terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler) (2)

Sumário para o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. A caminho do modelo heliocêntrico
12. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
12A. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
13. O génio do "modelo experimental" (Galileu)
14. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
15. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
16. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
17. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
18. Modelo de Einstein
19. Modelo de Friedmann-Lemaître.


(continuação do anterior)

Estamos a falae de Tycho Brahe

~
MORTE POLÉMICA
A tese clássica da sua morte é que ele, por cortesia, não quis abandonar um banquete, tendo retido demasiado tempo a urina o que originaria uma infecção que o matou onze dias depois. Mas a descoberta recente de níveis elevados de mercúrio nos pêlos do seu bigode aponta para envenenamento. Como era um bom alquimista não deve ter sido ele a tomar nada com esse produto tóxico, pelo que há quem pense que possa ter sido algum dos seus funcionários ou colaboradores. Contudo, dado que os resultados não parecem conclusivos, cientistas dinamarqueses pediram, em Fev.2010, para exumar o seu corpo, o que foi autorizado em Novembro passado. Portanto, o melhor é aguardar antes de fazer juízos precipitados.


A exumação tem como objectivo principal tentar identificar a causa da morte do astrónomo, mas também perceber melhor qual a composição da sua famosa prótese nasal: ouro? prata? cobre? em que proporções?

 LEGADO
O seu contributo para a astronomia “experimental” é difícil de exagerar. Ele foi o primeiro astrónomo:
- a calibrar e a testar regularmente a precisão de seus instrumentos, introduzindo a prática das "correcções instrumentais": "Observava as estrelas com o auxílio de uma arbaleta (antepassado do quadrante) e anotava os meus resultados numa pequena caderneta que ainda possuo. Percebi logo que as distâncias angulares determinadas com o auxílio do raio e reduzidas a valores numéricos não concordavam bem entre si. Logo que descobri a causa, elaborei uma tabela, com a ajuda da qual podia corrigir os erros do instrumento”. Isto é, observações com maior precisão necessitam de instrumentos mais precisos, que, por continuarem a ter margens de erro, necessitam de correcções sucessivas.
- a corrigir as observações tomando em conta a refracção atmosférica.
- a fazer registos diários das observações e não apenas quando os astros estavam em configurações especiais, descobrindo assim anomalias nas órbitas até então desconhecidas.

Foi o último grande astrónomo, ou melhor, o maior, a trabalhar sem telescópio: todas as suas medições foram realizadas a olho nu. Apesar desta limitação, as suas observações da posição das estrelas e dos planetas alcançaram uma precisão sem paralelo para a época.




Foi um matemático, astrónomo e astrólogo alemão (Weil der Stadt, 27.Dez.1571 - Ratisbona, 15.Nov.1630).
Nasceu de uma família instável, que ele descreve no seu horóscopo (1*):
- o avô Sebaldus foi burgomestre de Weil, era orgulhoso, muito irritável e obstinado, com um passado de boémio, de rosto vermelho e carnudo; apesar da sua ignorância, era um notável orador; a partir de 1578, começou a sua decadência, social e económica;
- a avó, Katharine Müller, era “inquieta, hábil e mentirosa, embora muito dedicada à religião”;
- o pai era um homem pecaminoso, inflexível, briguento, maldoso, temperamento agravado pela conjugação de Vénus e Marte; estava destinado a um fim lamentável.


A sua vida marcada foi pontuada por uma série de infortúnios que terminaram na longa luta para livrar a mãe da fogueira da Inquisição, que a acusara de feiticeira. Apesar de baptizado católico, foi educado como um protestante, visto que a sua família fora a primeira, em Weil, a converter-se à nova religião. Luterano convicto, viveu um tempo de intensos conflitos religiosos e políticos, que o obrigaram a mudar de cidade, já em adulto: Graz (1594-1600), Praga (1600-1612) e Linz e outros (1612-1630).
O que o salvou foi a sua paixão pela Astronomia que começou muito cedo. Aos seis anos, ficou entusiasmado com o Grande Cometa de 1577, que Tycho Brahe estudou cuidadosamente como vimos, recordando-se que “a sua mãe o tinha levantado para ele o poder ver”.
No meio de toda esta desafinação do mundo, Kepler, determinado em desvendar a mente de Deus, virou-se para os céus em busca de uma harmonia universal. E, acabou à custa de muito esforço, persistência e trabalho intelectual e observacional, por fazer uma verdadeira revolução.
De um modo geral, para lá de trabalhos no campo da Óptica, há três livros que são fundamentais na sua trajectória de cientista:

- Mysterium Cosmologicum (1596), em que a sua perspectiva é apriorística ou “metafísica”, pois não parte da experiência mas de deduções intelectuais, bem retratada nesta frase: “enquanto Copérnico (o) fez com as matemáticas, eu fiz por razões físicas, ou melhor, metafísicas”;
- Astronomia Nova (1609), no qual, sobretudo por influência de Brahe, atribui a prioridade aos dados observacionais e começa a utilizar o “método científico moderno”;
- Harmonices Mundi (1619), onde retoma a sua mentalidade metafísica ou pitagórica e procura, mas agora sempre enquadrado pelos dados experimentais, descrever as distâncias entre os planetas através das harmónicas, a “música dos planetas”, não da “música das esferas” de Pitágoras, pois já percebera pelos dados experimentais que não havia esferas celestes de cristais sólidos.

GRAZ
O seu interesse por Copérnico começou logo, em Tübingen, quando era aluno de Mästlin.
Depois foi para Graz, onde iniciou a sua vida profissional, com professor de matemática. Foi nomeado “matemático provincial” com a função de publicar calendários com previsões astrológicas. Fez algumas predições astrológicas que se confirmaram, entre as quais, a de um rigoroso inverno e a de um ataque de tropas turcas, que o tornaram célebre. Muitos recorriam a ele para que lhe fizesse a carta astrológica, incluindo reis e imperadores que desejavam “obter” alguma luz sobre o futuro.


A sua relação com a Astrologia era um pouco paradoxal, ora perecendo integrar-se no ambiente de credulidade da época, ora criticando-a. Embora fosse perito em fazer previsões astrológicas, fazia-as, não por convicção, mas porque precisava de ganhar dinheiro. Em várias ocasiões classificou a Astrologia como a filha estúpida e prostituta da Astronomia, que dependia desta filha como suporte. Apesar da sua relutância em fazer previsões, parece nunca ter posto o problema de até que ponto as regras e técnicas tradicionais da arte da astrologia deviam ser mantidas ou a reformuladas nem o problema de até que ponto os corpos celestes exercem influência sobre a Terra e os seus habitantes. É verdade que condenou de um modo geral a astrologia, mas conservou a sua terminologia e não só manteve os “aspectos planetários” mas ainda aumentou o seu número  de cinco (conjugação, oposição, sextil, quadratura e trígono) para oito, acrescentando o quintil, o biquintil e o sesquiquadratura (2*).
Talvez o seu verdadeiro estado de espírito se possa deduzir das suas próprias palavras: “Os meus corpos celestes não eram o nascimento de Mercúrio na sétima casa em quadratura com Marte, mas Copérnico e Tycho Brahe; sem as suas observações, tudo o que pude trazer à luz estaria enterrado na escuridão” (3*)

MODELO POLIÉDRICO
A enorme popularidade pública não se reflectia nas aulas de matemática que ministrava.
A sua grande preocupação era aperfeiçoar o modelo de Copérnico, tendo começado por abordar duas questões (4*):
- como determinar a distância dos planetas ao Sol?
- o que é que, na ausência de esferas reais, determinava o seu movimento?
Conta ele que, quando estava, numa aula, a 19.Julho.1595, a explicar a conjugação periódica de Saturno e Júpiter, teve uma “epifania”, uma inspiração súbita: de repente apercebeu-se que polígonos regulares inscritos e circunscritos em círculos, com raios bem definidos podiam ser a base geométrica do Universo. Espantados com a sua atitude extática, os alunos interpelaram-no, ao que ele apenas conseguiu balbuciar: “Deus geometriza! A Geometria é o próprio Deus!”. Aliás, mais tarde na Astronomia Nova (1610) ele vai escrever: "Porquê usar palavras? A geometria existia antes de nós. É eterna como o espírito de Deus, é o próprio Deus. A geometria com as suas esferas, cones, hexágonos e espirais deu a Deus um modelo para a criação e foi implantada no Homem como imagem e semelhança de Deus.“
A epifania aconteceu quando ao desenhar, no quadro preto, um triângulo com um círculo circunscrito e outro inscrito, notou que a proporção entre o raio do círculo maior e o do menor parecia semelhante à que existia entre as órbitas de Saturno e de Júpiter.

