domingo, 7 de novembro de 2010

Os Lusíadas: Significado da epopeia (1)

Sumário para situar o blogonauta
1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia (1)
10. Os Lusíadas: significado da epopeia (2)
11. As "contra-epopeias"
12. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
13. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
14. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
15. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
16. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
17. Modelo de Einstein
18. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Maravilhas do Espaço: uma imagem por post

Galáxia mais antiga: o objecto mais afastado até agora identificado no Universo
Esta galáxia já existia, quando o Universo tinha apenas 600 milhões de anos de idade.

Paragem do Peregrino
Nesta caminhada milenar que vimos fazendo a caminho das extraordinárias descobertas dos últimos cem anos, apetece-me parar um pouco (para descansar?) junto de um dos marcos da nossa história: a epopeia nacional Os Lusíadas e a “contra-epopeia” Peregrinação. Não terá a ver muito com o nosso objectivo principal, mas serve como fonte fria que nos mata a sede nestas longas andanças.


1. Necessidade de um poema épico
Recapitulando os últimos posts
Em contraste com a tardia e lenta progressão dos valores humanistas que vinham chegando de Itália, ressalta o pioneirismo dos povos ibéricos com os descobrimentos marítimos e a revolução que eles representaram na visão do mundo, nomeadamente a exploração pelos portugueses dos mares e continentes que acabou com os medos, monstros e dogmas sobre a existência e inabitabilidade de uma zona tórrida intransponível, a incomunicabilidade dos vários oceanos, a inexistência de antípodas, “toda uma dogmática milenar”, cujos efeitos na mentalidade são hoje dificilmente exageráveis.

Dante, Petrarca, Bocaccio e outros pioneiros do humanismo (G, VARASI; 1543)

É que essa mudança de mentalidade, poderíamos talvez falar de ruptura, alterou radicalmente a relação do homem com a natureza, mas também a concepção de humanidade, com a sua diversidade de povos, promovendo uma nova concepção de pessoa, a consciência da própria individualidade e identidade, preparando a “teorização antropocêntrica” do humanismo. Foi-se desenvolvendo uma “consciência histórica de viver uma nova idade e uma valoração positiva do presente: a Europa “renasce”. A "promoção das letras" cria um tipo social novo, ao permitir que o próprio plebeu se torne “educado” e o saber passe a ser fonte de mérito e de “nobreza” enquanto a ignorância desvaloriza e degrada o tipo social arcaico, o homem das armas, “embora gloriosos pela linhagem, pelos costumes e pelos feitos”.
Houve, no entanto, uma dicotomia entre os intelectuais ligados ao mar, que, na retaguarda da acção, davam prioridade à visão épica e misturavam o entusiasmo patriótico com a retórica laudatória, e os homens “práticos” que as viagens puseram em contacto com um mundo mais alargado e nunca antes conhecido com um saber adquirido não nos livros já codificados, mas muito mais nas experiências vividas que se traduziam nas novas cartas de marear, nos roteiros, diários de bordo de muitos nomes famosos, o que pode sintetizar-se na lapidar frase de Garcia de Orta: “Digo que se sabe mais em um dia agora pelos portugueses do que se sabia em cem anos pelos romanos”. Aliás o livro de Garcia de Orta é um exemplar no modo de divulgar esse “novo saber”, fundamentalmente por três características: mostra o enorme esforço que o naturalista dedicou para arrancar à flora indígena o segredo das suas propriedades farmacológicas; é escrito em português para permitir que todos pudessem ter acesso a ele e não só os eruditos; usa, como método expositivo, o “diálogo” quebrando a o tom monocórdico e maçudo dos livros eruditos pela vivacidade espontânea e atractiva.
Pedro Nunes tentou uma espécie de síntese ou melhor de “hibridez”cruzando as duas correntes mentais – uma de inovadora feição técnico-prática (criação inventiva), outra de retrospectiva restituição do saber antigo (subordinação livresca) – que se pode ver no seu Tratado da Esfera (1*).

