quinta-feira, 15 de julho de 2010

História milenar

O Universo, isto é, tudo o que nos cerca, sempre causou uma profunda impressão na humanidade, desde os tempos mais antigos. O espectáculo de uma noite estrelada não pode deixar de, mesmo hoje, nos maravilhar e tentar perceber o que está por detrás de tão grandioso espectáculo.


Por isso todos os povos sentiram necessidade de compreender esta imensidão. As primeiras explicações faziam apelos a mitos, a deuses, a forças misteriosas. Depois, pouco a pouco, observações mais atentas e sistemáticas foram mostrando uma harmonia e uma ordem ("cosmos" diziam os gregos: κόσμος), por detrás das quais foram sendo construídas "leis da natureza" cada vez mais científicas e menos mitológicas. Não é que a ciência consiga explicar tudo. Felizmente sempre haverá lugar para o mistério, pois a nossa sede de infinito e de imortalidade não são redutíveis a combinações de moléculas ou a neurotransmissores.
É um pouco desta história que gostaria de partilhar.

Uma das primeiras manifestações desse desejo profundo do Homem deve ser o Disco de Nebra, uma placa em bronze com aplicações a ouro, descoberto nas proximidades da cidade de Nebra, em Sachsen-Anhalt (Alemanha), que é considerado como a mais antiga representação da abóbada celeste, supondo-se que foi utilizado para determinar os solstícios e outras datas, com uma precisão bastante razoável. Deve ter sido construído entre 2 100 e 1700 aC.


INTERPRETAÇÕES MITOLÓGICAS

Não há nenhum povo ou cultura que não tenha a sua história (“mito”) da criação. O livro “Rosa do Mundo 2001 Poemas para o futuro”, um dos marcos que ficaram do Porto capital europeia da cultura, em 2001, começa com uma longa série desses mitos. Recordo aqui dois.

O primeiro provém da cultura dos Fulani, provavelmente o povo nómada mais populoso do mundo. A sua origem é desconhecida, mas habita maioritariamente no Sahel, corredor situado entre o deserto do Sará e as terras mais férteis a sul.


No princípio existia uma enorme gota de leite.
Então chegou Doondari e criou a pedra.
A pedra criou o ferro;
E o ferro criou o fogo;
E o fogo criou a água;
E a água criou o ar.
Então Doondari desceu pela segunda vez.
Juntou os cinco elementos
E moldou-os num homem,
Mas o homem era orgulhoso.
Então Doondari criou a cegueira e a cegueira derrotou o homem.
Mas quando a cegueira se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari criou o sono e o sono derrotou a cegueira;
Mas quando o sono se tornou demasiado orgulhoso,
Doondari criou a preocupação e a preocupação derrotou o sono;
Mas quando a preocupação se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari criou a morte e a morte derrotou a preocupação.
Qunado a morte se tornou demasido orgulhosa,
Doondari desceu pela terceiar vez.
Ele veio com Gueno, o Eterno,
E Gueno derrotou a morte.

A segunda citação que faço é o começo de Popol Vuh, um dos poucos livros que nos ficaram da destruição da civilização maia pelos civilizados conquistadores espanhóis.


Esta é a história do princípio,
quando não existia nenhum pássaro,
nenhum peixe,
nenhuma montanha.
Apenas o céu.
Apenas o mar.
Não existia mais nada,
nenhum som ou movimento.
Apenas o céu e o mar.
Apenas o Coração-do-Céu, sozinho.
E estes são os seus nomes:
o modelador e o criador,
Kukulkan
e o Furacão.
Todavia não existia ninguém para pronunciar os seus nomes.
Não existia ninguém para louvar a sua glória.
Não existia ninguém para alimentar a sua grandeza.
Então, Coração-do-Céu pensava
"Quem é que existe para me louvar?
como construirei a madrugada?"
Então ele apenas diz a palavra:
"Terra",
e a terra ergueu-se
como uma bruma vinda do oceano.
Podemos também dar uma vista de olhos a algumas imagens das muitas mitologias antigas.

