓRIA DO OLHO

E FEZ-SE LUZ
Há dois fenómenos muito ligados à reacção dos seres vivos à luz: o fototropismo e a fototaxia. A principal diferença visível é que, no primeiro caso, há atracção (positivo) ou repulsão (negativo) pela luz de parte de um ser vivo; no segundo caso é todo o organismo que se desloca. 

 Fototropismo
Todos já vimos a "rotação simultâneo" de um campo de girassóis conforme o movimento do Sol. Talvez nunca tenhamos reparado que o mesmo acontece em muitas outros casos, como, por exemplo, com o fungo Phycomices.

Heliotropismo do Girassol e do Fungo

Nestes casos o que temos é uma classe de fototropismo, o heliotrofismo, já que se trata de luz solar (helios, "sol" em grego). Não é por acaso que o nome científico do girassol é Helianthus ("flor do Sol") annuus.
O mecanismo é relativamente simples. A luz faz com que a Auxina (hormona reguladora do crescimento dos vegetais e do alongamento diferencial das células) se desloque para o lado não iluminado, fazendo-o crescer mais rapidamente que o lado oposto ao da luz e, portanto, a inclinar-se para o Sol. 


Fototaxia (3*)
A fototaxia, no sentido lato, significa deslocamento ao logo de um gradiente de luz. Sofreu um processo evolutivo muito curioso. Nos Procariotes (organismos unicelulares sem núcleo), o fenómeno é unidimensional, isto é, acontece apenas ao longo de uma linha. Depois algumas Cianobactérias (bactérias com capacidade de fotossíntese) adquiriram a capacidade de "nadar" em duas dimensões, portanto sobre uma superfície. Finalmente, os Eucariotes (todos os seres vivos formados por células com núcleo), pela primeira vez na história da vida, são capazes de seguir um gradiente de luz nas três dimensões.
As principais vantagens da fototaxia são:
- encontrar as condições óptimas de iluminação;
- detectar zonas com melhor alimentação;
- aumentar a probabilidade de encontrar gâmetas (células de reprodução).
Todos os Eucariotes fototácticos usam o mesmo mecanismo, embora evoluíssem pelo menos oito vezes independentemente, o que sugere que não é muito difícil fazer evoluir este comportamento.

As setas vermelhas apontam o ponto provável da origem da fototaxia num determinado grupo.
Os pontos de interrogação indicam incerteza quanto a uma origem independente ou comum. 

Segundo todos estes dados, parece que o último antepassado comum dos Eucariotes terá sido uma amiboflagelada bentónica (região do fundo oceânico) com um ou, no máximo, dois cílios e a capacidade de formara pseudópodes ("falsos pés" utilizados para captar alimento e para locomoção). Neste ser vivo, o cílio é utilizado não para nadar mas para recolher partículas nutritivas.
No caso da bem estudada alga verde Chlamydomonas reinhardtii, a fototaxia é mediada pela já nossa conhecida Rodopsina.

Proteorodopsina
Já se sabia que as fotoproteínas mais simples colectoras de energia são as rodopsinas. Também se sabia que um tipo de arqueo(antigas)fotoproteínas, chamado bacteriorodopsina, funcionava como "bomba de protões", um mecanismo que, pelo transporte de protões através da membrana celular, gera energia química a partir da luz. Supunha-se, no entanto, que esta "bomba" apenas funcionava nas Arqueobactérias halófilas (bactérias que vivem em ambientes hipersalinos como o do Mar Morto). Há uma década, porém, foi descoberto um novo tipo de rodopsina microbial - a proteorodopsina - no bacterioplâncton marinho e posteriormente noutras bactérias, incluindo a mais difundida e a mais simples, a Pelagibacter ubique, o ser vivo mais pequeno e mais eficiente, já que o seu genoma tem apenas 1354 genesRecentemente, foi demonstrado definitivamente o  papel funcional da Proteorodopsina numa estratégia dependente da luz. A estirpe Vibrio (a este género pertence o Vibrio cholerae, o causador da cólera), ainda sem nome AND4, quando fica num meio marinho sem alimento, consegue sobreviver quando é exposta à luz. Portanto, a Proteorodopsina fornece um  novo mecanismo para o bacterioplâncton suportar os períodos de privação de recursos.
Este mecanismo utiliza um pigmento nunca antes encontrado em bactérias. Muito semelhante à Rodopsina, permite aos micróbios oceânicos obter energia a partir da luz solar. É um mecanismo muito mais simples que a fotossíntese, utilizada pelas plantas e pelas algas. A bactéria AND4 precisa da luz solar para sobreviver, como já vimos. Mas em vez de utilizar a Clorofila e toda a pesada maquinaria da fotossíntese, serve-se da Proteorodopsina e em apenas cinco passos adquire energia.
Repare-se na diferença:

Fotossíntese: processo muito complexo que se divide em duas fases: a clara e a escura.