Clima de euforia
Apesar desses debates “intelectuais”, havia um clima de exaltação que crescia e se propagava entre toda a população, eruditos ou não, nobres ou plebeus, com as constantes notícias de novas descobertas e as extraordinárias proezas dos nossos navegadores. Lisboa enchia-se não só com caravelas que partiam para novas terras mas com navios que transportavam os mais variados produtos para toda a Europa.

Lisboa no século XVI
Fonte: Revista Vértice nº 436-439 (1980), p. 374c.

Esse clima de euforia generalizado exigia ser cantado, requeria um poema, uma epopeia que imortalizasse todo etse esforço e todo este contributo dos portugueses, porque havia a consciência de que os feitos portugueses eram maiores que os dos gregos e romanos, já cantados em imortais epopeias, como destacou Camões:
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta. (I, 3)
1.Cessem (1): cessem de ser cantadas; zeugma, figura de estilo em que se omite uma palavra já expressa anteriormente;
2.sábio (1): inteligente e astuto e muito cheio de recursos, como o define Homero logo a abrir a Odisseia:
Άνδρα μοι έννεπε, Μοΰσα, πολύτροπον, (I,1);
Fala-me, ó Musa, do homem cheio de recursos;
3.sábio Grego (1): Ulisses; antonomásia, figura de estilo que utiliza um nome ou uma frase sugestiva em vez do nome próprio;
4.Troiano (1): Eneias;
5.Alexandro (3): Alexandre, o Grande, rei da Macedónia (356-323 aC), o mais célebre conquistador do mundo antigo, que dominou a Grécia, a Pérsia, a Judeia, o Egipto e chegou à Índia, só sendo parado por uma morte prematura;

Império de Alexandre, o Grande

6.Trajano (3): imperador romano (52-117) nascido em Híspalis (actual Sevilha); excelente administrador e reorganizar do Império romano, que, sob seu reinado, atingiu a máxima extensão;
7.o peito ilustre Lusitano (5): a bravura e o valor portugueses;
8.Neptuno (6): deus do mar; os mares;
9.Marte (6): deus da guerra; os exércitos do mundo;
10.Musa antiga (7): Musa por Poesia; a musa da epopeia era Calíope.


2. Aparecimento tempestuoso de Os Lusíadas
O clima estava preparado, pois, para que surgissem uns quaisquer “Lusíadas”.
Esta honra de escrever a tal epopeia, tão desejada, coube a Camões, mas não foi fácil.
Numa altura, em que a tipografia ainda não se tinha generalizado, as obras dos poetas e escritores iam sendo conhecidas por manuscritos copiados ou pelas cartas que trocavam entre si. Foi por este meio se soube que Camões andava a escrever um poema, o que gerou algumas movimentações.
Camões teve certamente muitos admiradores como se pode deduzir das muitas cópias que circulavam de escritos seus. Houve também alguns autores bem conhecidos que o defenderam e lhe prestavam homenagem mesmo antes da sua morte. Por exemplo, no final da representação do auto (ou comédia) de El-Rei Seleuco, muito aplaudido, um dos seus admiradores, talvez João Lopes Leitão, dedicou-lhe este seguinte soneto improvisado (2*):
Quem he este que na harpa Lusitana
Abate as Musas Gregas, e Latinas?
E faz que ao mundo esqueçam as Plautínas
Graças, com graça alegre, e lyra ufana?

Loís de Camões hé, que a Soberana
Potencia lhe influio partes divinas,
Com que espiram as flores, e boninas,
Da Homérica Musa, e Mantuana.

Se tu, triumphante Roma, este alcançaras
No teu theatro, e scena luminosa,
Nunca do grão Terêncio te admiraras.

Mas antes, sem contraste, curiosa
Estatua de ouro ali lhe levantaras,
Contente de ventura tão ditosa.