A deusa egípcia Nut (o firmamento) suportada pelo deus Shu
e separada do seu amante (a Terra).
A Terra (Monte Meru) e as regiões infernais eram transportadas por uma tartaruga, símbolo da força e do poder creativo. A tartaruga repousava sobre a grande serpente, símbolo da eternidade.
Havia três mundos: o superior, residência dos deuses; o intermédio, a Terra; o inferior, o inferno. O Monte Meru, sobre o qual  giravam as estrelas, cobria e unia os três mundos. No cimo do monte, está o triângulo, símbolo da criação.


Os Astecas tinham o “Mundo Superior”, o céu, e o “Mundo Inferior”, o inferno, cada um deles associado a um grupo de divindades e objectos astronómicos, dos quais os mais importantes eram o Sol, a Lua e Vénus, cujas órbitas serviam de base ao seu complexo calendário.

Mas não podemos esquecer o primeiro de todos os poemas sobre a criação, o Enuma Elish, um poema sumério, escrito em sete tábuas de argila, provavelmente, no século XII aC.


Quando no alto (Enuma elish) não se nomeava o céu,
e em baixo a terra não tinha nome,
do oceano primordial (Apsu), seu pai,
e da tumultuosa Tiamat, a mãe de todos,
as águas se fundiam numa,
e os campos não estavam unidos uns com os outros,
nem se viam os canaviais;
quando nenhum dos deuses tinha aparecido,
nem eram chamados pelo seu nome,
nem tinham qualquer destino fixo,
foram criados os deuses no seio das águas.

É obrigatório aqui fazer uma referência ao Génesis, primeiro livro da Bíblia, escrito no mesmo contexto cultural mesopotâmico.

Primeira página da Bíblia em hebraico

Pode descobrir-se uma certa dependência relacionando Tiamat (abismo primordial de águas salgadas) e tehôm (o abismo que cobre a terra informe e vazia) do texto bíblico. Contudo há diferenças teológicas entre os dois relatos.
Por um lado, Deus não nasceu dessa massa informe e vazio mas foi o seu criador e ordenador e não há qualquer referência à luta cósmica entre Deus criador e as forças descontroladas do universo, simbolizadas pela divindade primordial Tiamat, vencidas por Marduk.
Por outro lado, e isto é muito importante, o relato bíblico desmi(s)tifica o carácter divino da natureza: é o Deus único que separa as águas, cria a luz, faz emergir os continentes, cria a vida e até os astros não são seres divinos, que marquem o destino do Homem, mas apenas dois “luzeiros” ao seu serviço. A natureza deixa de ser divina, "profanizou-se" e esta mudança de paradigma é fundamental, pois permite que ela seja estudada e analisada sem o perigo de blasfémia ou heresia.

A CAMINHO DA CIÊNCIA

E isto permite passar aos Gregos antigos. Se a democracia é, porventura, a ideia grega mais famosa, a da ciência não o é menos. Para Schrödinger há três razões para que a ciência ali tenha surgido: a região não pertencia a nenhum Estado poderoso geralmente hostíl ao pensamento livre, como o império chinês; não estava "infestada de sacerdotes", sempre interessados na manutenção do status quo, como no Egipto; era um povo de marinheiros e de comerciantes, um veículo privilegiado para a permuta de ideias. Esta "liberdade de pensamento" fez com que os gregos compreendessem que o mundo era algo que podia observar-se e estudar-se. Tratou-se de uma verdadeira revolução no modo como passámos a olhar o mundo.

Thales de Mileto (625 a 545 aC) terá sido o primeiro a colocar a questão básica: "de que é feito o mundo e como funciona?". A resposta não a procurava nos deuses mas na observação da natureza.
Thales, que era comerciante, deslocava-se várias vezes ao Egipto. Numa dessas viagens foi desafiado a medir a altura da pirâmide de Quéops. Para tal serviu-se do que ficou conhecido pelo "teorema de Thales", ainda hoje estudado nas nossas escolas.
Segundo este teorema, quando um feixe de rectas paralelas são cortadas por duas rectas tranversais, as medidas dos segmentos delimitados pelas transversais são proporcionais. 

