segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Dois modelos em confronto: Big Bang e Estado Estacionário

SUMÁRIO PARA O BLOGONAUTA

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. A caminho do modelo heliocêntrico
12. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
12A. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
13. O génio do "modelo experimental" (Galileu) – Descobertas
14. Caso Galileu (1)
15. Caso Galileu (2)
16. A caminho das estrelas
17. Primeiras medições astronómicas
18. Medição das distâncias: Descoberta das Cefeidas
19. Medição das distâncias: a Fotografia entra em cena
20. Medição das distâncias: Cefeidas como Padrão de Medida
21. Interregno: Mini-Guiness sobre as Estrelas
22. História da Luz: Olho 
23. História da Luz
24. Luz e Espectroscopia
25. Problema das Galáxias
26. Medição da velocidade das galáxias (Efeito de Doppler)
27. Lei de Hubble
28. Constante de Hubble
29. Modelos teóricos partem todos da Teoria da Relatividade
30. Dois modelos em confronto: Big Bang e Estado Estacionário
31. Duas dificuldades
32. Big Bang impõe-se




Utilizar a expressão Big Bang nos finais da década de 20 do século passado é um anacronismo. Como referi no último post, já havia ideia de expansão, de expansão a partir de um dado momento por meio da “explosão” de um átomo primordial. Mas esta expressão só apareceu uns vinte anos depois, quando Fred Hoyle, um dos grandes opositores deste modelo, lhe chamou por despeito, num programa da BBC, um “grande estoiro” (big bang). E pegou!
Dada esta explicação, vou a partir de agora falar do modelo do Big Bang como se ele já tivesse esse nome.




Os trabalhos de Friedmann e de Lemaître foram inicialmente criticados por Einstein. Contudo, depois da publicação da lei de Hubble, percebeu que que estava errado. A 3.Fev.1931, renunciou publicamente à sua cosmologia estática e deu apoio ao modelo do Big Bang, de um universo em expansão. Também reviu as suas equações, deixando cair a constante cosmológica. Mais tarde, teve este desabafo: “A introdução da constante cosmológica foi o maior erro da minha vida!”. Aliás, ele não gostava da constante cosmológica. Só a introduziu para que as equações não pusessem em causa a sua crença num Universo estático: “Desde que introduzi o termo que me sentia mal com isso. Não consigo acreditar que a natureza se sirva de algo tão feio”. Curiosamente, muito mais tarde, com a descoberta da energia negra, a constante cosmológica voltou a ser considerada, uma vez que, representando uma anti-gravidade poderia explicar a aceleração da expansão do Universo, detectada na década passada. Mas este é um assunto a considerar mais à frente.
Como é natural houve cientistas que continuaram a não aceitar este modelo, porque pensavam que fora influenciado pela teologia católica de Lemaître (uma explicação para o relato da criação no livro do Génese da Bíblia). Contudo, Lemaître insistiu claramente que não havia qualquer ligação ou conflito entre a sua religião e a sua ciência: procurou sempre separá-las, considerando-as como interpretações, a nível diferente,  do mundo. Por isso foi bastante alarmado quando o Papa Pio XII se referiu à nova teoria da origem do universo como uma validação científica da fé católica: "Parece, na verdade, que a ciência hoje, remontando milhões de anos atrás, conseguiu tornar-se testemunha deste Fiat lux inicial, deste instante em que surgiu do nada, com a matéria, um oceano de luz e de radiações, enquanto as partículas dos elementos químicos se separavam e se associavam em milhões de galáxias" (1*).


Lemaître recusava este "concordismo" e fê-lo sentir delicadamente, insistindo em que a história científica do Universo e a verdade religiosa constituíam dois domínios distintos: “Tanto quanto eu posso ver, tal teoria permanece totalmente fora de qualquer questão metafísica ou religiosa. Ela deixa o materialista livre para negar qualquer Ser transcendental... Para o crente, remove qualquer tentativa de familiaridade com Deus... Ela está em consonância com Isaías, quando este fala do Deus escondido, escondido mesmo no início do universo”. Apressou-se a falar com Pio XII para o convencer de que não era bem assim. Antes, pelo contrário era importante não misturar ciência (os “dois caminhos” atrás referidos). Pio XII, no ano seguinte, no Discurso ao Congresso Mundial de Astronomia (2*), renunciou a esse ponto de vista, separando os campos da ciência e da religião, com inegáveis vantagens para ambos.