Também Fernão Álvares do Oriente, na sua Lusitânia Transformada, cujo personagem Urbano poderá ser o próprio Camões (3*), apresenta dois pastores que, após uma peregrinação, chegam ao Templo da Poesia, que encontram totalmente vandalizada (4*). Símbolo forte para indicar que a poesia, na época, estava em decadência, praticamente em ruínas:
Mas entre todas a estatua do principe dos Poetas da nossa idade, que cantou a larga nauegação dos Lusitanos; a qual se diuisaua das outras com este letreiro. Principe dos Poetas (titolo, que daqui, parece, tresladou â sua sepultura hum peito illustre, e generoso) estaua so cõ toda a sua perfeiçam, com que seu sculptor ally a posera de principio, com quanto hum esquadrão de Bauios, e Zoillos, que lhe ficauam aos pes com muitos tiros pretendião danificalla. (Lusitânia Transformada, 69v)

Túmulo de Camões nos Jerónimos

Havia, portanto, um esquadrão de Bávios e Zoilos, que tentavam destruir a estátua (reputação) de Camões.
1) Bávio foi um poeta menor que tentou rivalizar com Virgílio, na companhia de um outro poetazita Mévio, que Virgílio ridiculariza de modo irónico:
Qui Bavium non odit, amet tua carmina, Mevi,
atque idem iungat vulpes et mulgeat hircos (Bucólicas, III, 90-91)
Quem Bávio não odeia, ama os teus versos, Mévio
e também (é capaz) de atrelar (ao arado) a raposa e ordenhar o bode.
As duas expressões do último verso são provérbios latinos para significar coisas impossíveis (5*).
2) Zoilo foi um filósofo sofista (séc. IV aC) célebre por criticar Homero.
Portanto, o que Fernão Álvares denuncia são os poetas contemporâneos de Camões, que foram incapazes de escrever uma epopeia e por inveja atacavam o poeta.

Quem eram esses poetas?
Alguns críticos do nosso século apontam para os que gravitavam em torno de Sá de Miranda, poetas que queriam escrever uma epopeia portuguesa, e, por isso, nutriam uma forte repulsa por Camões.
Mas José Maria Rodrigues (6*) aponta nomes e refere as várias tentativas para que alguém se antecipasse a Camões, que falara do seu poema em construção a várias pessoas, antes de ser forçado a embarcar para a Índia, em 1553.
A uma delas, Dª. Francisca de Aragão, escreveu na Écloga IV (7*):
Cantando por hum valle docemente
Descião dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia:
De idade cada qual era mancebo;
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lh’elle causava parecia.
O que cada hum dizia,
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado,
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda;
Porque, se a minha ruda
Frauta deste favor for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.

Andrade Caminha, para amesquinhar Camões, ironizou com a “fonte Caballina”, no seu Epigrama 141:
Quando teus versos, deste nome indinos,
Me lembrão, mao poeta, inda m’aballo
De nom serem teus versos caballinos
E parecerem versos de cavallo.
São louvados os versos peregrinos
E eu nunca seu louvor escondo ou callo;
Mas nom louvo, poeta, os versos que usas,
De Febo peregrinos e das Musas.
1.versos cabalinos (3): versos inspirados pela Fonte Caballina, cujo nome deriva do lat. caballinus, “de cavalo”, que segundo a tradição poética, brotou de um coice que o cavalo Pégaso deu contra uma rocha; foi consagrada às musas do Parnaso e os poetas diziam que bebiam dela a inspiração para fazer versos. Compare-se com a fonte de Hipocrene (“a fonte do cavalo”, do gr. hippos (ίππος), “cavalo” e créné (ίπποςκρήνη), “fonte”) que resultou também de um coice de Pégaso.