Tentou uma segunda distância, entre Marte e Júpiter, com o auxílio de um quadrado; uma terceira, com um pentágono; e, finalmente, uma quarta, com um hexágono. Mas essas tentativas não deram certo, o que o levou a perguntar-se: “por que usar figuras planas (bidimensionais) entre órbitas sólidas (tridimensionais)?”
Então virou-se para os cinco sólidos pitagóricos, já usados pelos gregos que tinham descoberto que apenas cinco sólidos perfeitos ou platónicos podiam ser construídos a partir de figuras geométricas regulares:
- o tetraedro, ou pirâmide, constituído por quatro triângulos equiláteros;
- o cubo, ou hexaedro, composto por seis quadrados;
- o octaedro, ou bipirâmide, composto por oito triângulos equiláteros;
- o dodecaedro, formado por doze pentágonos;
- o icosaedro, constituído por vinte triângulos equiláteros.

(a) tetraedro, (b) octaedro, (c) icosaedro, (d) cubo e (e) dodecaedro

Platão associara esses sólidos aos átomos da natureza, os blocos constituintes de todas as coisas. Kepler encontrou neles outra utilidade: dado que Deus nada cria sem um plano, ele acreditou que por este meio podia calcular as distâncias entre os planetas de modo a priori, isto é, sem necessidade de recorrer a qualquer observação. Os planetas não se encontravam a essas distâncias por acaso; estavam ali por que Deus quis. Mais: o facto de haver apenas cinco sólidos perfeitos, “obrigava” a que só pudessem seis planetas.

                      Modelo poliédrico                      "Sólidos"                 Pormenores interiores do Modelo
      Do livro “Mysterium Cosmographicum
O modelo tem a seguinte sequência: Esfera de Saturno / Cubo / Esfera de Júpiter / Tetraedro / Esfera de Marte / Dodecaedro / Esfera da Terra / Icosaedro / Esfera de Vénus / Octaedro / Esfera de Mercúrio

Por outras palavras, esta associação entre os cinco sólidos regulares e os intervalos existentes entre os planetas não podia ser um mero acaso; tinha que ser “uma dádiva de Deus”, pela qual revelava aos homens a harmonia do mundo, o “mistério cosmológico”.
Kepler passou o resto da vida a tentar obter as provas matemáticas e as observações astronómicas capazes de justificar o seu modelo.
É, neste contexto que escreveu o Mysterium Cosmologicum (Mistério cosmológico) (5*), o primeiro livro, em meio século, que retomava as ideias de Copérnico. Como “teólogo e astrónomo, estava decidido a entender como e porquê Deus havia projectado o Universo. Defender um sistema heliocêntrico tinha sérias implicações religiosas, mas Kepler insistia que a centralidade do Sol era vital para os desígnios de Deus, pois mantinha os planetas alinhados e em movimento. Neste sentido, Kepler desvia-se do sistema heliostático (6*) de Copérnico, com um Sol “perto” do centro, e colocava-o directamente no centro do sistema” (7*).
É evidente que esta era uma hipótese a priori, “metafísica”, já que não fora obtida a partir das observações dos movimentos planetários, como o próprio Kepler reconhece: “E não duvido que tudo o que Copérnico coligiu a posteriori e demonstrou pelos sentidos pode ser demonstrado a priori e sem nenhuma ambiguidade… Eu já estava convencido disso que atribui à própria Terra o movimento do Sol; mas, enquanto Copérnico fez com as matemáticas, eu fiz por razões físicas, ou melhor, metafísicas” (Prefácio do Mysterium Cosmologicum; 1596).
Kepler enviou este livro a Galileu pedindo-lhe que “acreditasse e manifestasse o seu apoio” ao modelo heliocêntrico. Mas Galileu recusou por causa do seu aspecto especulativo.



PRAGA
Pelo contrário, T. Brahe ficou tão impressionado com ele que quis logo contratar Kepler, que não se mostrou muito interessado. Contudo, em 1598, foi obrigado, por ser luterano, a abandonar Graz e, tendo visitado o observatório de T. Brahe em Praga, decidiu aceitar: “A minha opinião acerca de Tycho é a seguinte: ele é extraordinariamente rico, mas não sabe o que fazer com ela, como costuma acontecer com as pessoas. Portanto, devemos procurar aproveitar-nos da sua riqueza”. Mal ela sabia a riqueza que iria encontrar.
Contudo, foi grande a sua decepção, porque Brahe não lhe dava acesso à enorme quantidade de dados experimentais muito rigorosos de que dispunha. Era angustiante ver que Brahe tinha uma pérola mas não a sabia lapidar e que ele, Kepler, sabia lapidá-la mas não a tinha. Para acalmar um pouco a situação tensa, Brahe mandou-o estudar a órbita de Marte, porque não conseguia explicá-la, dado ser a menos circular (a mais excêntrica) de todas.
Assim gastou 8 anos com um problema que pensava resolver em oito dias.
Entretanto, Brahe morreu e Kepler apoderou-se imediatamente dos seus dados, antes que os herdeiros lhes pusessem as mãos: “Confesso que, quando Tycho morreu, rapidamente usufruí da ausência ou da falta de interesse dos herdeiros, tomando as observações sob meus cuidados, ou talvez mesmo usurpando-as”.

É oportuno fazer aqui um parêntese.
As grandes descobertas de Képler, resumidas nas famosas três leis, devem muito aos dados recolhidos durante décadas por Tycho. Mas a sua influência, em vida, foi também muito importante. Brahe, depois de ler o Mysterium Cosmologicum, avisou-o (8*) de que não era assim que se faz ciência: a sua atitude não era “científica” mas metafísica, pois partia da causa para o efeito, quando o caminho correcto era o inverso, dos efeitos para a causa: “No entanto, o mais importante é que eu não aprovo aquilo que no teu engenhoso escrito se mostra, entre outras coisas, como um erro comum, o de atribuir realidade às órbitas celestes. Por esta via, ordenas prontamente as imaginações copernicanas e, desse modo, não negarei que consegues facilmente que os movimentos celestes obtenham uma certa simetria, à qual subjazem razões para os planetas se moverem ao redor de um centro com distância diferente do Sol ou da Terra; mas as proporções das disposições e a harmonia são dadas a posteriori pelos movimentos quando as suas ocorrências se apresentam e, pelo contrário, não se pode pretender que sejam dadas a priori, tal como tu e Mästlin querem”.
Como vimos, Kepler realmente partia de uma hipótese a priori (a dos sólidos perfeitos) para deduzir a realidade do mundo celeste e não da observação dos movimentos dos planetas.
Foi o contacto pessoal com Brahe, durante cerca de dezoito meses, que produziu nele uma alteração radical quanto ao procedimento metodológico. Basta ver o que escreveu oito anos depois, no Astronomia nova (1609): “O meu objectivo no presente trabalho é o de reformular a teoria astronómica (especialmente para o movimento de Marte) em todas as suas três formas de hipóteses (ptolomaica, copernicana e brahiana), de modo a que se possam construir tabelas que correspondam aos fenómenos celestes [...] Inquiro sobre as causas físicas e naturais dos movimentos (dos planetas). O resultado eventual dessas considerações é a formulação de argumentos claros que mostram que a opinião de Copérnico sobre o mundo (sofrendo pequenas alterações) é a verdadeira e que as outras duas são falsas”
Não apresenta nenhum modelo de Universo, nem mesmo o seu poliédrico. Mas testa, como disse, as três formas hipotéticas então em debate.


O empirismo de Brahe colocou um limite à metafísica kepleriana. Entre 1596 e 1609 ocorreu, na concepção de ciência kepleriana, uma mudança no modo de fazer astronomia. Sem abandonar a crença num mundo harmónico, que vai manter até ao fim da vida, absorve a concepção de Brahe de que o conhecimento deve ser elaborado a partir das observações. A influência de Brahe deixa Kepler a meio caminho entre a metafísica e o empirismo radical.