Alternativas ao  modelo do Big Bang
Os que não aceitavam o modelo de Big Bang procuraram encontrar outras alternativas para explicar o desvio para o vermelho medido por Hubble. Defendiam um Universo onde não houvesse criação, que fosse eterno. 


Uma dessas propostas foi feita por Fritz Zwicky (1898-1974), uma pessoa meio excêntrica e de mau feitio. Usava frequentemente como insulto a expressão “sacana esférico”, porque, como uma esfera apresenta sempre o mesmo aspecto, também o sacana esférico é um sacana seja qual for o ponto pelo qual o vejamos.
Zwicky partiu do princípio que tudo o que é ejectado de um planeta ou de uma estrela perde energia. O mesmo acontece à luz. Quando a luz é emitida por uma galáxia, ela perde energia devido à atracção gravitacional da galáxia. Como a velocidade da luz não pode variar, a perda de energia manifesta-se no alongamento do seu comprimento de onda, que como já sabemos, corresponde a um desvio para o vermelho (maiores comprimentos de onda). Portanto não era precisa a expansão para obter o desvio para o vermelho (redshift), como se vê na imagem.


Era a teoria da luz cansada. Os defensores do Big Bang reconheceram este efeito, mas demonstraram que ele era demasiado pequeno para justificar tão grande desvio para o vermelho.
Apesar do seu feitio, Zwicky foi um grande cientista. Inclusivamente, descobriu que para explicar o movimento das galáxias no aglomerado Comas era necessário muito mais matéria do matéria visível. Isto foi há mais de setenta anos e era tão absurdo que ninguém lhe deu atenção. E no entanto, agora todos aceitam isso como um facto real, falando-se da matéria negra para explicar essa “anomalia” na velocidade das galáxias num aglomerado.

Embora não se tratasse de uma alternativa absoluta ao modelo Big Bang, é oportuno registar aqui que Eddington (1882-1944), sim o tal do eclipse de 1919, não gostava da ideia de uma explosão: o modelo de Lemaître da criação era “esteticamente demasiado abrupto”. Inicialmente havia um pequeno universo compacto, não muito diferente do de Lemaître. Contudo, em vez de explodir, começou com uma expansão gradual até atingir o valor que tem hoje. Para Lemaître, a expansão era produzida como a explosão de uma bomba; para Eddington, como o desencadear de uma avalanche: uma montanha de neve pode permanecer estável durante muitos anos, até que uma ligeira brisa ou um simples estampido pode desencadear a avalanche.

Desigual distribuição dos elementos químicos
Embora a Terra tenha vários átomos e moléculas, como o seu núcleo (Ferro e Níquel), os mares de água (Hidrogénio e Oxigénio), a atmosfera (Oxigénio e Azoto), etc., esta não é a composição normal do Universo. Os estudos espectroscópicos mostraram que as estrelas são fundamentalmente constituídas por muito Hidrogénio e algum Hélio (cerca de 99%).




Qual a razão desta grande diferença entre a percentagem dos átomos leves (Hidrogénio e Hélio) e a dos mais pesados (maiores que o Hélio)?
Esta questão punha-se a todos os modelos. Para os defensores do Universo eterno, restava a resposta de que sempre assim foram e sempre assim seriam: era uma propriedade intrínseca do Universo.
Para os seguidores do Big Bang, a resposta era ainda mais complicada: se o Universo teve origem num instante, por que é composto de H e He e não de Ferro e Ouro? Se não fosse capaz de explicar isto, a teoria do Big Bang estava votada ao fracasso.
Talvez a resposta viesse dos próprios átomos, da física nuclear que entretanto se fora desenvolvendo.
Um dos primeiros a aplicar a física nuclear à astronomia foi Fritz Houtermans (1903-1966). Era um homem corajoso e cheio de humor, filho de mãe judia. Quando ouvia comentários anti-semíticos, comentava: “Ainda os seus antepassados viviam nas árvores, já os meus falsificavam cheques!”. A sua vida foi bastante complicada. Por ser membro do partido comunista alemão, teve que fugir da Alemanha para a União Soviética, onde foi preso, acusado de ser espião nazi, tendo sofrido dolorosos interrogatórios pela NKVD (antecessora do KGB). Foi libertado após o acordo germano-soviético, tendo sido preso pela Gestapo, o que lhe permitiu fazer o seguinte comentário: “O NKVD é uma organização mais profissional. Quando estava a ser interrogado pela Gestapo, o interrogador estava com o meu dossiê aberto na mesa à sua frente. Mas eu sou capaz de ler textos de pernas para o ar. O NKVD nunca teria cometido tal erro”.
Houthermans ficara fascinado com a ideia de que a física nuclear permitia explicar a origem da energia do Sol e das outras estrelas. Já se sabia que o Sol era constituído fundamentalmente por Hidrogénio (H) e Hélio (He). Por isso, era natural que ele supusesse que a energia do Sol provinha da fusão do H em He.