   Teorema de Thales                    e             uma aplicação

A partir deste raciocínio Thales determinou a altura da pirâmide de Quéops:

Os babilónicos e os egípcios tinham feito muitas observações e sabiam muito sobre as órbitas dos corpos celestes, mas consideravam-nas um segredo dos deuses. Os gregos recusaram essa explicação e passaram a interrogar a própria natureza. Protágoras até foi mais longe, chegando a duvidar dos deuses: "Não sei nada dos deuses, não sei se existem ou não, nem quais são as suas formas".
Esta capacidade de investigar, de medir, de calcular permitiu aos gregos fazer descobertas que hoje nos pareceriam impossíveis com os meios de que dispunham. Deixo aqui algumas no campo da "astronomia".

1. A Terra é esférica
Muitos povos antigos acreditavam que a Terra era plana, apesar das dificuldades que daí podiam advir:


Mas os Gregos provaram que era redonda a partir de três observações:
- o desaparecimento dos barcos no mar começa pelo casco e acaba nas velas (esta aprendi eu na "primária");
- os eclipses lunares, nos quais se projectava a sombra (redonda) da Terra sobre a Lua;
- a própria Lua é redonda.

2. Tamanho da Terra
Foi calculado, pela primeira vez, por Eratóstenes (285 - 194 aC).
Eratóstenes soube que havia um poço em Syene (actual Assuão), no fundo do qual o Sol se reflectia ao meio dia do 21 de Junho (solstício de Verão), isto é, os raios solares estavam na vertical. Certo de que era a curvatura da Terra que impedia que o Sol estivesse a pino, ao mesmo tempo, em Syene e em Alexandria, Eratóstenes espetou uma estaca vertical em Alexandria e mediu o ângulo que os raios solares faziam com a estaca (7,2 º). Ora 7,2 º é 1/50 avos do perímetro terrestre (360 º). Então mediu a distância entre Syene e Alexandria: 5 mil estádios. Portanto o perímetro da Terra teria de ser 250 000 estádios. Como cada estádio egípcio (que era diferente do grego) media 157 m, o perímetro da Terra era igual ao produto de 250 000 estádios por 157 m, ou seja, 39 240 Km. Hoje sabemos que  o perímetro  médio é de 40 000 km!



3. Distância Terra-Lua
Este cálculo implica duas etapas.

3.1. Diâmetro da Lua
Aproveitando a passagem da Lua pela sombra da Terra quando de um eclipse lunar, verifica-se que:
- decorrem 50 minutos entre o momento em que a Lua aflora a sombra até desaparecer totalmente: Lua (2);
- a Lua demora 200 minutos a sair da sombra da Terra: Lua (1).


Assim, o diâmetro da Terra é cerca de 4 vezes maior (200/50) que o da Lua. Sabendo que o diâmetro da Terra é 12 700 km, o da Lua teria de ser um quarto deste valor, 3 200 km. 

3.2. Distância da Terra à Lua
Utilizando o "teorema de Thales", foi possível determinar as dimensões da Lua. Estendendo o braço, a Lua Cheia fica encoberta pela ponta de um dedo.
Fonte: S. SING, Big Bang, p. 27

Uma vez que o tamanho do dedo que cobre a Lua é cerca de cem vezes menor que o comprimento do braço, esta deve ser também a relação entre o diâmetro da Lua e a sua distância à Terra. Ou seja, 3 200 km x 100 = 320 000 km.

4. Quanto ao Sol
4.1. Distância ao Sol
Aristarco de Samos (século III a.C.), partindo da convicção de Anaxágoras de que a Lua Crescente ou Minguante era um vértice de um triângulo rectângulo com a Terra e o Sol, conseguiu determinar a distância da Terra ao Sol.
Uma vez conhecida a distância da Terra à Lua e o ângulo da Terra com o Sol, A, que ele mediu como tendo 87º (realmente mede 89,5 º), determinou que o Sol estaria umas vinte vezes mais longe que a Lua: pouco mais de 6 milhões de km!.