Cavalo Pégaso (MAX LITMANN; 1910)

Portanto parece que o chefe dos críticos de Camões seria Andrade Caminha, “o medíocre, invejoso e mal entranhado chefe da coligação” (8*). Mas estava bem acolitado por António Ferreira, o conhecido autor da tragédia A Castro, que incentivou vários amigos poetas a escrever uma epopeia sobre os feitos portugueses, porque considerava Camões incapaz de produzir uma obra verdadeiramente nacional. Por isso o chamava de “pomposo Chérilo”:
Vinde, Musas, armadas, soccorrei
a vossos loiros, e heras, que forçadas
vos levam os que não guardam vossa lei.
Sejam as boas cabeças coroadas
das sempre verdes folhas; outras sejam
de vossos sacros bosques desterradas.
Trazei-nos vossa luz, para que vejam
quão longe estais, quão altas, quanto acima
dos que em vão a chegar -vos se despejam.
Doutrina, arte, trabalho, tempo, e lima,
fizeram aquelles nomes tâo famosos,
por quem a antiguidade se honra, e estima.
Ah! quem soffre uns Cherillos tão pomposos
aquelles altos nomes ir tomando,
que foram aos que os ganharam tâo custosos?
Magôa-se o bom sprito, se roubando
lhe vão seu preço, e a quem não é devido
juizes enganados o estão dando. (9*)
Chérilo (ou Quérilo) foi um dos “poetas trágicos menores” gregos do séc. VI-V aC, o segundo a ser documentado depois de Tespis e  que concorreu às primeiras Dionísias do séc V aC. Apesar de "menor", a ele se devem algumas modificações nas máscaras e nos disfraces.

Mas não lhe chegou este insulto. Para o ridicularizar como poeta bucólico, intitulou-o Magálio:
Pastores, coroay, que vay crescendo,
Este novo poeta de hera, e flores:
E Magaliio de inveja estê morrendo,
Que a todos para si rouba os louvores. (10*)

António Ferreira muito lutou para que aparecesse um poeta épico digno de honrar Minerva:
Ditoso, e alvo dia, hora dourada
Estrella liberal, luz bem nascida,
Em que tanta esperança nos foi dada.
Por ti vejo já ser restituida
Á honra, e gloria antiga certamente
Minerva, a novo estado, a nova vida.
Das mãos a livrarás da baixa gente,
Gente cruel, e céga, e indouta, e indina
De tal dom, só devido a quem o sente. (11*)

Mas acabou por se resignar, pois não conseguiu nem ele nem nenhum dos seus amigos alcançar para si a glória que acabará por ser pertencer ao “pomposo Chérilo”:
Já ha muito, meu Andrade, que me esperas.
Levou-me mágoa grande do mal nosso;
Iram-me condições de gentes féras.
Não posso o que desejo, o que só posso
Te digo: está este tempo todo em preço;
Não pode hum ingenho já, Musas, ser vosso.
Do que esperey algũ'hora, em vão me deço.
Cante, quem canta ao som dos seus louvores,
Qu’eu nem os acharey, nem os mereço.
Esfriassem-se em mim meus vaõs ardores,
Tivesse boa paz sempre comigo,
Outros cantassem Reys, e Emperadores.
Sempre aos mais dos ingenhos foy perigo
Escrever: os bons temem; escrevam ousados
Esses, que tem grã credito comsigo.
Ditosos os que vivem bem calados
Metidos em si mesmos, e contentes
De não serem ouvidos, nem julgados. (12*)