Sabia-se também que, quando o H se transforma em He, se “perde” 0,7% da massa: 1 kg de H produz cerca de 0,993 kg de He. Claro que esta massa não se perde. Transforma-se em energia, através da célebre fórmula de Einstein, E = mc2. Fazendo as contas:


Energia = Massa x Quadrado da velocidade da luz
= 0,007kg x (300 000 000 m/s)2
 = 6,3 x 1014 Joules

Esta energia que é semelhante à produzida por 100 mil toneladas de carvão. Isto é, na reacção nuclear que acontece no Sol, a fusão (termo técnico para indicar a transformação de elementos leves noutros mais pesados) de 7 g de H produz tanta energia como 100 000 T de carvão! Por isso, o Sol emite luz e calor há tantos anos e vai emitir por muitos mais no futuro.
Mas havia uma dificuldade. A sua teoria era só uma explicação parcial, porque a fusão de dois núcleos de H dava um núcleo de He muito instável, pois não tinha os dois neutrões. É que, em 1929, quando Houthermans publicou estes resultados, ainda não tinha sido descoberto o neutrão, o que só aconteceria em 1932, na altura em que Houthermans começara a odisseia política atrás referida.
As suas ideias foram retomadas por Hans Bethe (1906-2005) que também teve de fugir da Alemanha pelo facto de a sua mãe ser judia. Mas escolheu a Inglaterra e mais tarde os Estados Unidos, onde trabalhou no Laboratório de Los Alamos, que acabaria por produzir a bomba atómica. Bethe propôs dois mecanismos envolvendo neutrões que, embora especulativos, acabaram por obter a concordância de outros físicos. Assim estava descoberto o que fazia brilhar as estrelas.

Esta descoberta fez a ligação entre o macro (escala cósmica) e o micro (escala atómica) no estudo do Universo, um casamento que viria a ser muito fértil. Se a física nuclear explica como as estrelas transformam átomos simples noutros mais pesados (nucleossíntese estelar), talvez possa também explicar como é que no Big Bang se originaram aos átomos que formam o Universo actual e a sua respectiva abundância (nucleossíntese cosmológica).

G. GAMOW (1904-1968)
Gamow nasceu em Odessa, na actual Ucrânia. Era um livre-pensador, um cientista polivalente (mais tarde até se dedicou a estudar a estrutura do DNA) e alguém muito divertido que gostava de vodca, de fazer truques com as cartas, de contar piadas e escrever poemas humorísticos.
Quando o pai lhe ofereceu um microscópio ele quis estudar o fenómeno da transubstanciação (a transformação do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo). Um dia depois de comungar, correu para casa para poder observar ao microscópio um pedaço da hóstia e umas gotas de vinho consagrado. O não ter encontrado nada de diferente do pão e vinho normais marcou a sua vida: “Penso que foi esta experiência que me transformou num cientista”, explicou ele mais tarde.
Mais tarde, veio a afirmar que Deus morava a 9,5 anos-luz da Terra!!! Baseara-se no facto de, em 1904, no início da guerra russo-nipónica, as igrejas russas terem rezado pela destruição do Japão, o que só viria a acontecer com o terramoto de Kanto, em 1923. Como as orações não podem viajar a maior velocidade que a luz, este atraso reflectia o atraso com que as orações chegaram à morada celestial. Portanto, se este atraso é de 19 anos – viagem de ida (das orações) e viagem de volta (resposta de Deus) – então Deus moraria a 9,5 anos-luz. Simples, não!?
Gamow: Auto-retrato

Começou a sua vida académica, como físico, tendo trabalhado com Friedmann. Mas preferiu dedicar-se à física nuclear, tendo feita algumas descobertas que o tornaram famoso. O Pradva dedicou-lhe um poema e num outro jornal escreveu-se que “um cidadão soviético mostrou ao Ocidente que o solo soviético também produz Platões e Newtons de inteligência brilhante”.
No entanto, ele não conseguia viver num meio em que o marxismo-leninismo é que decidia da validade das teorias científicas. Assim, começou a planear a sua fuga.
Na primeira tentativa, tentou atravessar o Mar Negro até à Turquia. Ele e sua mulher Lyubov Vokhminzeva pensavam ser capazes de atravessar os 250 km de água num simples caiaque. Ao fim de dia e meio, o tempo tornou-se insuportável e tiveram de voltar para trás.