4.2. Diâmetro do Sol

Sabendo os valores de D (distância do Sol à Terra), de d (distância da Lua à Terra) e de h (diâmetro da Lua), podemos facilmente saber o valor de H (diâmetro do Sol). Como a relação entre as distâncias (D/d) é cerca de 20 vezes, o diâmetro do Sol será também 20 vezes o da Lua.
Quanto ao Sol, as medidas ficaram muito longe da realidade, porque não era possível, naquele tempo, medir com maior precisão o ângulo A do triângulo rectângulo de Aristarco. Mas o método estava correcto.

Deixo aqui uma comparação entre os gregos e os outros povos: "Os avanços espantosos de Eratóstenes, Aristarco e Anaxágoras mostraram o progresso do pensamento científico que decorreu na Grécia antiga, porque as determinações que fizeram se apoiaram na lógica, na matemática, em observações e em medições... Os babilónios não eram verdadeiros cientistas uma vez que se contentavam com um universo explicado por mitos e guiado por deuses... Os egípcios estavam muito mais avançados que os gregos em balanças, cosméticos, tintas, fechaduras de madeira, velas e muitas outras invenções. No entanto, estes exemplos são de tecnologia, não de ciência... As tecnologias fazem a vida (e a morte) mais confortável, enquanto a ciência é simplesmente o esforço de compreender o mundo. Os cientistas são motivados pela curiosidade, não pela utilidade ou pelo conforto... Assim, enquanto os egípcios eram inventores, Eratóstenes e os seus pares eram cientistas" (S. SING, Big Bang, pp. 29-31). 

A propósito destas considerações, não posso deixar de fazer referência a uma extraordinária descoberta técnica dos gregos, que foi certamente o mais importante artefacto tecnológico do mundo antigo: a Máquina de Anticítera. Foi descoberta entre o espólio de um navio mercante romano que naufragou no século I aC e que foi encontrado por mergulhadores, em 1900, junto da pequena ilha de Anticítera, entre Creta e a parte continental da Grécia.



Inicialmente houve quem supusesse que, tratando-se de um mecanismo tão elaborado, provavelmente teria sido construído com instruções fornecidas por... extraterrestres!!!

Entretanto foram sendo feitos vários estudos que começaram a revelar mais pormenorese e a permitir refazer o seu mecanismo.

        Primeiras rodas dentadas          e      Sistema complexo      

Das novas descobertas destaca-se um "livro de instruções" bastante elaborado, com três mil caracteres que, entre outras informações, explicava como manejar o aparelho e como utilizar as observações dele obtidas. O tipo de letra aponta para Siracusa como local da sua construção. Entre as divisões de quase todos os mostradores aparecem sempre duas letras gregas: o sigma (Σ), que certamente significava Σελήνη (selene), "lua" (derivada de outra palavra grega σέλας, "brilho, estrela") e o eta (Η) de Ήλιος (hélios), "sol".

  
Novos pormenores foram sendo revelados pelas tecnologias cada vez mais avançadas, como Raios X e TC (Tomografia Computarizada) que "fotografou" sucessivas fatias da Máquina.

              Raios X              "Fatias" da TC (ScAmBrasilJan.2010, p. 51)

Todos estes estudos mostram que se trata de um aparelho "demasiado" complexo, feito com rondas dentadas e engrenagens. Por isso há quem pense que o seu inventor foi Arquimedes, já que lhe são atribuídas várias invenções, tais como a rosca sem fim, a roda dentada, a roldana móvel, a alavanca. Contudo, é pouco provável pois a máquina está datada de várias décadas após a morte daquele grande inventor grego. De qualquer maneira, fica a pergunta: por que é que esta tecnologia tão poderosa foi tão pouco explorada, ou talvez mesmo ignorada, na sua própria época e depois durante tantos séculos?  
  