E agora veja-se a simplicidade do mecanismo envolvendo a Proteorodopsina:

1 - A Proteorodopsina utiliza a energia da luz para transportar os protões através da membrana celular; 
2 - O excesso dos protões extracelulares permite a formação de ATP, a molécula que armazena a energia celular. 
              

A CAMINHO DO OLHO
Uma questão que se coloca logo de imediato poderia ser esta: qual a vantagem de ver luz e escuridão e de distinguir uma da outra? Gehring considera que devemos partir da suposição realista de que a vida veio do oceano e de que os organismos primitivos viviam como células isoladas. Por outro lado, a luz solar contém uma forte componente de radiação UV, que é muito prejudicial à vida e, pior ainda, a uma célula isolada. Portanto, seria muito vantajoso para os organismos vivos escapar à luz solar, mergulhando de dia e subindo à superfície durante a noite. Aliás, é o que se passa ainda hoje com o plâncton, o que apoia fortemente a ideia de que a vantagem do "ver" consistiu em evitar a radiação UV e que esta vantagem se tornou um factor evolutivo muito poderoso. 



ESQUEMA GERAL DA EVOLUÇÃO DO OLHO
Antes de procurar acompanhar várias etapas, não necessariamente cronológicas, do aparecimento dos vários "olhos", podemos ficar com uma primeira visão geral simplificada.

a) Células fotossensíveis;
b) "Taça" que delimitava a "abertura" e a direcção da sensibilidade à luz;
c) Olho "pinhole" ou de "câmara escura" que aumentava a sensibilidade e a formação difusa de imagens;
d) Desenvolvimento do Humor Vítreo numa câmara fechada;
e) Aparecimento da lente (Cristalino);
f) Desenvolvimento da Íris separada da Córnea.

AVANÇOS SUCESSIVOS
Sem grandes preocupações, vou procurar acompanhar a evolução do olho a partir de sistemas tão simples que hoje não chamaríamos olho.

Plâncton
O plâncton é uma mistura complexa de três conjuntos de organismos:
fitoplâncton (organismos aquáticos com capacidade fotossintética, especialmente algas microscópicas);
zooplâncton (organismos aquáticos sem capacidade fotossintética) e
- em menor quantidade, ictioplâncton (ovos, larvas ou formas juvenis de peixes).

Plâncton (Filoplâncton, em cima, Zooplâncton) e a Cadeia alimentar

Já fiz referência às suas migrações e muitos estudos continuam a ser feitos, pelo que apenas aqui deixo esta imagem, verdadeiramente espectacular, tirada do espaço:


MANCHAS SENSÍVEIS À LUZ
Mancha ocelar (Eyespot)
A mancha ocelar ou ocular é o "olho" mais simples e mais comum na natureza. Também chamado estigma, encontra-se nas células ciliadas (móveis) de algumas algas verdes e outros organismos unicelulares fotossintéticos.
É formado apenas por duas partes: um fotorreceptor e um pigmento que serve de escudo protector contra a luz brilhante e a radiação UV. O pigmento, ao projectar uma sombra sobre o fotorrecptor, indica a direcção da luz e por meio de um sistema de transdução (transporte de um sinal) gera uma resposta no flagelo ou cílio de modo a procurar a orientação mais favorável.


Repare-se que a mancha ocelar, formada pelo pigmento protector e pelo fotorreceptor, está ligada ao flagelo, que vai imprimir um movimento de rotação à Euglena. Convém recordar que a Euglena não tem cérebro.
Só por curiosidade, direi que existem dois tipos principais de fotorreceptores: as Rodopsinas, as únicas que tenho referido, e as Flavoproteínas. No caso da Euglena, o seu fotorreceptor é formado de flavoproteínas; já a sua "colega" Chlamidomonas reinhardtii contém duas rodopsinas de tipo-arcaico

Mancha pigmentada (Olho Protótipo)
Trata-se de uma célula ou de um pequeno conjunto de células fotossensíveis, situadas na superfície de um animal e com capacidade de detectar a intensidade e a direcção da luz, mas incapazes de formar imagens.