PROBLEMA DE MARTE
Deixámos Kepler às voltas com o problema de Marte. Ele colocara o Sol no lugar da Terra do modelo ptolomaico, mantendo o Equante, que agora ele considera “genial”, mas cuja posição é para ele dificílima de ser calculada. Curiosamente, Kepler ainda não tinha descoberto a sua chamada 1ª lei (a das órbitas elípticas) e, portanto só admitia órbitas circulares.


Após um ano de cálculos, verificou uma conformidade quase perfeita entre os valores obtidos, porém, havia uma discordância de oito minutos de grau para os pontos intermediários. Um erro tão elevado era inaceitável pois a precisão das medições de Brahe eram da ordem de 1´, o que o colocou perante o dilema: ou a sua teoria estava errada ou estava errada a hipótese de que as órbitas dos planetas eram circulares. Então Kepler concluiu que a sua hipótese dos sólidos regulares (e indirectamente das órbitas circulares) era falsa e devia ser abandonada. Foi, então, que fez a afirmação profética de que “estes oito minutos sugerem um novo caminho para uma completa reforma da astronomia”: a aceitação de regras puramente geométricas para descrever a órbita dos planetas deu lugar à busca de causalidades de natureza física. Apesar disso, Kepler não estava ainda capaz de abandonar o modelo circular uniforme dos movimentos celestes, o que dificultava os seus estudos. Deixou Marte em paz e virou-se para a Terra, verificando, então, que o nosso planeta não se deslocava com velocidade uniforme, chegando à lei do movimento planetário segundo a qual o tempo necessário para um planeta percorrer uma mesma área da órbita é proporcional à distância a que está do Sol. Esta lei ficou conhecida pela segunda lei de Kepler (ou lei das áreas), apesar de ter sido descoberta em primeiro lugar.
Repare-se que esta “lei das áreas” não exige órbitas elípticas como se pode ver na imagem abaixo:

A segunda lei é coerente tanto com a órbita circular como com a órbita elíptica
As áreas MNPS e RQAS são iguais.

Quando retomou os estudos da órbita de Marte, já estava com muitas dúvidas quanto à circularidade das órbitas. Dois anos de tentativas, com um movimento circular perfeito, falhadas levaram-no à conclusão de que a órbita deveria ser “uma figura oval”: “Se Deus não quis fazer uma órbita circular então tal órbita não é obrigatória". Mas não podia aceitar a oval dizendo: “Quem és tu Johannes Kepler para destruir a simetria divina?”. Voltou, então, aos epiciclos: dois movimentos circulares combinados podem gerar uma oval.


 Oval construída a partir de quatro círculos     Oval (azul) e Elipse (vermelho) com as mesmas dimensões

Mas não teve sucesso, simplesmente porque … não é possível construir uma elipse com círculos e epiciclos. Durante um ano trabalhou no problema, um ano muito difícil, pois esteve doente e não tinha dinheiro. Em 1603, escreveu a um amigo que “era incapaz de resolver os problemas do ovo; mas se o formato fosse o de uma elipse perfeita todas as respostas seriam encontradas na obra de Arquimedes e Apolónio (outro grego que foi cognominado o Grande Geómetra)”. Então calculou a distância de Marte a Sol em vários pontos da órbita com o máximo de precisão e para melhor poder calcular a oval substituiu-a por uma elipse, na convicção e que as áreas seriam muito semelhantes. Tentou fazer interpolações, mas ao procurar transferir as distâncias do seu modelo de epiciclos para o local correcto na oval não teve sucesso, pois não sabia a forma da curva. Por tentativas sucessivas chegou a uma equação matemática que descrevia o movimento de Marte, mas não se apercebeu de que essa era a equação da elipse. Por isso, abandonou-a e voltou-se para a curva geométrica da elipse (8*).
Mais tarde viria a confessar: “Pus de lado (a equação original) e voltei-me para a elipse acreditando que se tratava de uma hipótese totalmente diferente, quando as duas, como provarei no próximo capítulo, são uma mesma coisa… Que burro que eu fui!”.
Para nós, actualmente, pode parecer estranha esta dificuldade de Kepler. Mas talvez a imagem abaixo ajude, se nos pusermos no lugar de quem não sabe matemática. De um modo simplista, é como se Kepler, ao seguir dois caminhos – geométrico (com figuras) e o algébrico (com equações)  – chegasse a esta situação:

                          Caminho geométrico                                                       Caminho algébrico.

Quem não percebe de matemática não consegue ver que a curva é a mesma - uma elipse - porque estão "escritas" em linguagens diferentes. Vou repetir esta imagem, mas acrescentando algumas informações explicativas:

                Construção geométrica da Elipse                                             Equação “algébrica” da Elipse
                      pelo método do Jardineiro                                                        a é o semi-eixo maior
                       r + s é sempre constante                                                          b é o semi-eixo maior
                                                                                                                    r + s é sempre constante

Finalmente, ao fim de seis anos, percebeu que a órbita só podia ser elíptica e não circular. E assim descobriu a sua primeira lei, que cronologicamente foi a segunda!.


Resumindo
Neste momento, Kepler tinha as suas duas primeiras leis formuladas:
1ª lei - Os planetas movem-se em órbitas elípticas ocupando o Sol um dos focos.
2ª lei – O raio vector (raio que “liga” o planeta ao Sol) varre áreas iguais em tempos iguais.

Kepler conta, no Astronomia Nova, como foi longa e tortuosa a investigação de quase oito anos sobre o movimento de Marte e da extensão aos outros planetas. Um trabalho extremamente exaustivo que ele exprimiu nestes termos: “Se estás aborrecido com este cansativo método de cálculo, tem piedade de mim que tive que o repetir, pelo menos setenta vezes, numa enorme perda de tempo”.
Trata-se de um livro de um conteúdo matemático denso, que demonstra, pela primeira vez, a superioridade da astronomia copernicana.


O título resume bastante bem o livro e o seu ingente esforço:
- o conteúdo está fundamentado nas rigorosas observações (ex observationibus) de Tycho Brahe;
- a nova astronomia está baseada na “física celeste" (Physica Coelestis), o que é uma outra novidade radical: é a primeira vez que se combina a física e a astronomia, tentando criar uma Mecânica Celeste, numa altura em que ainda não tinham sido descobertos nem o cálculo infinitesimal nem mesmo os fundamentos da Mecânica Clássica;
- obtida depois de um aturado estudo de muitos anos (plurium annorum pertinaci studio), durante os quais teve de proceder a longas e penosas aproximações.

Resumindo (10*):
Kepler concluiu que Copérnico fizera três suposições incorrectas:
1 – Os planetas descrevem órbitas circulares;
2 – Os planetas deslocam-se a velocidades constantes;
3 – O Sol está no centro destas órbitas.
E corrigiu-as para:
1 – Os planetas descrevem órbitas elípticas e não circulares (1ª lei);
2 – As velocidades dos planetas variam constantemente;
3 – O Sol não está no centro destas órbitas, mas sim num dos focos da elipse que os planetas percorrem.

Uma pergunta que alguém pode pôr legitimamente é a seguinte: sendo a geometria da elipse conhecida já pelos gregos, por que é que ninguém tinha sugerido ainda órbitas elípticas? Podem apontar-se duas razões:
- “teológica”: a crença indiscutível, quase dogmática, na sagrada perfeição dos círculos;
- “da evidência”: as órbitas pareciam mesmo circulares, porque são muito ligeiramente elípticas.



ÓPTICA MODERNA
Tendo observado vários fenómenos inexplicados durante os eclipses lunar e solar, como os tamanhos inesperados da sombra, a cor vermelha no eclipse total da lua ou um anel luminoso num eclipse total do sol, interrompeu o seu trabalho com Marte, em 1603, para estudar estes fenómenos que considerava relacionados com a refracção atmosférica. Deste estudo deu conta no Astronomiae Pars Optica (A parte óptica da Astronomia), (1.Jan.1604), que é hoje considerado como a base da Óptica moderna.
Nele apresenta a lei do “inverso do quadrado” (quando duplica a distância, a intensidade da luz diminue para um quarto do valor inicial), a reflexão da luz pelos espelhos planos e curvos, os princípios da câmara escura, as implicações astronómicas ópticas como a paralaxe.
Estudou o olho humano e terá sido o primeiro a reconhecer que as imagens eram projectadas invertidas pela “lente do olho” na retina e eram depois “corrigidas” nas “cavidades do cérebro” devido á “actividade da alma”.