Gamow e a mulher e Preparativos para atravessar o Mar Negro
Fonte: S, Singh, Big Bang, p. 349

Uma segunda tentativa também falhada foi a de atravessar as águas geladas do Árctico, de Murmansky até à Noruega. Não se percebe bem como pode Gamow acreditar nestas fugas fabulosas. Perante estes fracassos, mudou de táctica. Aproveitando um convite para participar na Conferência Solvay de  físicos em Bruxelas, em 1933, procurou obter um visto do ministério dos negócios estrangeiros para si e para sua mulher.


1ª Conferência Solvay (1911)

A fina flor da Física na entrada do século XX: 1 Walter Nernst 2 Robert Goldschmidt 3 Max Planck 4 Léon Brillouin 5 Heinrich Rubens 6 Ernest Solvay 7 Arnold Sommerfeld 8 Hendrik Antoon Lorentz 9 Frederick Lindemann 10 Maurice de Broglie 11 Martin Knudsen 12 Emil Warburg 13 Jean-Baptiste Perrin 14 Friedrich Hasenöhrl 15 Georges Hostelet 16 Edouard Herzen 17 James Hopwood Jeans 18 Wilhelm Wien 19 Ernest Rutherford 20 Marie Curie 21 Henri Poincaré 22 Heike Kamerlingh Onnes 23 Albert Einstein 24 Paul Langevin


Com interferência de Niels Bohr, conseguiu ser convidado por Paul Langevin, físico francês que era comunista e tinha algum prestígio entre os russos. Mesmo assim, Gamow ainda precisou de usar muita saliva para trazer consigo a mulher, como secretária. Foi um processo lento devido a todas as burocracias, mas acabou por dar resultado. Assim conseguiu finalmente fugir da União Soviética, tendo chegado aos Estados Unidos, no ano seguinte, ocupando um lugar na universidade G. Washington, onde passou duas décadas a testar a hipótese do Big Bang.
Muito interessado nas possíveis relações entre o Big Bang e a nucleossíntese, procurava resposta para duas questões. 1) Seria a predominância do H e do He causado por fenómenos ocorridos nos primeiros momentos após o Big Bang? 2) Será que o Big Bang pode explicar a abundância dos átomos pesados?
Recordemos a proposta de Lemaître. O Universo iniciava-se com um único átomo superpesado que originaria todos os outros átomos: “O átomo-mundo dividiu-se em múltiplos fragmentos, e cada um destes em fragmentos mais pequenos. Supondo, para simplificar, que todos os fragmentos são do mesmo tamanho, seriam necessárias duzentas e sessenta fragmentações sucessivas para pulverizar o átomo primordial nos átomos actuais, demasiado pequenos para continuarem a fragmentar-se”. O seu ponto de partida é que os núcleos atómicos grandes são instáveis. Então o super-átomo seria ainda mais e acabaria por se fragmentar. A massa destes fragmentos devia andar pelo meio da tabela periódica, já que o Ferro é o núcleo mais estável. Lemaître não sugeriu nenhum mecanismo para a produção do H e do He.
Gamow achava que Lemaître estava muito enganado. Por isso, em vez de ir do todo para as partes seguiu o caminho inverso. E se o Universo tivesse começado – e aqui está um dos contributos fundamentais de Gamow – por ser um caldo denso de átomos de H, o que sucederia quando o Universo começasse a expandir-se?
Havia, porém, dois problemas quanto à fusão nuclear nas estrelas
As estrelas produziam He muito lentamente. Então, Gamow concluiu que talvez o He tenha sido produzido nos momentos iniciais do Universo e não nas estrelas.
Por outro lado, a fusão estelar parecia incapaz de produzir átomos para lá do H e He. Isto é, quanto a metais pesados, as estrelas pareciam um beco sem saída. Só no Big Bang isso poderia acontecer.
Gamow viu aqui uma oportunidade para o modelo Big Bang. Nos inícios da década de 40 começou a sua investigação visando explicar a produção dos elementos pelo Big Bang. Era uma investigação que exigia profundos conhecimentos da física nuclear. E este campo estava confiado apenas a Gamow, pois todos os outros físicos nucleares tinham sido requisitados pelo governo americano para o Projecto Manhattan, em Los Alamos, cujo objectivo era construir a primeira bomba atómica.