Adaptado de Scientific American Brasil Jan2010, p. 52-53

Construída em bronze, por volta de 65 aC, estava originariamente montada dentro de uma caixa de madeira com duas portinholas. Media 33 cm de altura, 17 de largura e 9 de espessura. Apresentava 32 rodas dentadas e marcações assinaladas com anotações sobre o sol, a lua e os cinco planetas então conhecidos: Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. A marcação frontal indicava a posição do sol e da lua no Zodíaco. As duas marcações posteriores mediam o tempo segundo dois ciclos astronómicos: o de Calipo (76 anos e 940 lunações) e o de Saros (18 anos e 223 lunações).
O ciclo de Calipo (cerca de 330 aC) resultou de um aperfeiçoamento do calendário clássico grego, chamado metónico. Este calendário era lunar e foi estabelecido, em 432 aC, pelo astrónomo Meton de Atenas, que nas suas observações verificou que 235 meses lunares (6939,691 dias) somavam quase exactamente 19 anos solares (6939,60161 dias; 228 meses). Por isso, para manter o sincronismo com o ano solar, era necessário adicionar 7 meses lunares extra (nos anos 3, 5, 8, 11, 13, 16 e 19 do ciclo), o que reduzia a diferença a 1 dia em cada 290 anos, feito notável para os padrões da época. Também Hiparco (190-126 a.C.) introduziu alterações, entre as quais uma pequena excentricidade para dar conta do que hoje se conhece bem: a Lua acelera um pouco ao aproximar-se do perigeu (ponto da órbita mais próximo da Terra) e desacelera quando passa pelo apogeu (ponto mais afastado). Também desta ligeira variação no movimento da Lua, a máquina dá conta. Como conseguiu ele detectar essa diferença, se só com Képler ficámos a saber que as órbitas planetárias não são circulares mas mais ou menos elípticas?
O ciclo de Saros é un período caldeu de 223 lunações (6585.3213 días: 18 anos e 11 días e um terço), ao fim do qual a Lua e a Terra retomam aproximadamente a mesma posição nas suas órbitas e se podem repetir os eclipses, que assim podem ser previstos.
Recordo que a lunação é o tempo médio decorrido num ciclo lunar completo: 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 3 segundos. Nos calendários lunares, cada mês corresponde a uma lunação; a fase de referência é, em geral, a Lua Nova.

Termino, citando Price, um dos grandes estudiosos da MáquinaAnticítera: "Não deixa de ser assustador que, pouco antes da queda da sua grande civilização, os gregos antigos se aproximaram tanto da nossa época, não apenas pelo pensamento, mas também pela sua tecnologia científica" (An ancient Greek computer, D.J.S. PRICE, Scientific American 200/6 (Junho.1959), pp. 60-67).
E finalmente recomendo aos interessados a leitura do artigo O Incrível Computador da Antiguidade de T. FREETH no Scientific American Brasil de Janeiro de 2010, pp. 48-55, que chegou às nossas bancas estes mês.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Big Bang

Quando comecei este blog, o meu objectivo era apresentar o modelo ou teoria do Big Bang e sobretudo mostrar as várias etapas, dificuldades e soluções que foram surgindo até ter um modelo consistente sobre evolução do Universo.
Há um autor que o apresenta com uma simples frase: “Num passado distante, o universo era muito denso e quente; desde então expandiu-se, ficando menos denso e mais frio”. Eu acrescentaria mais qualquer coisa. O modelo realmente pode resumir-se àquelas palavras, mas pretende explicar como é que, a partir desse estado primordial muito quente e denso, se foram formando os átomos, depois as estrelas, as galáxias e como tudo isso funciona numa aparente harmonia. Sabe-se hoje que há 13,7 mil milhões de anos o Universo começou a expandir-se. Nesses momentos primieros, as temperaturas eram tão elevadas que nenhuma das estruturas actuais poderia subsistir. Mas, como a expansão está sempre associada ao arrefecimento, as temperaturas foram baixando, a densidade de energia ficou cada vez menor e atingiu valores suficientemente baixos para que surgissem os primeiros núcleos atómicos, depois os átomos. E a matéria passou a dominar a radiação ou energia. Como essa matéria não era absolutamente uniforme, as pequenas flutuações foram agregando mais matéria devido à força da gravidade. Juntaram matéria suficiente para formar as estrelas, depois as galáxias até termos um Universo como o vemos hoje.