Camões divertia-se com a fúria impotente dos seus adversários.
Mas convém não esquecer que Camões também não era "boa peça": teve uma adolescência e juventude conflituosas, resultantes de alguns aspectos desagradáveis da sua personalidade, entre os quais se pode referir a tendência para a exibição, até e especialmente por amores “proibidos”; preferia as casadas e as nobres às solteiras e às plebeias, o que lhe acarretaria muitos dissabores. Para ele o amor era simultaneamente um risco e um desafio (13*), como escreve na Écloga II, considerada autobiográfica:
Amor não será amor, se não vier
Com doudices, deshonras, dissensões,
Pazes, guerras, prazer e desprazer;
Perigos, linguas más, murmurações,
Ciumes, arruidos, competencias,
Temores, nojos, mortes, perdições.
Estas são verdadeiras penitencias
De quem põe o desejo onde não deve,
De quem engana alheias innocencias.
Mas isto te o amor, que não se escreve
Senão donde he illicito e custoso;
E donde he mais o risco, mais se atreve.
Mas, pior que isso, como causa das invejas de muitos poetas era o seu exagerado narcisismo, que tão evidente se mostra na mesma Écloga:
Lembra-me, amigo Agrario, que o sentido
Tão fóra d'amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.
De várias côres sempre me vestia;
De boninas a fronte coroava;
Nenhum pastor cantando me vencia.
A barba então nas faces me apontava;
Na luta, na carreira, em qualquer manha,
Sempre a palma entre todos alcançava.
Camões sentia-se superior a todos (“Nenhum pastor cantando me vencia), ainda mal começara escrever (“A barba então nas faces me apontava”). Portanto, é natural que quem semeia ventos colha tempestades.


3. Luís de Camões
Pouco se sabe da sua vida. Terá nascido em Lisboa, estudado em Coimbra, frequentou a corte. Envolveu-se com damas da nobreza, mas também com plebeias. Um amor frustrado levou-o a partir, como soldado, para África onde perdeu um olho. Regressado a Portugal, feriu um servo do Paço e foi preso. Tendo sido perdoado, partiu para o Oriente. Já atrás referi este seu comportamento turbulenta.
Neste soneto aponta as três causas que se conjugaram para lhe proporcionar uma vida tão complicada:
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor, somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos…
Oh! Quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Passou no Oriente vários anos, enfrentando uma série de adversidades: sofreu as violências das viagens, que o iam fazendo perder o seu poema épico, combateu bravamente, viveu amizades e desenganos, percorreu longínquas terras, esteve preso.


Sentiu a amargura da incompreensão e a angústia da saudade que comparou aos judeus exilados na Babilónia, descrita nas famosas e comoventes “Redondilhas de Babel e Sião”:
Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e, tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,
que então se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder o mal,
e o mal, muito pior,
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.
Estas primeiras 4, das 37 redondilhas, bastam para mostrar bem o seu estado de alma. Perdido num mar de pensamentos desencontrados, em que a vida parece não ter razão de ser, descobrir o seu sentido é um esforço que apenas aprofunda a dor de viver.

"A Torre de Babel" (Pieter BRUEGEL, o Velho;1563)

Chegou a amaldiçoar o dia em que nasceu, neste soneto:
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!


Este soneto está claramente decalcado do Livro de Job, que também amaldiçoou o dia do se nascimento (Job 3, 3-7 e versículos seguintes):
"Desapareça o dia em que nasci,
e a noite em que se disse:
"Foi concebido um homem!"
Converta-se aquele dia em trevas;
e Deus, lá no alto, não se preocupe com ele,
nem a luz o venha a iluminar.
Apoderem-se dele as trevas e a escuridão.
Que as nuvens o envolvam
e os eclipses o apavorem!
Que a sombra domine nessa noite,
não se conte entre os dias do ano
nem se conte entre os meses!
Seja estéril essa noite,
e não se ouçam nela brados de alegria”.

A esta desesperança diante da vida, junta-se o “desconcerto do mundo”, que consiste no facto de os “maus” prosperarem e os “bons” serem castigados, como se pode ver na “Esparsa ao desconcerto do mundo”:
Os bons vi sempre passar
no Mundo grandes tormentos;
e pera mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só pera mim,
anda o Mundo concertado.