Durante o Projeto Manhattan os operadores trabalhavam em turnos cobrindo 24 horas por dia. Gladys Owens, a mulher sentada à direita mais próximo da câmara, não sabia qual a finalidade do seu trabalho até ver esta foto quando passeava nas instalações, 60 anos mais tarde.


Tendo presente a lei de Hubble, começou por perguntar-se o que sucederia se olhássemos para trás: invertendo a flecha do tempo, o Universo contrair-se-ia, sendo possível calcular a densidade média num dado instante do passado. Por outro lado, a compressão produz normalmente calor. Isto é fácil de verificar: basta encher um pneu de bicicleta para sentir a bomba a aquecer nas nossas mãos. Assim, Gamow concluiu que o Universo primitivo era muito mais quente que o actual e que podia calcular a temperatura e a densidade do Universo em qualquer momento do passado.
Era essencial conhecer as condições no Universo primordial, pois o resultado de qualquer reacção nuclear dependia precisamente da temperatura e da densidade. Conhecidas estas grandezas, Gamow estava convencido de poder descobrir as reacções nucleares acontecidas a seguir ao Big Bang.
Dado a temperatura ser tão elevada, a matéria devia estar o mais fragmentada possível, ou seja devia ser um caldo quente de protões, neutrões e electrões, os três tipos de partículas mais pequenas conhecidas no seu tempo. Chamou a esse caldo Hylem (3*). Agora era preciso descobrir como é que estas partículas fundamentais se podiam juntar para formar elementos mais pesados. Esta era uma tarefa muito complicada devido a quatro factores:
1) O Universo, devido à sua expansão, estava continuamente a arrefecer. Por causa deste arrefecimento contínuo, a nucleossíntese cosmológica estava confinada a uma janela muito curta de tempo.
2) Os neutrões livres são muito instáveis e decaem para metade cada 11 minutos (tempo de vida médio). Isto é, passados 11 minutos, a quantidade de neutrinos passa a metade; aos 22 minutos já só há metade dos anteriores, ou seja, um quarto dos iniciais; aos 33 minutos, há apenas 1/8, … Ao fim de 1 hora, subsiste menos de 2% da população inicial de neutrões.
3) Há algumas reacções que produzem neutrões, baralhando as contas.
4) Gamow era um fraco matemático e lutou, lutou com as equações sem conseguir avançar.
Foi então que encontrou um estudante brilhante, Ralph Alpher (1921-2007), que convidou a trabalhar com ele e a fazer os cálculos. Durante três anos fizeram (fez Alpher) cálculos e mais cálculos até que conseguiram mostrar que a quantidade de He produzida no Big Bang coincidia com o valor observado. Foi um resultado histórico porque mostrou que o modelo Big Bang podia explicar a abundância do He e os vestígios de Lítio.

Estes resultados foram publicados por Gamow, juntamente com Ralph Alpher e Hans Bethe, no artigo “A Origem dos Elementos Químicos” no Physical Review de 1.Abril.1948. Só para que conste, este artigo foi dos primeiros, se não o primeiro, a utilizar a computação automática. Os resultados foram obtidos com uma calculadora de mesa eléctrica da marca Marchant & Friden. Os autores começaram por adquirir um computador analógico Reeves, ao qual acoplaram uma unidade de gravação magnética. Investiram também numa calculadora IBM programável com cartões perfurados. Por fim recorreram a um dos primeiros computadores digitais, o SEAC (4*).
Este artigo mostra também os dotes de brincalhão de Gamow. O trabalho fora feito essencialmente por Alpher, supervisionado por Gamow, que resolveu incluir o nome do seu amigo Hans Bethe, um especialista em nucleossíntese estelar mas não em nucleossíntese cosmológica. Esta brincadeira fazia com que o artigo ficasse conhecido com o artigo “alfa, beta e gama” as três primeiras letras do alfabeto grego: α (Alpher) - β (Bethe) - γ (Gamow). 

Uma pequena explicação
Antes de falar deste artigo, talvez sejam oportunas três notas.