Mas para chegar a este modelo aparentemente tão simples, foi necessário não só ultrapassar alguns preconceitos, mas também recolher dados experimentais e descobrir teorias matemáticos que permitissem explicar essas observações e dar-lhe consistência.
É esta história, feita de fracassos e de vitórias, que vou contar, se for capaz. Antes de mais porque me dá muito gozo e gostaria de partilhar esse gozo. Mas também como prova da capacidade do género humano, única espécie pensante, que aprendeu a ler a natureza, a estabelecer as leis que a governam e que tanto bem pode fazer se quiser aplicar os seus conhecimentos para nos tornar a todos, mas mesmo todos, mais felizes.
Esta história tem vários capítulos
Há cem anos ainda se pensava que o Universo era estático e poucos acreditavam que fora da Via Láctea existissem outras galáxias..


Não era isto evidente? Bastava olhar para o céu de qualquer ponto da Terra (homogéneo) e em qualquer direcção (isotrópico) para verificar que apresentava sempre a mesma forma. A Estrela Polar ou o Cruzeiro do Sul serviram para orientar os navegantes e exploradores muitos séculos. E lá continuam.

Atlas chinês séc.VII       com a            Estrela Polar
   APOD 19.Juho.2009                      APOD 8.Jan.2007

                      Mapa antigo     do    Cruzeiro do Sul (APOD 17.Maio.2007)

Mas as observações feitas ao longo de largos anos permitiram que no final da década de 20 do século passado se demonstrasse que o Universo estava a expandir-se. Foi preciso aprender a medir as distâncias entre as galáxias. Foi preciso aprender a medir a velocidade com que se afastavam. E depois Hubble estabeleceu a lei que relacionava a distancia das galáxias com a velocidade de afastamento. 

Mas os experimentalistas não se preocupavam muito com o significado cosmológico destes dados. E se não fossem os "teóricos" terámos de esperar (muito) mais tempo para perceber o sigidficado destes dados.
Felizmente, em 1915, Einstein apresentou a sua Teoria da Relatividade Geral, que veio dar o suporte matemático para construir um modelo acerca do Universo.



As soluções das suas equações apontavam também para um Universo em expansão. Lemaître (1927) imaginou, então, uma espécie de “experiência conceptual”: se o Universo está em expansão, podemos “andar para trás” no tempo e ver as galáxias a aproximarem-se cada vez mais até se juntarem num ponto, que chamou o “átomo primordial”. Foi a desintegração deste átomo que deu origem à expansão do Universo.
Aqui termina o primeiro capítulo da nossa história, porque, apesar de se saber que o Universo estava em expansão, não se sabia como é que apareceram os átomos e as estruturas que hoje vemos.

O segundo capítulo só acontece na década de 40. Gamow, que se dedicava a investigar o modo como as estrelas produziam luz e calor, teve, quase por acaso, conhecimento do artigo de Lemaître. Então pegou na sua ideia e actualizou-a com os novos conhecimentos. Imaginou que esse momento primeiro muito quente seria uma sopa de protões, neutrões e electrões, que ao reagirem entre si deram origem ao Hidrogénio (1 protão), ao Deutério (1 protão + 1 neutrão = 2 nucleões) ao Hélio (3 e 4 neutrões) e a vestígios do Lítio, os chamados elementos leves (nucleossíntese cosmológica). Os valores obtidos pelos seus cálculos coincidiam com os dados experimentais.


Mas havia um problema. Faltavam ainda os outros 89 átomos! E estes não se puderam formar porque o Universo arrefecia tão depressa que, ao fim dos primeiros três minutos, já não havia energia suficiente para os sintetizar. Portanto, tudo parecia parar ali, porque não se conhecia nenhum mecanismo que permitisse ultrapassar a chamada “fenda dos cinco nucleões” que o próprio Gamow caricaturou assim:

Fonte: Simon SINGH, Big Bang, p. 367

O impasse foi ultrapassado por Hoyle: os outros elementos formavam-se no núcleo das estrelas, através de vários tipos de reacções nucleares (nucleossíntese estelar).