Anelídeo marinho Platynereis
A equipa de Arendt fez vários estudos sobre este anelídeo e concluiu que as suas larvas tinham os olhos mais simples, semelhantes ao proto-olho proposto por Darwin, isto é, formados apenas por duas células: uma fotorreceptora e outra de pigmentos protectora.

a - Imagem ao microscópio electrónico de uma larva de 48 horas;
b - Vista anterior mostrando o "olho" direito e o esquerdo;
f - Ampliação do "olho" direito;
g - Ampliação mostrando a "taça" de pigmentos rodeando o fotorreceptor;
h - Reconstituição do "olho" a três dimensões;
i - Esquema mostrando o ângulo de visão do "olho";
j - Reconstituição dos ângulos de visão da larva.
As barras de escala correspondem a 50 μm (a, b, j), 500 μm (e), 5 μm (f) e 2 μm (g, h).  



Planária Polycelis auricularia
As suas larvas possuem, na região da cabeça, múltiplos "olhos", cada um dos quais constituído apenas pelas duas células primárias já referidas: uma fotorreceptora e outra de pigmentos.   

"Olhos" da Larva do Polycelis 
A - Série de olhos prototópicos (E);
B e C - Ampliações crescentes de A;
D - Corte histológico do "olho" (E) da Planaria torva: Ph - célula fotorreceptora; Pc - célula de pigmentos;
PhN - núcleo da célula Ph; PcN - núcleo da célula Pc.


OLHO DE TAÇA
Taça simples pigmentada
Este "olho" surge quando um conjunto de células sensíveis à luz se afunda no corpo do animal, formando uma depressão em forma de taça, cujo formato permite ao animal detectar objectos pelo ângulo de incidência da luz.


Planária
As espécies de Planária apresentam vários ocelos, que são formados por dois tipos de células, as fotorreceptoras e as pigmentadas. As pigmentadas tomam a forma de uma taça e as fotorreceptoras projectam as suas vilosidades para dentro da taça. Detectam a intensidade da luz, indicando também a direcção do movimento para a fonte de luz. Junto da cabeça, por baixo dos ocelos (eye, no esquema abaixo), há um gânglio cerebral (brain, no esquema), uma massa bilobada de tecido nervoso, muitas vezes referido como "cérebro da planária". Apresenta oscilações electrofisiológicas espontâneas, semelhantes às dos animais com cérebros mais desenvolvidos (EEG: ElectroEncefaloGrama).  Do gânglio partem duas "cordas" nervosas, que se estendem até à outra extremidade, e às quais se ligam muitos nervos transversais. Este sistema nervoso tipo escada permite-lhe responder de forma coordenada a estímulos exteriores. Pode dizer-se que os cérebros sofisticados tiveram aqui a sua fonte.  

Superior esquerdo: Corte transversal ao nível do olho da Planária Dugesia japonica (b), 
no qual se podem ver vários "olhos de taça" (e) e a localização do "cerebro" (br);
Superior direito:  Estrutura do "olho" de uma Planária;
Inferior: Esquema de uma Planária, no qual se pode ver o sistema nervoso "em escada".



Taça simples óptica
Nesta versão, a depressão evolui para uma cavidade em forma de uma "taça" com um bocal estreito. O aumento da cavidade e a sua menor abertura proporcionam ao animal um aumento de precisão na detecção do ângulo de incidência da luz.


Gastrópode Abalone

                Abalone Haliotis          Labyrinthuloides haliotis        Estrutura do olho taça
Na imagem do meio, pode ver-se o olho (E) e a concha (s)



OLHO "PINHOLE" (CÂMARA ESCURA)
Apresenta uma abertura muito mais estreita, o que melhora muito a resolução. Quando as "taças" se tornam maiores e mais complexas podem funcionar como uma câmara escura ou pinhole. 

Nautilus
É no molusco Nautius que se encontra o mais impressionante exemplar deste tipo de olho.   

            Nautilus                            Olho do Nautilus                    Estrutura do olho


Pertence ao grupo dos Cefalópodes, uma Classe que evoluiu muito pouco desde há 500 milhões de anos desde o Câmbrico. Tem olhos grandes (10 mm) com milhões de fotorreceptores, músculos que fazem mover os olhos e pupilas que podem variar de tamanho conforme a intensidade da luz. Teria uma sensibilidade muito semelhante à do olho do polvo se tivessem uma lente. A limitação dos olhos pinhole é que qualquer aumento de na resolução é feito à custa da perda de sensibilidade.