1. O átomo é formado por um núcleo e electrões à sua volta. O núcleo é constituído por dois tipos de partículas: o protão, com carga positiva, e o neutrão com carga eléctrica (portanto neutro, daí o seu nome). Estes constituintes do núcleo chamam-se nucleões.
Cada átomo é caracterizado por duas grandezas: A, o número de massa, que corresponde grosso modo à soma do número de protões com o número de neutrões (ou seja, o número de nucleões) e Z, o número atómico, igual ao número de protões.





Realmente cada átomo é caracterizado pelo Z (número atómico). Por exemplo, o átomo com Z = 6 é “sempre” Carbono (C), com Z = 8, Oxigénio (O). Simplesmente cada átomo (ou elemento químico) pode ter diferentes M (número de massa). Os átomos que têm o mesmo Z e diferente A chamam-se Isótopos.


Até aos anos 70 supunha-se que o protão e o neutrão eram partículas elementares, mas com a descoberta dos quarks verificou-se que o protão e o neutrão eram formados por três quarks cada um.

Representação "clássica" do átomo antes dos anos 70 e depois

Os quarks estão ligados (confinados) entre si por partículas de força chamadas gluões para formarem o protão e o neutrão (e outras partículas). Existem seis quarks, mas a matéria ordinária é formada por dois apenas: o quark u (up) e o quark d (down), Os quarks apresentam várias particularidades um pouco estranhas. Por exemplo, a sua carga eléctrica é fraccionária: u tem +2/3 de carga eléctrica e o d -1/3.
O protão é formado de 2u e 1d. Portanto a sua carga eléctrica é 2 x (+2/3) + 1 x (-1/3) = +1.
O neutrão é constituído por 1d e 2u. A sua carga eléctrica é, portanto, 1 x (+2/3) + 2 x (-1/3) = 0 (nula).



Nos momentos iniciais do Universo, aqueles que Gamow estava investigar, não existiam átomos, mas apenas núcleos, porque as temperaturas eram tão elevadas que não era possível formar os átomos: apenas existiam núcleos e electrões mas fazendo vida separados, aquele caldo primitivo que Gamow chamou de hylem. .

2. A expansão do Universo, como a expansão de qualquer gás, produz arrefecimento. Assim, o Universo com a expansão vai arrefecendo rapidamente de tal modo que a sua temperatura, 15 minutos após o Big Bang, já era “apenas” de alguns milhões de graus. Ora as reacções nucleares para que possam formar-se novos núcleos exigem temperaturas de muitos milhões de graus. Portanto, as reacções com que Gamow contava para formar Deutério e Hélio, deixavam de ser possíveis a partir dos 15 minutos. Isto é, havia apenas um “janela” de um quarto de hora para formar os elementos na nucleossíntese cosmológica.

3. Mas havia uma outra dificuldade. O neutrão, quando ligado ao protão nos núcleos, é muito estável. Livre, porém, é muito instável: decai para um protão e outras partículas (electrão e neutrino)

Decaimento do Neutrão em Protão e duas outras partículas

E tão rapidamente que ao fim de cerca de 10 minutos já só existe metade dos neutrões livres. Portanto, a partir dos 10 m, os neutrões são cada vez menos (e os protões cada vez mais). Ora sem neutrões não há núcleos atómicos, que formem mais tarde os átomos.

Fenda dos cinco nucleões
No artigo alfa-beta-gama propunha-se a existência de um Universo Primordial extremamente denso e quente (T~1010K) resultante do “grande estoiro” (big bang) inicial e mostrava-se como os elementos leves (Hidrogénio, Deutério, Hélio e Lítio) foram formados nestas condições. Nos primeiros minutos de vida, o Universo tornou-se, pois, uma verdadeira “fornalha termonuclear”, como acontece agora no interior das estrelas. A abundância primordial desses elementos está de acordo com as observações astronómicas, o que reforça a teoria. Com o processo de expansão e arrefecimento do Universo, os neutrões livres, presentes no “fluido primordial” (matéria + radiação), começaram a decair em protões e electrões. Posteriormente, quando a temperatura era adequada, iniciou-se o processo de captura dos neutrões por alguns protões, formando núcleos de Deutério. Assim, os neutrões escaparam ao decaimento radioactivo, viabilizando a formação do Trítio, Hélio e raros vestígios do Lítio.
Mas o artigo trazia também más notícias para o Big Bang. Não apresentava nenhuma explicação para a formação dos elementos mais pesados (que o Hélio). Os autores nem sequer abordaram o assunto, pois esperavam resolvê-lo mais tarde. Mas parecia que estavam num beco sem saída. Esse beco ficou conhecido como a “fenda dos cinco nucleões”. Efectivamente, os cálculos de Gamow e colaborador não conseguiam dar conta da formação de um núcleo com 5 nucleões (atenção existe o átomo 5 que é o Boro, mas não existe um núcleo com cinco nucleões). Isto era um problema sério para o Big Bang que podia até inviabilizá-lo, porque sem a formação de um núcleo com 5 nucleões, a nucleossíntese não podia avançar.. A solução deste problema foi encontrada por Fred Hoyle, que, como já referi, era um dos grandes opositores do modelo Big Bang.