Em Out.1604, surgiu uma (super)nova da qual Kepler estudou as propriedades astronómicas: observou o decaimento da sua luminosidade, especulou sobre a sua origem e serviu-se da falta de paralaxe para argumentar que ela estava na esfera das estrelas fixas, pondo em causa a imutabilidade dos céus proposta por Aristóteles. Tudo isto foi descrito no De Stella nova in pede Serpentarii (Sobre a nova Estrela no pé do Serpentário; Praga, 1606)
Para os astrólogos, a quem Kepler não dava grande crédito, o final de 1603 marcava o início de um “trígono de fogo” (fiery trigon é uma das quatro conjugações do Zodíaco, envolvendo o Carneiro, o Leão e o Sagitário), o começo de um ciclo de 800 anos de grandes conjugações; os dois anteriores teriam começado com a coroação de Carlos Magno (800) e com o nascimento de Jesus.
Apesar disso, foi Kepler quem deu o contributo mais importante para considerar a Estrela de Belém como um fenómeno astronómico real. Ele observara, antes do Natal de 1603, uma conjunção entre Júpiter e Saturno e, fazendo cálculos, concluiu que uma conjunção semelhante teria ocorrido no ano 7 aC, com a particularidade de ser uma conjunção tripla, que é um fenómeno raro.
No ano seguinte, observou uma conjugação ainda mais rara, a de Júpiter, Saturno e Marte. Calculando a frequência deste fenómeno, determinou que era de 805 anos. Portanto, em 799 dC, mas também no ano 6 aC, data próxima provável para o nascimento de Cristo. Se continuasse teria 811 aC (presumível tempo do profeta Isaías), depois a 1616 aC, (período de Moisés)... até que, se continuássemos, chegaríamos a 4031 aC, data que, na altura, era a apontada para a criação de Adão e Eva! Kepler, na altura, não relacionou directamente esta conjugação com a Estrela de Belém. Foi, então, que ele viu a (super)nova, referida acima. O seu erro foi relacionar a conjunção dos três planetas com o aparecimento da nova estrela: uma coisa teria sido consequência da outra. Depois julgou que no tempo do nascimento de Cristo se teria dado um fenómeno semelhante. Por isso, durante muitos anos, se pensou que a estrela de Belém poderia ter sido uma "nova".



PROBLEMA DA "GRAVIDADE"
O modelo de Kepler era simples, “belo” (11*) e bastante preciso na previsão das órbitas dos planetas. Mas não foi aceite, não só por causa da “evidência” do Sol andar em volta da Terra, como já acontecera com Copérnico, mas porque não conseguia dar resposta a uma questão que, curiosamente, ocupava o seu espírito, já desde jovem: o que é que, na ausência de esferas reais, determinava o movimento dos planetas? Ou, por outras palavras, como podem a Terra e os planetas manter-se em órbita em torno do Sol, se tudo o que vemos é atraído para a Terra? E com que mecanismo? Que força está por trás de tudo isto?
Quanto à fonte não havia dúvidas de que tinha de ser o Sol. Até porque, dentro da perspectiva religiosa de Kepler, o Sol era o símbolo de Deus Pai, como se pode ver nestas suas palavras, reveladoras, também, da sua perspectiva metafísica: “Existem três coisas em particular sobre as quais eu persistentemente persigo as razões pelas quais elas são de tais modos e não de outros: o número [dos planetas], o tamanho e o movimento dos círculos. O meu desafio deve muito à esplêndida harmonia entre as coisas que estão em repouso, o Sol, as estrelas fixas e o espaço intermediário, idênticos ao Pai, ao Filho e as Espírito Santo.” (12*).
No Mysterium Cosmológicum, cap. 20, Kepler falara de “uma alma motriz» (motricem animam), cuja força (virtutis) decrescia (languescat) com a distância, causando um movimento mais rápido ou mais lento conforme os planetas se moviam mais perto ou mais distante do Sol: "...motricem animam in orbium omnium centro, scilicet in Sole, quae, ut quodlibet corpus est vicinus, ita vehementius incitet: in remotioribus propter elongationem et attenuationem virtutis quadammodo languescat" (... uma força motriz no centro de todas as órbitas, isto é, no Sol, que, quando o corpo está próximo, o impele com mais violência; quando está longe, por causa da elongação e atenuação da força, enfraquece).
Entretanto, em 1600, W. Gilbert publicou o De Magnete, Magneticisque Corporibus, et de Magno Magnete Tellure (Sobre os ímanes, os corpos magnéticos e o grande íman terrestre), no qual concluía que a Terra funcionava como um íman magnético, isto é,  possuía uma “alma” (“anima”) magnética. Era por essa razão que as bússolas apontam para o Norte e, não, como antes se pensava, devido à Estrela Polar ou a grandes ilhas magnéticas no Pólo Norte. Para o demonstrar, construiu um íman em forma de esfera, a Terrella (pequena Terra), e verificou que o comportamento da agulha magnética ao redor da Terrella era muito semelhante ao que ocorria com a inclinação magnética na Terra: no Equador, a inclinação é zero, ou seja, a agulha fica paralela ao horizonte; nos Pólos, a inclinação é 90 graus: a agulha aponta para o chão.


Como base física, Kepler serviu-se da analogia da “alma magnética” da Terra de Gilbert e do seu próprio trabalho em Óptica. Mas introduziu uma variante muito significativa: já não fala de “uma alma motriz” (perspectiva metafísica) mas de uma força motriz (virtus motrix) (perspectiva “física”) radiada pelo sol, que enfraquecia (attenuetur): “virtus ex sole motrix, per mundi amplitudinem attenuetur” (13*).


LINZ
Em 1612, com a morte de Rodolfo II, aceitou o convite para matemático e professor no colégio distrital de Linz. Desapontado com a fraca recepção do seu livro Astronomia Nova, virou-se para outros domínios.
Até escreveu um dos seus artigos mais originais, Sobre o floco de neve com seis vértices”. Képler não só reconheceu que os cristais de gelo tinham seis vértices, mas percebeu que a pergunta mais importante era qual a razão dessa simetria. Que molde ou que força pode produzir milhões desses flocos a partir de água gelada? Presumiu que os flocos de neve se devem formar por agregação de unidades menores e que essa hexalateridade tinha a ver com uma maior estabilidade. O que o deixou ainda mais intrigado foi ter encontrado outros exemplos, como os favos do mel ou a disposição das sementes de uma romã. Mas não conseguiu arranjar uma solução para o problema.

De vero anno (1614)
O seu primeiro trabalho, nesta cidade, foi sobre o ano do nascimento de Jesus, o De vero Anno quo aeternus Dei Filius humanam naturam in Utero benedictae Virginis Mariae assumpsit (Acerca do verdadeiro ano em que o Filho eterno de Deus assumiu a natureza humana no útero da bendita Virgem Maria). Nele demonstrou que o calendário cristão estava errado em cinco anos, pois Jesus tinha nascido no ano 4 aC, data actualmente aceite. Este erro resultava do facto de Dionísio o Exíguo ter assumido que Jesus nascera no ano 754 AUC (Ab Urbe Condita, a partir da fundação da cidade (Roma) que se supunha ter sido em 753 aC), correspondente ao ano 46 do calendário juliano (CJ) e que passou ser o ano 1 da era cristã. Entretanto vários historiadores concluíram que Herodes morrera, depois do nascimento de Jesus, no ano 42 CJ. Assim Jesus teria nascido no ano 41 CJ, ou seja cinco anos antes do que Dionísio estabelecera.

 


HARMONICES MUNDI
Entretanto a confusão instalou-se na sua vida: o início da guerra (religiosa) dos Trinta Anos, a luta por salvar a mãe da fogueira da Inquisição, o incêndio criminoso da oficina onde estava a imprimir as Tabelas Rodolfinas. Apesar de tudo isso, conseguiu publicar, entre 1617 e 1621, os sete volumes do Epitome Astronomiae Copernicanae (Compêndio da Astronomia copernicana), a introdução mais importante à astronomia heliocêntrica. Logo que saiu a primeira parte foi parar ao Index dos livros proibidos, porque punha em causa o Salmo 105,5: “Fundaste a terra sobre bases sólidas; ela mantém-se inabalável para sempre” (14*).
Com essa confusão toda, deixou de se interessar pelas Tabelas Rodolfinas e começou a trabalhar no Harmonices Mundi (Harmonias do Mundo) (1619), que um dos seus biógrafos, Max Caspar, classifica como “uma grande visão cósmica, tecida de ciência, poesia, filosofia, teologia e misticismo”.
É neste livro que aparece a que hoje chamamos a "Terceira Lei de Kepler", segundo a qual “os quadrados dos períodos de translação dos planetas em torno do Sol são proporcionais aos cubos dos raios médios de suas órbitas":
P2 = k a3
onde k é a constante de proporcionalidade. Para os mais curiosos aí vai a lei escrita de outra maneira, a partir da qual pode determinar o valor de k, que tem um valor constante (r é o mesmo que a).