Adapatdo de BURBIDGE, BURBIDGE, FOWLER e HOYLE,
Synthesis of Elements in Reviews of the Moderrn Physics 29(1957) 4 

Hoyle era um feroz crítico do modelo de Gamow tendo inclusivamente comentado num programa que tinha na BBC que não passava de um grande estoiro (big bang).  O nome, que devia ostracizar o modelo, tornou-o famosos.
De qualquer modo, Hoyle, como não aceitava o modelo do Big Bang, aproveitou esta dificuldade na síntese dos elementos, para apresentar o seu modelo do “Estado Estacionário”: um Universo eterno homogéneo e isotrópico. Mas, se o Universo estava em expansão, como poderia manter sempre o mesmo aspecto? Através da criação contínua de matéria (2 átomos de Hidrogénio por m³, cada mil milhões de anos), que ia preenchendo o aumento do volume.

Comparação entre os modelos Big Bang e Estado Estacionário
Fonte: Simon SINGH, Big Bang, p. 390

E, de repente, ficámos com dois modelos em confronto. Qual “escolher”? E como?
havia realmente um bom teste. Gamow fizera uma previsão importante: se o Universo passou por uma fase de equilíbrio térmico (elevadas temperaturas uniformemente distribuídas) então, de acordo com as leis da física, deve estar ainda hoje a emitir uma radiação, conhecida por “Radiação do Corpo Negro”, que apresenta uma característica inconfundível: a radiação emitida por um corpo apresenta um espectro cuja posição do pico mais elevado varia conforme a sua temperatura.

Radiação do Corpo Negro


Pelo contrário, o modelo do Estado Estacionário não previa essa radiação, pois não passara por uma fase muito quente.
O problema é que não existiam, na altura, instrumentos capazes de medir essa radiação tão ténue e difusa.

O terceiro capítulo abre com a descoberta dessa radiação, depois chamada Radiação Cosmológica de Fundo, acontecimento tão importante que os seus autores foram distinguidos com um Prémio Nobel.


Com esta descoberta, o Big Bang impõs-se na comunidade científica, enquanto o modelo do Estado Estacionário ficou restringido a pequenos nichos de alguns admiradores. 

Um quarto capítulo começa com os avanços espectaculares na Física das Partículas. Construções teóricas e instrumentos capazes de criar energias crescentemente elevadas vão permitir uma aproximação cada vez mais estreita aos momentos iniciais do Universo. Além disso surgem novos telescópios não só na “luz” Visível mas também nos raios  Infra Vermelho, raios Ultra Violeta, raios X, raios Gama, etc..


Entretanto começam a surgir algumas dificuldades. Aqui deixo duas como exemplo: se o Universo está a expandir-se há tantos milhões de anos, como explicar a homogeneidade global. Mas por outro lado, se inicialmente era tão homogéneo como apareceram as estrelas e as galáxias.
A solução surgiu, em 1969, com a introdução da “Inflação”: logo nos tempos iniciais, o Universo expandiu-se milhões de milhões de milhões de vezes num tempo ínfimo. E assim se resolveram estas dificuldades e algumas outras.


Mais duas dificuldades "inesperadas" (na ciência, o inesperado é o habitual e o motor do progresso!) abrem o quinto capítulo.
Uma delas era já conhecida há mais de 70 anos, mas ninguém ligara: não existe matéria visível suficiente para explicar a dinâmica das galáxias e dos aglomerados de galáxias. Apesar de várias tentativas, não foi possível até agora saber que matéria é essa: será "normal" mas invisível ou será uma nova forma de matéria ainda desconhecida. Perante este desconhecimento chamou-se-lhe Matéria Negra ou Escura.


A outra, talvez ainda mais inesperada: há cerca de 5 mil milhões de anos, a expansão do Universo, que vinha a perder folgo, começou a acelerar. O que se passa? Muitas teorias, muitas ideias, mas a sua natureza e o seu aparecimento são ainda um mistério, bem caracaterizado pelo nome de Energia Negra ou Escura.