FRED HOYLE (1915-2001)
Este inglês foi um rebelde mas também um génio criativo.
Com apenas 5 anos, aprendera sozinho a ver as horas. Verificara que os pais quando queriam saber as horas olhavam para o relógio. Então começou a perguntar as horas para ver se percebia o que passava. Num dia em que o mandaram deitar às “sete e vinte” conseguiu resolver o enigma: “Foi então que tive uma ideia. Seria possível que o tempo, em vez de ser um número misterioso e desconhecido chamado “sete e vinte” fosse na realidade dois números, vinte e sete? O relógio tinha dois ponteiros. Talvez um dos números pertencesse a um dos ponteiros e sete a outro. Bastou, no dia seguinte, perguntar mais vezes para verificar que assim era”.

Fred Hoyle e ... as reacções nucleares

Preferia aprender por si mesmo, pelo que faltava muito à escola. Recorda-se de uma vez em que um professor tentou ensinar-lhe a numeração romana, que ele pensava ser uma verdadeira inutilidade: “Foi mais do que seria razoável suportar. O dia deste atentado à inteligência foi o último que passei naquela escola”. Noutra escola, levou uma flor para mostrar que tinha mais pétalas do que o professor ensinara na véspera. Como resposta levou uma bofetada pela insolência. Fred saiu da aula e nunca mais voltou.
Até que surgiu o gosto pela astronomia e Hoyle resolver dar outra oportunidade ao sistema educativo britânico.

A dança dos Prémio Nobel
Foi Hoyle e a sua equipa – E. Margaret Burbidge, G. R. Burbidge, William A. Fowler & Fred Hoyle – que descobriram como se formaram os vários núcleos atómicos. Publicaram um artigo famoso na Review of Modern Physics 29 (1957) 547-650, do qual fazia parte a não menos célebre Tabela, na qual se indicavam os vários processos nucleares para a formação de todos os elementos químicos nas estrelas.


Tabela indicando os vários processos nucleares de formação de todos os elementos

Os vários elementos foram formados nas estrelas através de várias etapas, cada uma por métodos diferentes, e através de várias gerações de estrelas que ao explodir iam espalhando pelo espaço intergaláctico os seus elementos, que iam servir de matéria prima para as estrelas das gerações seguintes. 
O mais “interessante” é que tenha sido o seu colaborador W.A. Fowler o laureado com o Nobel da Física de 1983 por esta descoberta, não levando em conta a contribuição original de Hoyle, o que deixou muita gente surpreendida por um astrónomo tão famoso nunca ter recebido este prémio. O próprio Fowler destacou os esforços pioneiros de Hoyle: “O conceito de nucleossíntese nas estrelas foi estabelecido primeiramente por Hoyle em 1946. Isso forneceu uma explicação para a existência de elementos mais pesados que o Hélio no universo, basicamente mostrando que elementos críticos como o carbono poderiam ser produzidos nas estrelas e mais tarde incorporados em outras estrelas e planetas quando a estrela "morre". As novas estrelas formadas recentemente já são formadas com esses elementos pesados, e elementos ainda mais pesados são formados a partir deles. Hoyle estabeleceu a teoria de que outros elementos raros podiam ser explicados por supernovas, as explosões gigantes que ocorrem ocasionalmente no universo, cujas temperaturas e pressões seriam requeridas para criar tais elementos”.
Mas os senhores Nobelistas são tão humanos como os outros (!?) e não terão perdoado a Hoyle as críticas que ele dirigiu a essa Comissão de Sábios. Foi pena. Mas nestas coisas somos todos um bocadinho vingativos e deixamo-nos guiar mais facilmente pelo cérebro dos répteis – camada do nosso cérebro herdada dos répteis e responsável pela obsessão da territorialidade, do “aqui quem manda sou eu”, pelo pânico, pelo medo e certamente também pelas vinganças, digo eu – do que pelos ideais nobres da solidariedade, tolerância, etc., característicos do consciência moral humana!