Desde o início, Kepler procurava algo que relacionasse os tamanhos das órbitas com os períodos de revolução (translação), até que finalmente, ao fim de quase vinte anos, pouco antes da impressão do seu Harmonices Mundi, a descobriu, como ele mesmo conta:
“Se se desejar saber a hora exacta, ela foi concebida mentalmente no oitavo dia de Março neste ano de 1618, mas infelizmente foi submetida a cálculo e rejeitada por se revelar falsa, voltando finalmente no 15º dia de Maio, com um novo ataque, vencendo em combate a escuridão da minha mente pela grande demonstração obtida pelo meu labor de 17 anos à volta das observações de Brahe e das minhas meditações sobre elas unindo-as numa só concordância, de tal modo que primeiro eu julgava estar a sonhar e supunha o objecto da minha busca entre os princípios. Mas é absolutamente certo e exacto que a razão entre os períodos de quaisquer dois planetas é precisamente a razão da potência 3/2 das distâncias médias, ou seja, das próprias esferas” (15*).
Também neste livro recuperou a teoria pitagórica segundo a qual os planetas entoavam uma sinfonia, uma “música das esferas”, mas não das esferas, mas sim uma "música dos planetas".
Os gregos tinham descoberto que os sons das cordas da lira são agradáveis aos ouvidos – harmónicos – quando a razão dos comprimentos de duas cordas é simples: uma tem metade do comprimento da outra, ou três quartos, ou cinco oitavos. Rafael presta-lhes homenagem na Escola de Atenas:

              Pitágoras e um  discípulo                            Escola de Atenas (RAFAEL; 1510)

O fundamento matemático da harmonia musical está representada na tabuinha que o discípulo de Pitágoras segura.

Na parte superior das cordas da lira aparecem, em notação romana, os números 6, 8, 9, 12, das proporções musicais. As consonâncias musicais chamavam-se: diatéssaron (6/8, 9/12); diapente (6/9 y 8/12); diapasão ou octava (6/12). Na parte inferior, o número 10 sob a forma da sagrada Tetractys.

A Tecratys, também chamada a “Tétrade Mística”, era um símbolo místico muito importante para a adoração secreta dos Pitagóricos:
Abençoa-nos, número divino, tu que geraste os deuses e os homens! Oh santa, santa Tetractys, tu que conténs a raiz e a fonte da criação que flui eternamente! O divino número começa com a unidade profunda e pura até chegar ao santo quatro; então ele gera a mãe de tudo, a que tudo envolve, a que tudo liga, o unigénito, o que nunca-muda, o que nunca-se-cansa, o santo dez, que tudo suporta" (16*).

Ao questionar-se por que uma razão envolvendo o número 7 (como 1/7 ou 3/7) seria dissonante, Kepler usou a geometria para explicar que triângulos, quadrados e pentágonos, quando inseridos num círculo, o dividem em arcos de tamanhos iguais, o que não ocorre com o heptágono (figura de sete lados).
Refutando as teorias musicais dos antigos gregos, Kepler questionou-se se (não) haveria mesmo uma “unidade” ou um “intervalo” mínimo a partir do qual todas as harmónicas pudessem ser construídas. Mas não teve sucesso. O que conseguiu foi encontrar mais relações harmónicas, que depois aplicou às órbitas dos planetas.


O seu temperamento místico e especulativo esteve na base da sua constante pesquisa de relações entre diversas grandezas numéricas do Sistema Solar. Depois de ter enunciado a sua terceira lei sobre as órbitas dos planetas, elenca uma série de axiomas que o levaram a concluir que os modos ou tons musicais são reproduzidos de uma certa maneira nas extremidades dos movimentos planetários: “Assim, os movimentos dos céus nada mais são do que uma infindável polifonia (inteligível, mas não audível) com afinações dissonantes, como certas síncopes ou cadências (nas quais os homens imitam essas dissonâncias naturais), que tendem para determinadas cláusulas fixas e predeterminadas – as cláusulas individuais como seis termos (como vozes) – e que marcam e distinguem com estas notas a imensidão dos tempos. Portanto, não é surpresa que o homem, imitador do seu Criador, tenha finalmente descoberto a arte de cantar polifonicamente (per concentum), que era desconhecida dos Antigos, especialmente para poder tocar a eternidade do tempo criado no pequeno período de uma hora por meio de uma concórdia artística de muitas vozes e que possa até certo ponto demonstrar a satisfação de Deus, o Artífice, com as Suas próprias obras, no doce sabor da sensação de prazer extraída da música que imita Deus” (p. 695). A comparação que Kepler faz entre as harmonias celestes e a música polifónica do seu tempo pode ser exemplificada por este trecho do “O crux ave, spes única" de Palestrina (1525-1594).

 “Cada uma das quatro (17*) vozes (como aconteceria com os seis planetas de Kepler) move-se de uma corda consonante para outra, enquanto segue uma linha melódica graciosa. De vez em quando, pedaços da escala ou tons de passagem são usados para dar a uma voz mais expressividade de liberdade melódica. Pela mesma razão, uma voz pode permanecer na mesma nota enquanto as outras mudam para um novo acorde. Quando isto resulta numa dissonância (chamada síncope) no novo acorde, resolve-se geralmente movendo um tom para baixo para alcançar um tom que é consonante com as outras vozes. Tal, como neste exemplo, cada secção ou “condição” termina com uma cadência” (18*).

Kepler imaginou um coro no qual Mercúrio, a voz mais aguda, seria o Soprano, Vénus e Terra, os Contraltos, Marte, o Tenor, enquanto Júpiter e Saturno, as vozes mais graves, seriam os Baixos. Nesta sua teoria da música celestial, ao planeta Terra correspondia um intervalo musical de meio-tom. Kepler fez esta descoberta durante a Guerra dos Trinta Anos, o que o levou a pensar que a Terra produzia um lamento constante contra a miséria e a fome que reinavam na altura: “Tellus canit MI-FA–MI ut vel ex syllaba conjicias, in hoc nostro domicilio Miseriam et Famen obtinere” (A Terra canta MI - FÁ - MI de forma que possamos deduzir dessas sílabas que neste nosso lar há Miséria e Fome)" (p. 686).

Música dos Planetas segundo Kepler (19*)
Nota pessoal: apesar de não saber nada de música, não consigo perceber como é que a Terra canta MI – FÁ – MI, nesta escala, atendendo a que, quer na notação antiga quer na notação moderna, as notas que aparecem são SOL – LÁ bemol (para manter o meio tom) – SOL. Mas isto é deve-se certamente à minha ignorância!

Enquanto os filósofos medievais falavam metaforicamente da "música das esferas", Kepler descobriu harmonias físicas no movimento planetário, a "música dos planetas". Verificou que a diferença entre as velocidades angulares máxima e mínima de um planeta na sua órbita se aproxima de uma proporção harmónica. Desse modo, considerando os sete intervalos consonantes da oitava do seu tempo: 1:1 (uníssono); 1:2 (oitava), 2:3 (quinta), 3:4 (quarta), 4:5 (tércia maior), 5:6 (tércia menor), 3:5 (sexta maior), 5:8 (sexta menor), estabeleceu as seguintes harmonias dos seis planetas conhecidos: Saturno 4:5 (uma tércia maior), Júpiter 5:6 (uma tércia menor), Marte 2:3 (uma quinta), Terra 5:16 (um meio tom), Vénus 24:25 (um sustenido) e Mercúrio 5:12 (uma oitava e uma tércia menor), calculando as razões afélio/periélio de cada um deles (20*).