Gastrópode Abalone Haliotis
Embora não atinjam a grandiosidade dos olhos do Nautilus, são um outro exemplo deste tipo de olho.

                  Haliotis tuberculata                              Esquema do seu olho pinhole
             
Merecem, no entanto, uma referência devido a uma característica especial: as pérolas Abalone, produzidas por este molusco Haliotis, são consideradas pelos especialistas como as mais bonitas e as mais raras.
As pérolas começam a formar-se quando um objecto estranho, como um parasita ou um grão de areia, se intromete entre a concha e o manto. Então, para se defender do intruso, o epitélio do manto começa a envolver completamente o objecto estranho segregando nácar em finas camadas concêntricas, acabando por formar uma pérola, num processo que pode demorar três anos. As pérolas artificiais são produzidas, introduzindo uma esfera de calcário entre o manto e a concha de uma ostra. 




OLHO COM LENTES
As lentes introduziram um aumento muito significativo na resolução e na nitidez da imagem. As lentes foram formadas devido ao aumento do índice de refracção do material, na câmara, pela adição de substâncias mais densas, como mucos ou proteínas. Estas fazem convergir os raios de luz, reduzindo o ângulo segundo o qual cada fotorreceptor recebe a luz. A evolução deste processo resultou, finalmente, numa lente capaz de formar uma imagem focada na retina.

Cubomedusa Tripedalia cystophora
Todos conhecem ou ouviram falar das alforrecas. Estes animais pertencem ao grupo dos Cifozoários ou Cifomedusas, que estão aparentados com o grupo dos Cubozoários ou Cubomedusas. Aparentemente muito semelhantes, apresentam contudo diferenças importantes.
Uma das diferenças é a sua capacidade para evitar obstáculos. Dados experimentais mostram que essa atitude é guiada visualmente. 
Por outro lado, as Cubomedusas são as únicas entre o filo dos Cnidários que possuem olhos com lentes semelhantes aos dos Cefalópodes e dos Vertebrados. Descobriu-se que têm dois tipos de olhos com lentes, o superior e o inferior, com sensibilidades semelhantes máximas para a luz azul-verde. Esta semelhança resulta provavelmente da presença de um único tipo de fotorreceptor, contendo uma simples Opsina.

Sistema visual da Tripedalia cystophora e o seu Esquema


Tem 4 Ropálios (órgãos sensoriais das Medusas) que alternam com 4 tentáculos (pedalia). 
Cada ropálio  contém quatro tipos distintos de olhos:
- dois de tipo taça pigmentada: dois “olho poço” (pit eye) e dois “olho fenda” (slit eye);
- dois olhos com lentes: o superior e o inferior, que apontam para dentro da campânula.
Tem ainda um cristalino que está preso à base do rodápio (parte superior em B).  


Moluscos Quíton
É o nome de um género de moluscos marinhos, com o corpo coberto de placas.
Foi no quíton Acanthopleura granulata que foram descobertas as primeiras lentes de aragonite. As lentes de outros olhos "de pedra", como os das Trilobites, eram todos de calcite. Tanto a Aragonite como a Calcite são formas de carbonato de cálcio (calcário: CO3Ca) que cristalizam em sistemas diferentes: a aragonite, na forma ortorômbica (pseudo-hexagonal)e a calcite na forma romboédrica.


É muito interessante esta "esperteza criativa" da natureza: como tinha à mão a Aragonite  que formava a carapaça do Quíton, aproveitou-a em vez de andar a encaixar as habituais lentes de Calcite. Também não devemos admirar-nos destes olhos utilizarem "pedra" em vez das nossas lentes vítreas. O importante é que sejam translúcidos.

              
Na carapaça do Acanthopleura granulata estão incrustados centenas de ocelos microscópicos, cada um deles formado por uma camada de pigmentos (pl), retina e lente. Descobriu-se que estas lentes funcionam como olhos "de câmara" e que conseguem a mesma resolução angular tanto no ar como na água. Uma das explicações é que as lentes serão birrefringentes (uma espécie de lentes progressivas, com dois índices de refracção), que as trilobites também possuíam, aproveitando as características da calcite. Assim, através de um índice de refracção focaliza na retina as imagens vindas do ar e com o outro as imagens vindas da água.
Estes ocelos, chamados estetas, podem actuar em uníssono funcionando como um grande e disperso olho composto.