Camões na gruta em Macau (DESENNE; 1817)

Mas não só a dor e o sofrimento foram os temas recorrentes na poesia de Camões. O poeta tem na sua temática também a presença da sua fé e procura mostrar como a religião fez parte da sua vida (14*). Mais: é na fé em Cristo que se encontra a solução da questão do confronto entre o bem e o mal, o certo e o errado, reflexo de uma angústia que mostra não só a força dramática do poema, mas também o drama interior do poeta, pois, como se vê neste soneto, “o melhor de tudo é crer em Cristo”:
Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
Têm do confuso mundo o regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte;
Mas sabe que o que é mais que vida e morte,
Que não o alcança o humano entendimento.
Doutos varões darão razões subidas;
Mas são experiências mais provadas,
E por isso é melhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem ser cridas
E cousas cridas há sem ser passadas...
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

Últimos momentos de Camões (C. BORDALO PINHEIRO)


4. Os Lusíadas
Trata-se de um poema de difícil, mas agradável, leitura. E, quando digo agradável, refiro-me à sonoridade, ao ritmo, à expressividade de imagens, à capacidade de síntese. Por exemplo, ocorre-me o modo como descreve aquele conceito platónico de que o corpo é a prisão da alma. Foram dois versos que me tornaram um admirador quase incondicional de Os Lusíadas:
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão. (V, 48,7-8).

Não concordo com perspectiva demasiado optimista de Costa Ramalho: considerando que foram “escritos para uma leitura em voz alta, como a pontuação das duas edições de 1572 sugere”, poderá ter uma grande divulgação se forem “bem lidos, em voz alta, e com um mínimo de explicações adequadas, para os menos cultos” (15*). Eu gosto de os ler e reler, mas com um bom comentário ao lado!

Camões lendo Os Lusíadas (ANTÓNIO CARNEIRO)

Estou muito mais de acordo com M.V. Leal de Matos que ressalta as dificuldades na leitura e no ensino da obra, dificuldades que decorrem de vários factores: a extrema complexidade da sua poesia, a sua constante dialéctica e ambivalência, a obscuridade não só por estar cheio de latinismos, de perífrases mitológicas, mas também por um certo hermetismo, na linha da poesia provençal que admitia um lado claro e acessível (“trobar leu”) e um outro lado obscuro, apenas para iniciados (“trobar clus”), a necessidade de conhecer o seu contexto cultural (neoplatonismo, diferentes posições dos portugueses quanto aos Descobrimentos, lacunas na biografia). E até faz uma acusação muito pertinente: “o mal do ensino de Camões vem de que raramente se lê Camões” e até insinua que, na Universidade, se lêem mais os camonistas e as suas teses do que o próprio Camões (16*).
Perante tantas dificuldades, vou apenas destacar alguns aspectos que, como amante mas também ignorante, me sensibilizam.

4.1. Linguagem (17*)
Camões teve um papel importante para fixar e dar autoridade à língua portuguesa, sob uma forte pressão tanto do latim, que era uma língua altamente prestigiada para a criação literária e a transmissão de conhecimento e cultura, como do espanhol, que sempre teve um papel predominante entre os nossos poetas e que, após a sua morte, se tornou uma ameaça séria à sobrevivência do idioma lusitano. Os seus textos poéticos, ao recusar-se a escrever naquelas duas línguas habituais, constituíram a afirmação definitiva da identidade e da autonomia da língua portuguesa.
Um exemplo bem plástico dessa sua sensibilidade, pode ler-se na Carta II (“Da Índia”), em que se queixa da linguagem das moças da Índia, que é tão rude que esfria até o ânimo mais romântico: “Respondem-vos üa linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo”.

4.2. Estrutura
Camões segue o esquema das epopeias clássicas, mas adaptando-o:
- a proposição: indica o que vai cantar: “as armas e os varões assinalados” (I, 1-3);
- a invocação: várias vezes repetida ao longo do poema, pedindo às musas e ninfas que o ajudem a estar à altura da tarefa: às Tágides, ninfas do Tejo, que lhe dêem “um estilo grandiloco” (I, 4-5); a Caliope (musa da Poesia épica), que o ajude a descrever a geografia e a história de Portugal (III, 1-2); às Ninfas do Tejo e do Mondego, queixa-se do seu infortúnio (VII, 78); de novo a Calíope, que lhe devolva “o gosto de escrever que vou perdendo” (X,8);
- a dedicatória (que não fazia parte das epopeias): oferece a sua obra a D. Sebastião (I, 6-15)¸ e
- a narração dos acontecimentos (I,19 a X,144).