FICÇÃO CIENTÍFICA
O seu livro editado postumamente (1634), o Somnium (O Sonho), é interessante por duas razões: 1) com a sua fantasiosa viagem à Lua torna-se o criador da ficção científica; 2) faz uma descrição dos movimentos celestes a partir de um observador colocado na Lua originando uma engenhosa polémica a favor do sistema copernicano.
A origem do livro está na pergunta que, em 1609, o imperador Rodolfo lhe fez sobre o significado das zonas obscuras que se viam na superfície da Lua. Kepler respondeu, para espanto de todos, que, seguramente, eram as sombras das montanhas lunares.
O livro tem algo de autobiográfico. O protagonista é um jovem islandês, cuja mãe ganha a vida a vender ervas para filtros de amor, elixires de vigor e poções de vingança. O jovem vai estudar com Tycho Brahe e, quando regressa, a mãe diz-lhe que esse Tycho pode ter-lhe ensinado muito, mas ela conhece uns demónios que o podem levar a Lua.
Então partem os dois durante um eclipse da Lua para evitar a radiação solar protegidos pela sombra da Terra (uma ideia digna de Kepler). A partida é violenta, porque foi conseguida à custa da explosão de toneladas de pólvora, mas, depois de libertada da influência terrestre, a nave segue uma trajectória curva sem necessidade de motor (uma ideia digna não já de Kepler, mas de Newton, que ainda não tinha nascido). Ao alunar, verificam que os seus habitantes crescem muito depressa e vivem muito pouco. Só aparecem ao entardecer e logo voltam a mergulhar na noite escura. Guardam a água em cavernas para a proteger das insuportáveis temperaturas diurnas (uma ideia digna de Arthur Clarke).
Convém não esquecer que a sua mãe foi acusada de feiticeira: talvez vendesse mesmo algumas ervas especiais!?

Não foi certamente por este livro, mas sim pelo seu enorme contributo científico, que foi homenageado com uma cratera lunar a que foi dada o seu nome.



CONCLUSÃO
Acreditava que tinha descoberto a lógica de Deus, na planificação do Universo e não conseguia conter a sua felicidade: “Estou livre para renunciar à loucura sagrada, estou livre para provocar os mortais com a franca confissão de que estou furtando os vasos sagrados dos Egípcios para construir com eles um templo para o meu Deus, longe da terra do Egipto. Se me perdoarem, regozijar-me-ei; e se se encolerizarem, saberei resistir. Os dados foram lançados e estou a escrever este livro – se para ser lido pelos meus contemporâneos ou apenas para a posteridade, pouco me importo. Que ele espere durante cem anos, já que o próprio Deus tem estado à espera do Seu contemplador durante seis mil anos (21*)” (pp. 652-653).

EPITÁFIO (22*)
Foi esta a frase que deixou para colocarem no seu túmulo:
Mensus eram coelos, nunc terrae metior umbras
Mens coelestis erat, corporis umbra iacet.
Medi os céus, agora as sombras da terra meço,
No céu está o espírito, na terra jaz a sombra do corpo.




Referências bibliográficas

(1*) ALESSANDRO ARLINDO DE OLIVEIRA ASSUNÇÃO, Breve Reflexão Sobre a Trajectória Intelectual de Johannes Kepler e as Fundações da Astronomia Moderna.
(2*) LYNN THORNDIKEHistory of Magic and Experimental Science, Parte 12 (Kepler e Galileu), pp. 17ss.
(3*) MARIA DE FÁTIMA OLIVEIRA SARAIVA, Astronomia e astrofísica, p. 529.
(4*) ROY PORTER, KATHARINE PARK, LORRAINE DASTON, The Cambridge History of Science: Early modern science, pp. 581ss.
(5*) Às vezes pode haver confusão com o título deste livro. O que realmente aconteceu foi que, em 1594, Kepler publicou o seu primeiro livro, Prodromus dissertationum cosmographicarum continens mysterium cosmographicum de admirabili proportione orbium celestium deque causis coelorum numeri, magnitudinis, motuumque periodicorum genuinis et propiis, demonstratum per quinque regularia corpora geometrica, que ficou conhecido pelo título abreviado Mysterium Cosmographicum (Mistérios do Universo), no qual enumera os argumentos em favor da teoria copernicana e contra a ptolomaica, mas que passou um pouco despercebido. No entanto, como já referi, Kepler queria saber por que escolhera Deus seis planetas e não um outro número qualquer. É este o problema, que aborda no Mysterium Cosmologicum (1596), e resolve com os “sólidos regulares” (cf LEOPOLD INFELD, “From Copernicus to Einstein”, in B. BIENKOWSKA,C. CENKALSKA, The Scientific World of Copernicus: On the Occasion of the 500th Anniversary, p. 69).
(6*) A palavra “heliostático” aparece várias vezes não para demonstrar a exacta centralidade do Sol, mas para recordar que ele estava fixo no sistema copernicano. Contudo, isto não é razão suficiente para que não se utilize a palavra já consagrada de “heliocêntrio
(7*) STEPHEN HAWKING, Aos Ombros de Gigantes, Texto, 2010, p. 646. Algumas das citações seguintes são deste comentário.
(8*) CLAUDEMIR ROQUE TOSSATO, Discussão cosmológica e renovação metodológica na Carta de 9 de dezembro de 1599 de Brahe a Kepler, in Scientiae Studia vol.2 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2004. Este artigo também me forneceu ideias e algumas citações para o capítulo anterior dedicado a Tycho Brahe.
(9*) ANTÓNIO S.T. PIRES, Evolução das Ideias da Física, pp. 107ss.
(10*) SIMON SING, Big Bang, pp. 70-77.
(11*) Os cientistas são muito sensíveis a dois “argumentos” extra-científicos. Um deles, a “navalha de Occam”, que já apresentei um ou dois posts atrás, estabelece que entre duas teorias é de aceitar a que exigir menos pressupostos, isto é, a que seja mais “simples”. O outro é o da beleza de uma teoria ou de uma formulação matemática. Esta é uma beleza científica que tem a ver com o modo como se desenrola os argumentos e como ela responde às dificuldades surgidas. Como sugestão de leitura deixo este pequeno artigo: GABRIEL FERRERO, Uma estranha beleza. Será possível encontrar bonita uma equação matemática ou uma teoria física?, in Ciudad Nueva (www.ciudadnueva.org.ar).
(12*) CLAUDEMIR ROQUE TOSSATO, Mysterium Cosmographicum: Os Antecedentes das Duas Primeiras Leis Keplerianas dos Movimentos Planetários, in CADERNOS ESPINOSANOS V (1999), p. 41. Este artigo mostra as dificuldades e a evolução epistemológica de Kepler.
(13*) ANASTASIA GUIDI ITOKAZU, A Força que Move os Planetas: Da Noção de Species Immateriata na Astronomia de Johannes Kepler. A citação vem na nota 2 da p. 2 (212). Este artigo descreve a relação de causalidade entre o Sol e os movimentos dos planetas, mediada pela acção da força motriz solar. Kepler utiliza, como vimos, uma dupla analogia: a do magnetismo de Gilbert e a da luz que ele próprio estudara. O magnetismo deu-lhe a ideia da “alma” ou da “força” motriz radiada pelo Sol. Kepler começou por equiparar o enfraquecimento ou “atenuação” da força motriz com o da luz. Mas rapidamente se deu conta que a lei quadrática da atenuação da luz (se a distância a percorrer duplica, a luz atenua-se quatro vezes) não servia para a força motriz. Para satisfazer os dados observados nos movimentos do planeta, a força devida decrescer linearmente (se a distância duplica, a força motriz passa a metade e não a um quarto). O artigo discute ainda o significado de species immateriata, a palavra utilizada por Kepler para definir as emanações imateriais como a luz, a força motriz e o magnetismo, pelas quais os corpos influenciam os que estão nas suas proximidades.
(14*) MARIA DE FÁTIMA OLIVEIRA SARAIVA, o. cit., pp. 528-529.
(15*) KEPLER, Harmonias do Mundo, Livro V, cap. 3, traduzido em STEPHEN HAWKING, o. cit., pp. 663-664. As citações, que são apenas referidas pelas páginas, são tiradas deste livro.
(16*) A Tetractys simboliza os quatro elementos: terra, ar, fogo e água. Os quatro primeiros números também simbolizam a harmonia das esferas e do Universo. As quatro linhas somam dez, que é a unidade de uma ordem superior. E representam a organização do espaço: a primeira linha, a dimensão 0 (um ponto); a segunda, a dimensão 1 (uma linha de dois pontos); a terceira, a dimensão 2 (um plano definido por um triângulo de três pontos); a quarta, a dimensão 3 (um tetraedro definido por quatro pontos).
(17*) A tradução portuguesa traz “poucas”.
(18*) STEPHEN HAWKING, o. cit., p. 695.
(19*) ID, p. 685.
(20*) JOSÉ FRANCISCO RODRIGUES, A matemática e a música, p. 21.
(21*) Esta era a idade atribuída à criação da Terra (e do Universo), de acordo com os dados bíblicos.
(22*) MAX CASPAR, CLARISSE DORIS HELLMAN, Kepler, p. 359.