OLHOS COM CÓRNEA
Quando os Vertebrados assaltaram a terra tiveram que adquirir uma nova superfície refrangente, a córnea, devido aos diferentes índices de refracção da água (que tinham dentro do olho) e do ar (o novo meio em que passavam a a viver).
Um dos animais que faz melhor uso da córnea está a Aranha saltadora (Phidippus mystaceus). Alguns  dos seus olho são "telescópicos", o que lhe permite aumentar a intensidade da luz. Além disso, alguns dos seus olhos fazem uma varredura ("scan") para cá e para lá da imagem até que a aranha identifique a natureza do objecto.


Como se vê no esquema, em cima à esquerda, a luz atravessa uma lente "corneal" e entra num tubo telescópico que aumenta a imagem por meio de uma segunda lente antes de atingir a retina. No esquema à direita vemos que a aranha dispõe de oito olhos, dois dos quais, os principais, apontam para a frente e têm como função o reconhecimento dos membros da sua própria espécie. Os três pares restantes, olhos secundários, detectam o movimento e servem para a aranha caçar. Contudo, nas aranhas que constroem teias, os olhos secundárias têm uma deficiente focagem e são usados para apoio à "navegação", detectando a posição do Sol e o tipo de polarização da luz.
Dois outros exemplos são o Polvo e a Lula.



Polvo

         Polvo                                                        Esquema do olho

Lula
O olho da Lula, como o do Polvo, é muito semelhante ao nosso, com uma diferença importante: os raios de luzes seguem um trajecto "rectilíneo" e não andam "para trás e para a frente" como nos nossos nos quais a luz passa pelas fibras nervosas para atingir a retina, que passa a informação às fibras nervosas (ver imagem no princípio deste post que compara o nosso olho com o do polvo).


Parte da Lula onde está o olho                                Esquema do olho

Esta lula-gigante tem cerca de 20 m e pesa uma tonelada. Embora haja animais mais pesados e maiores, como os elefantes e as baleias, nenhum tem um olho tão grande. O olho desta lula, considerado o maior do mundo, tem 25 cm de diâmetro.

Esta Lula tem o maior olho do mundo 

OLHOS ESPELHO
Este é um tipo de olho pouco comum. Alguns camarões (ostracodos) estão equipados com ele, mas os "espelhos" são tão pequenos que dificilmente conseguem construir uma imagem. Contudo há duas excepções notáveis.


Molusco Vieira (Pecten)

        Vieira e Vieira ampliada                              Pormenor de dois olhos

Cada olho é formado por lente, córnea, duas retinas, uma distal e outra proximal, e um revestimento curvo reflector na parte detrás, conhecida por camada de pigmento argentea. Curiosamente, a lente não desempenha qualquer papel na produção da imagem: a imagem é reflectida na camada argentea para a retina distal (ver esquema abaixo). Não se forma qualquer imagem na retina proximal, o que sugere que ela pode funcionar apenas para monitorizar a intensidade da luz. Também poderia servir para detectar outros tipos de sinais sobre alimentos, mesmo não os vendo.

            Estrutura do olho                                         Formação da imagem


Ostracodo Gigantocypris
Os Ostracodos são artrópodes crustáceos diminutos (0,5 a 4 mm) bivalves.

Gigantocypris                                         Esquema do olho
                
O Gigantocypris perdeu os olhos compostos, mas tem um par de olhos naupliares excepcionalmente grandes (20% do seu comprimento). Cada olho está equipado com um grande reflector semelhante a um farol de carro, circular no exo vertcal e parabólco no horizontal. Isto faz com que a luz seja concentrada no foco da parábola, onde se encontra o tecido sensível à luz. É especialmente sensível à luz azul-esverdeada, exactamente a que penetra a maior profundidade nas águas oceânicas e é também a cor princpal da bioluminiscência. Recorde-se que o Gigantocypris vive a profundidades entre 900 e 1300 m. 

(continua)

REFERÊNCIAS

(1*) Javier MONTENEGRO GARCÍA, Síntesis de Retinoides: Síntesis y Evalución biológica de nuevos N-Heteroaril Retinales, p. 27. Na p. 23, começa o capítulo 2.2. Rodopsina y Visión. 
(2*) Lê-se com muito agrado e proveito, sobre este gene e sua evolução, o livro de Neil SHUBIN, Quando nós éramos peixes. O virar de página da teoria da evolução, Estrela Polar, Alfragide 2008, 204 pp..
(3*) Gáspár JÉKELY, Evolution of phototaxis, Phil. Trans. R. Soc. B 364(2009) 2795-2808.