In medias res
A narração começa a meio dos acontecimentos, já eles vão no Oceano Índico. As epopeias utilizam muito esta técnica literária, chamada in media res, "no meio das coisas" em vez de começarem no princípio (ab ovo ou ab initio), conforme a regra estabelecida por Horácio na sua Ars Poetica (Arte Poética), cuja tradução pode ver-se aqui:
nec gemino bellum Troianum orditur ab ouo;
semper ad euentum festinat et in medias res (147-148)
Nem a guerra de Tróia deve começar a partir do ovo (início) duplo,
mas sempre apressar-se para o acontecimento e no meio das coisas.
Isto obriga a apresentar os acontecimentos anteriores por flashback ou analepse (interrupção da sequência cronológica narrativa pela interpolação de factos anteriores). As obras primas clássicas seguiram este modelo.
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteu são cortadas, (I, 19)

No largo Oceano navegando, sob a protecção dos deuses


(continua)
Fontes

Comentários a “Os Lusíadas”
- EPIFÂNIO DIAS;
- JOSÉ AGOSTINHO;
- PAULO RAMOS;
- GERALDO DA CUNHA, Índice analítico do Vocabulário de Os Lusíadas.

Referências
(1*) A. ROSA MENDES, “A vida cultural”, in J.MATTOSO (Coord.), História de Portugal III Volume, pp. 375-402 (Círculo dos Leitores, 1993).
(2*) Google, “Full text of "Obras de Luiz de Camões; precedidas de um ensaio biographico, no qual se relatam alguns factos não conhecidos da sua vida” (1860), p. 485.
(3*) ANTÓNIO CIRURGIÃO, Será Camões a personagem Urbano da Lusitânia Transformada?
(4*) SHEILA MOURA HUE, Alguns apontamentos sobre a recepção da obra camoniana no século XVI
(5*) A.GOMES FERREIRA, Dicionário de Latim-Potuguês, Porto Editora, s/d, p. 554.
(6*) J. MARIA RODRIGUES, Fontes dos Lusíadas, Academia das Ciências de Lisboa, 1979, pp. 197-210
(7*) J.V. BARRETO FEIO e J. G. MONTEIRO, Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II, Lisboa 1843, pp. 189-190 e 200-201
(8*) J. MARIA RODRIGUES, o. cit., p. 205.
(9*) Carta VIII de António Ferreira a Pedro de Andrade in Google: Full texto of “Antonio Ferreira, poeta quinhentista”, p. 193
(10*) Écloga III, in Poemas Lusitanos do Doutor Antonio Ferreira, Terceira Impressão, Tomo I, Lisboa 1829, p. 203
(11*) Carta XIII ao Senhor D. Duarte, in Poemas Lusitanos do Doutor Antonio Ferreira, Segunda Impressão, Tomo II, Lisboa 1771, p. 58
(12*) Carta VIII a Pedro de Andrade, in Poemas Lusitanos do Doutor Antonio Ferreira, Terceira Impressão, Tomo II, Lisboa 1829, p. 45
(13*) P. LUZES, “O Eros Camoniano” in Estudos sobre Camões, INCM/Editorial Notícias,1981, pp. 69-82)
(14*) Paulo Rogério SOUZA, A religiosidade na poesia de Luís Vaz de Camões: a fé como proposta de solução para os “desconcertos do mundo.
(15*) A. COSTA RAMALHO, «Reflexões Camoninas», in Estudos sobre Camões, INCM/Editorial Notícias, p. 207.
(16*) M.V. LEAL DE MATOS, «O ensino de Camões», in Estudos sobre Camões, INCM/Editorial Notícias, pp. 211-217.
(17*) TELMO VERDELHO, Linguística Camoniana.


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