O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)

Sumário para o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. A caminho do modelo heliocêntrico
12. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
13. O génio do "modelo experimental" (Galileu)
14. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
15. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
16. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
17. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
18. Modelo de Einstein
19. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Uma imagem por post
 


Tycho Brahe e Kepler fazem uma dupla inseparável: Tycho, porque conseguiu realizar as observações astronómicas mais rigorosas possíveis, mas não sabia “matemática” suficiente para delas tirar todas as consequências; Brahe, porque tinha a “matemática”, mas não tinha os dados observacionais.

Durante décadas, Tycho melhorou aparelhos de medida e inventou outros chegando a fazer observações, a olho nu (o telescópio ainda não tinha sido inventado), da ordem de um minuto de grau: cerca de dez vezes mais precisas do que as obtidas antes dele. A imagem abaixo procura ajudar a perceber que 1 minuto de grau corresponde ao sector de arco que se obtém dividindo uma circunferência em 21 600 fracções.

360 (graus) x 60 (minutos que tem cada grau) = 21 600

Foi a precisão destes dados experimentais que permitiu a Kepler descobrir que os planetas não se moviam a velocidades constantes (2ª lei) e que as suas órbitas eram elípticas (1ª lei). Efectivamente, ao verificar que os seus cálculos, no caso do planeta Marte, davam um desvio de 8 minutos de grau relativamente às tabelas de Brahe, concluiu que a sua teoria tinha de estar errada, porque Brahe nunca cometera um erro daquela grandeza!
Mas disto tudo tratarei a seguir. Embora fale de cada um deles em separado, é inevitável haver alguma duplicação, porque as suas vidas, a dada altura, entrelaçaram-se de um modo muito profundo.


TYCHO BRAHE (Skåne, 14.Dez.1546 — Praga, 24.Out.1601)
Foi um astrónomo e alquimista dinamarquês que, apesar de ter sido o melhor astrónomo experimental antes do surgimento do telescópio e, com as suas cuidadosas observações, ter sido fundamental para a formulação das leis de Képler, não é muito referido.
O seu tio, que era muito rico por ter salvo a vida do rei Frederico II, queria fazer dele um bom “funcionário público” pelo que o mandou numa viagem de estudo pela Europa. Mas ele preferia a astronomia.
Tinha um temperamento irascível, era beberrão e glutão e adorava meter-se em disputas. Uma delas, causada por ter falhado a previsão astrológica da morte de Solimão, o Grande, terminou em duelo, tendo-lhe o seu adversário cortado o nariz, que ele substituiu por uma prótese de ouro, prata e cobre.
Mais tarde, já famoso, Frederico II ofereceu-lhe a ilha de Hven, em Oresund, e ajuda para a construção de um observatório.


Foi nessa ilha que Tycho construiu, a partir de 1576, o Uraniborg, “Castelo dos céus”, que tinha uma grande observatório à superfície e na cave um apetrechado laboratório para as suas experiências de alquimia.

  Plano do castelo e do Observatório de Uraniborg                                 Edifício Principal
                                                                                                  (Astronomiæ Instauratæ Mechanica 1598)

Foi um projecto caríssimo, pois estima-se que terá custado 1% do orçamento do Estado: em números actuais, qualquer coisa como 5 mil milhões de euros.
Contudo, como a força dos ventos fazia oscilar os aparelhos, Brahe decidiu mudar o observatório para um lugar mais adequado para fazer as observações, junto do Uraniborg. Foi assim que nasceu o Stjerneborg ("Castelo das estrelas"), um espaço, mais pequeno e aberto, destinado exclusivamente às observações astronómicas: os instrumentos foram colocados no sub-solo, cobertos por persianas de correr ou domos rotativos.

Aí procedeu a observações sistemáticas e rigorosas, noite após noite, entre 1576 e 1597, utilizando os instrumentos mais precisos que pode, para cumprir o seu grande objectivo a que se propusera aos 17 anos. Aqui mediu sistematicamente as várias posições e movimentos de 777 estrelas, tendo contando com a colaboração da sua irmã Sofia.
Aperfeiçoou os instrumentos já existentes e inventou outros totalmente novos. Construiu vários relógios (clepsidras, baseadas no escorrimento da água, ampulhetas de areia, velas graduadas) que utilizava simultaneamente para obter medições o mais precisas possível. Tinha um observador e um marcador de tempo a trabalharem juntos. Com o Quadrante e o Sextante, a precisão das observações passou de 10 minutos de grau para a ordem do minuto.

Ilustração a cores da imagem a preto e branco do Livro de Mechanica

Depois da morte de Frederico II, o seu herdeiro expulsou-o da ilha de Hven para a dar à sua amante.
Mas dada a sua fama, foi convidado pelo imperador Rodolfo II, passando a viver em Praga, em 1600, onde construiu um observatório e continuou as suas cuidadosas observações. Com os dados que foi recolhendo desenvolveu um modelo híbrido (ver mais à frente) mas porque não possuía os conhecimentos de matemática e física para o fundamentar, teve que contratar um assistente. A escolha recaiu em Kepler, que tinha um temperamento algo semelhante ao seu, pelo que as discussões nem sempre eram pacíficas. Pouco a pouco, dado o interesse mútuo, acabaram por conviver de modo aceitável, embora Brahe não lhe desse acesso aos seus dados. De qualquer modo esses dezoito meses foram muito úteis para Kepler.
Foi com base nos cálculos de Tycho que o papa Gregório XIII decretou, pela Bula Inter Gravissimas, que à quinta-feira, 4.Out.1582 se seguiria a sexta-feira, 15.Out., para compensar a diferença acumulada ao longo de séculos. Este calendário, o actual, foi sendo lentamente adoptado pelos diversos países. Recordo o meu espanto, quando, ainda jovem, li no meu missal que S.ta Teresa de Ávila morrera na noite de 4 para 15 de Outubro de 1582. Só depois soube que foi precisamente nessa noite que foram suprimidos os dez dias ao calendário. A festa de S.ta Teresa celebra-se a 15 de Outubro, pois os santos são comemorados não na data de nascimento, mas da sua morte.


Antes de morrer, teria dito a Kepler "Ne frustra vixisse videar!" (Não deixes que pareça que vivi em vão), pedindo-lhe que acabasse e publicasse as Tabelas Rodolfinas, o que veio a acontecer.

ACONTECIMENTOS MARCANTES
Quatro acontecimentos tiveram influência decisiva na sua vocação de astrónomo e na formulação do projecto da sua vida: melhorar a precisão das observações astronómicas.

1. Eclipse parcial do Sol (21.Ag.1560)
Aconteceu quando tinha 14 anos e impressionou-o de tal modo, especialmente porque tinha sido previsto, que decidiu ser astrónomo. Ficou tão apaixonado por esta ciência que começou logo a fazer os seus próprios estudos ajudado por alguns professores, tendo comprado um livro de Efemérides e vários outros livros de astronomia, incluindo o De sphaera mundi de Sacrobosco.

2. Conjugação de Júpiter e Saturno (17.Ag.1569)
Foi a sua primeira observação astronómica, o que lhe permitiu verificar que as previsões dadas pelas Tabelas Afonsinas erraram por um mês e as tabelas de Copérnico por vários dias. Estas falhas fizeram-lhe perceber a necessidade e a importância de dispor de observações astronómicas muito mais precisas. Para obter umas Tabelas melhores procedeu a observações exactas e sistemáticas das posições dos planetas por um longo período de mais de vinte anos.
Já antes verificara a confusão que havia entre os dados dos vários astrónomos, quando, aos 17 anos, escreveu: “Estudei todas as cartas das estrelas e dos planetas disponíveis e nenhuma delas coincide com as outras. Há tantas medidas e métodos como astrónomos e todos estão em desacordo. O que é necessário é um projecto a longo prazo com o objectivo de mapear os céus realizado num único local e por um período de muitos anos”. Repare-se bem neste programa: 1) projecto a longo prazo, 2) mapear o céu (em todas as direcções), 3) com observações feitas no mesmo local e 4) por um período de muitos anos.