Fonte: Science et Vie nº 221, p. 129

Actualmente, devido aos dados fornecidos, pela sonda WMAP, que analisou a radiação Cosmológica de Fundo, sabe-se que o Universo começou a expandir-se há 13, 7 mil milhões de anos e é composto de 4% de Matéria Visível, 23% de Matéria Negra e 73% de Energia Negra.

              Sonda WMAP             Mapa da RCF feita pela WMAP
Finalmente, um novo capítulo. O que aconteceu no início? Houve criação? A partir de quê? De “flutuações quânticas do vazio”. Mas o que é isso de um vazio cheio de energia? Não estará a Física a pisar os âmbitos da Filosofia ou mesmo da Teologia?

Esta pequena esfera com 0,1 mm desloca-se em direcção a uma
 placa lisa em resposta às flutuações de energia do vazio

E antes do Big Bang, o que é que havia?
Aqui gostaria de fazer uma rectificação. S.to Agostinho tem sido acusado de responder que Deus "criara o inferno para mandar para lá quem se dedicava a fazer esta pergunta". Este erro propagou-se, suponho que a partir de Gamow: pelo menos foi nele que encontrei pela primeira vez esta referência. Contudo, sendo ele um brincalhão nato, talvez a citação fosse desenquadrada. Mas, para repor a verdade aqui deixo as palavras de Santo Agostinho: "Eis a minha resposta àquele que pergunta 'Que fazia Deus antes de criar o céu e a terrra?' Não lhe responderei nos mesmos termos com que alguém, segundo se narra, respondeu, iludindo, com graça, a dificuldade da questão: 'Preparava - disse - a geena (inferno) para aqueles que prescrutam estes profundos mistérios!'. Uma coisa é ver a solução do problema e outra é rir-se dela. Não darei essa resposta. Gosto mais de responder: não sei - quando de facto não sei - do que apresentar aquela solução dando motivo a que se escarneça do que propôs a dificuldade e se louve aquele que respondeu sofisticamente" (Confissões, XI, 12).


Lutero é que se terá divertido dizendo algo semelhante, caso não tenham também deturpado as suas palavras (não sei alemão e, pior ainda, não conheço a fonte): "Deus está sentado por detrás de uma aveleira, com varas cortadas para aplicá-las aos interrogadores indiscretos" (Er ist hinter dem Haselslrauch gesessen und hat Ruten geschnitten für müssige Fragen).

Muitos pensam que a resposta às perguntas que acabei de fazer pode estar no “casamento” da Teoria da Relatividade com a Mecânica Quântica. O problema é que a Relatividade, já confirmada por vários factos experimentais, funciona muito bem mas “apenas” no “infinitamente grande”. A Mecânica Quântica, também já muito testada, funciona muito bem mas “apenas” no “infinitamente pequeno”. Contudo, quando se tenta unificá-las, quando cada uma delas chega ao terreno da outra, os resultados não têm qualquer significado. Por isso, tantos teóricos procuram uma teoria capaz de as conciliar (Teoria do Tudo).
Há até quem diga que esta é "a demanda do Santo Graal" do século XXI, pois tem-se apresentado muito difícil de abordar. Entre muitas outras destacam-se:
- a Teoria das Cordas, segundo a qual a "partícula" mais pequena é uma corda que ao vibrar origina as diferentes partículas;
- a Teoria da Gravitação Quântica de Laços, segundo a qual o espaço-tempo não é contínuo mas formado por pequenos anéis, uma espécie de "espuma" de laços;

          Teoria das Cordas         e       Teoria Quântica de Laços

- ou a teoria VSL (Very Speed Light), do nosso conterrâneo João Magueijo, que põe em causa a constância da velocidade da luz e cuja história pode ser lida no seu livro Mais Rápido que a Luz.
Este é o esquema do que pretendo ir desenvolvendo. E, depois de apresentar os "fundamentos" do modelo Big Bang, é altura de poder contar, de modo mais compreensível, a história do nosso Universo, “segundo a segundo”.
Mas antes é preciso fazer alguns enquadramentos, porque as grandes teorias e descobertas não nascem do zero.