3. Descoberta de uma Nova (estrela) (11.Nov.1572)
Nessa noite de Novembro, reparou numa estrela, na constelação da Cassiopeia, que não se lembrava de alguma vez, ter visto. Por isso lhe chamou Nova, hoje conhecida como Supernova, a SN 1572 (ver o remanescente que hoje existe, na imagem que abre este post). Era mais brilhante que Vénus, pelo que pode ser vista à luz do dia durante 18 meses. O fenómeno foi muito impressionante, pois a última ocorrência acontecera no ano 125 aC, tendo sido registada na História Natural de Plínio. A grande questão para Tycho era saber se a Nova estava na alta atmosfera, mais perto do que a Lua, isto é, no mundo sublunar, ou se estava para lá da Lua, o que, neste caso, poria em causa a doutrina aristotélica, segundo a qual na esfera celeste não podia acontecer qualquer mudança, pois era imutável.
Esta estrela era, pois, um bom teste para a teoria aristotélica:
- se fosse uma nova estrela fixa, ela não poderia ter qualquer paralaxe, pois, por definição, a estrela estaria “fixa na abóbada celeste";
- se fosse um fenómeno atmosférico teria uma paralaxe mensurável dada a sua proximidade da Terra.
Tycho, que acabara de construir um Sextante com um raio de 1,6 m, que permitia fazer medições em minutos de arco, demonstrou que a nova estrela não apresentava nenhuma mudança de posição, nem em altitude, nem em latitude ou longitude, isto é, não tinha nenhuma paralaxe observável e que, portanto, estava muito para além da esfera da Lua.

Em 1573, Brahe apresentou estes resultados e as suas conclusões no De Nova et Nullius Aevi Memoria Prius Visa Stella (Sobre a Nova e Previamente Nunca Vista Estrela): esta era o título do "livro inicial", ao qual se juntaram vários outros

4. Passagem do Cometa em 1577
Este fenómeno também impressionou o ainda muito jovem Kepler.

                            Cartaz sobre o Cometa                                                    Notas tomadas por Brahe

As observações de Tycho Brahe mostraram que o cometa se movia entre as esferas dos planetas, e, portanto, que o "céu" não era imutável, e as "esferas cristalinas", concebidas na tradição aristotélica, não podiam ser entidades físicas. É o que ele explica no Mundi Aetherei Recentioribus Phaenomenis (Sobre o Novo Fenómeno no Mundo Etéreo), que publicou, em 1588: um livro com ilustrações, dedicado não só aos fenómenos recentes mas também à descrição de novos aparelhos, bem como à apresentação do seu modelo (ver mais abaixo). No capítulo VIII do Liber secundus, refere-se a este cometa, destacando que o mais importante era saber a distância a que se encontrava o cometa e o único meio para a determinar era pelo método da paralaxe. Concluiu que o cometa tinha uma paralaxe menor do que a da Lua e, portanto, teria de estar para lá da esfera desta, muito perto da esfera de Vénus: “Descobri por cuidadosas observações e demonstrações do presente cometa que ele está localizado e caminha acima da Lua, nos céus. [...] Portanto, a opinião de Aristóteles é inteiramente falsa quando ele assevera que os cometas se localizam acima da Terra, no ar, e que não podem ser gerados nos céus, pois ele estabeleceu isso sobre a base do seu próprio bom pensamento e não por qualquer observação ou demonstração matemática”.

A = Terra; C = Sol.
Órbita da Lua: BDEF.
Órbita de Mercúrio: LKMN.
Órbita de Vénus: OPQR.
Órbita do Cometa: STVX.

A (super)nova de 1572, que era uma prova contra a teoria aristotélica da imutabilidade do mundo celeste, nada adiantava contra a existência no céu de esferas sólidas de cristal. Foi o cometa de 1577 que veio responder a esta questão. Afinal, o facto de um corpo localizado para lá da esfera da Lua poder percorrer o céu é prova certa de que não existem esferas de cristais, pois um corpo sólido não poderia ser perfurado por um cometa.
Como as Novas e os Cometas já eram conhecidos há muito tempo, Aristóteles desenvolvera sobre eles a seguinte teoria. A Terra, aquecida pelo Sol, originava fumaças secas ou nuvens húmidas.As fumaças procuravam o seu lugar natural e subiam acima das nuvens, que, ao condensarem-se e caírem, obrigavam as fumaças, que subiam, a vir para baixo; então inflamavam-se, originando estrelas cadentes ou meteoros. Mas quando as fumaças subiam muito alto, quase até o limite da camada celeste, inflamam-se muito mais e então formavam os cometas.
O que Brahe fez foi romper com esta interpretação aristotélica comum entre os cientistas, de que:
- os cometas não eram fenómenos celestes, mas terrestres e
- o mundo supra lunar era incorruptível.

MODELO HÍBRIDO
Os surgimentos da Nova de 1572 e do Cometa de 1577 e os debates que suscitaram, se não mostram nenhum avanço no próprio modelo copernicano, contribuíram para a evolução da chamada “crise dos modelos ptolomaicos". Esta crise surgira, sobretudo, com Copérnico, que, com a sua hipótese heliocêntrica, tentara resolver problemas, como a obtenção de tabelas mais precisas para os movimentos planetários, uma disposição mais sistematizada do mundo celeste e a resolução do problema da precessão dos equinócios. Copérnico não resolveu estes problemas e, na verdade, até criou outros, mas sobretudo abriu novos horizontes.
Em 1583, ele notou que, perto da oposição (relativamente ao Sol), Marte tinha um movimento retrógrado, o que provava que Marte poderia aproximar-se muito mais da Terra que o Sol, o que era verdade no sistema de Copérnico, mas não no de Ptolomeu. No entanto, Tycho ainda não estava totalmente convencido das ideias de Copérnico.
Por isso propôs o seu próprio modelo:
- a Terra mantém-se no centro;
- à sua volta gravitam apenas a Lua e o Sol;
- os restantes planetas orbitam em torno do Sol.
Trata-se, portanto, de um modelo "híbrido", que procurava conciliar os modelos ptolomaico e copernicano.

A paternidade deste modelo deu origem a uma acalorada disputa entre Tycho e Ursus Dithmarsus, já que a única diferença estava no facto de o modelo de Ursus considerar também a rotação da Terra, pelo que foi chamado de "sistema semi-ticónico".


Pode dizer-se que não tinha grande sentido esta disputa (como tantas outras sobre paternidade entre cientistas) pois, no fundo, eram versões de um antiquíssimo modelo: o de Heráclides de Ponto (390-333 a.C.), que já considerava a rotação da Terra, o que Brahe não incluía. De qualquer modo o que ficou foi o modelo ticónico.
Tycho, por um lado criticava os modelos ptolomaicos por:
- não corresponderem, de acordo com as suas observações, à disposição dos corpos celestes;
- terem necessidade de um grande número de epiciclos;
- usarem o equante, um ponto fictício que não corresponde nenhuma realidade física.
Por outro lado, mantinha a o fundamental da teoria aristotélica ao colocar o Sol a girar em torno da Terra.
As críticas ao modelo que Copérnico prendiam-se com o facto de a Terra em rotação não responder às velhas questões, do tipo “por que não nos foge a Terra quando saltamos”.
Além disso, havia as dificuldades teológicas, pois a Sagrada Escritura apontava mais para uma Terra estática do que com movimento de rotação e de translação. De qualquer modo, dado o seu sentido experimentalista, os argumentos físicos pesaram mais na rejeição do modelo de Copérnico, especialmente a falta de observação de qualquer paralaxe estelar.
Entretanto, o seu modelo híbrido não correspondia perfeitamente aos seus dados extremamente precisos e como ele não conseguia resolver o problema contratou Kepler.
O seu relacionamento não foi fácil, sobretudo porque Brahe se recusava a dar os resultados das suas observações a Kepler, que assim se sentia incapaz de avançar. Mas deixemos isso para a secção dedicada a Kepler, que só conseguiu o que queria depois da morte do seu “patrão”.
(continua por falta de espaço)