Modelo do Estado Estacionário
Entretanto durante a II grande mundial, trabalhou no aperfeiçoamento do radar. Aí conheceu Thomas Goldi e Hermann Bondi, que acabaram por colaborar numa alternativa ao Big Bang. Numa noite, em 1946, foram ver um filme – Dead of Night – com uma estrutura circular, de modo que o enredo e as personagens iam mudando mas terminava como começara, tipo pescadinha de rabo na boca, Goldi perguntou: “E se o universo fosse assim? É habitual pensar-se que uma situação imutável tem de ser estática. O enredo do filme livrou-nos dessa ideia errada. Há situações imutáveis que são, no entanto, dinâmicas, por exemplo, a corrente de um rio tranquilo”. O filme obrigara-os a ver o universo de um modo diferente.
E assim surgiu o modelo do Estado Estacionário.
Como aplicou Goldi este princípio – de continuidade na mudança e constante – ao universo? Era claro que o Universo estava em mudança constante, pois tudo indicava que estivesse em expansão. Faltava um mecanismo adequado, que compensasse o efeito da expansão e produzisse um estado essencialmente mutável. A ideia não podia ser menos inesperada. Esse mecanismo era a criação contínua de nova matéria para que a densidade do universo não se alterasse. A princípio, Fred e Bondi acharam a ideia completamente maluca. Mas depois foram discutindo e fazendo cálculos e verificaram que esta proposta era coerente e compatível com muitas observações astronómicas. Então, guiados pelo princípio cosmológico de Einstein, segundo, o qual o nosso lugar no Universo não é diferente dos outros, Goldi generalizou para o princípio cosmológico perfeito: o Universo não é apenas o mesmo em toda a parte ou visto de qualquer lado mas também é o mesmo em todos os tempos. Em 1949, saíram dois artigos: um, de Goldi e Bondi, apresentando o modelo e outro de Hoyle, que apresentava o modelo com mais detalhes matemáticos.
O modelo levantava de imediato duas questões. 1) Onde estava a matéria a ser criada? 2) Donde é que vinha?
Feitos os cálculos, verificaram que bastava, para compensar a expansão do Universo, criar “um átomo por século num volume igual ao do Empire Sate Building”, o que seria indetectável da Terra.
Para responder à questão “donde vinha a matéria”, Hoyle imaginou um campo C – campo da Criação – de que não fazia ideia do seu significado e natureza, mas acrescentava: se o Big Bang admite a criação num instante, por que não aceitar uma criação contínua?

Fonte: Big Bng, p. 390

Assim passámos a ter dois modelos completamente diferentes:

- para o Big Bang, o Universo tinha um momento de criação bem definido, uma idade finita e um futuro muito diferente do passado;
- para o modelo do Estado Estacionário, a criação era contínua, a idade infinita e o futuro essencialmente semelhante ao passado.
Como se vai sair deste impasse? Veremos no próximo post.

Poema divertido de Gamow
Para terminar, mais um exemplo do humor espirituoso e brincalhão de Gamow, ao fazer uma adaptação do livro bíblico do Génese (primeiro livro da Bíblia) num poema incluído na sua autobiografia, que tem o título de "My Word Line":

"No princípio Deus criou a radiação e o Hylem. 
E o Hylem era sem forma ou número,
E os nucleões corriam loucamente
Sobre a face da profundidade abissal.
E Deus disse: "Que haja a massa dois." E houve a massa dois.
E Deus viu o deutério, e o deutério era bom.
E Deus disse: "Que haja a massa três."
E houve a massa três.
E Deus viu o trítio, e o trítio era bom.
E Deus continuou a chamar número após número,
até chegar aos elementos transuranianos.
E então, contemplando sua obra,
Deus viu que ela não era boa.
Pois, no entusiasmo da contagem,
deixara de criar a massa cinco.
E, se assim ficasse, nenhum elemento mais pesado
poderia ter sido formado.
Deus ficou muito desapontado
e quis contrair o Universo novamente
e começar tudo de novo.
Mas isso seria simples demais.
E então, sendo todo-poderoso,
Deus quis corrigir aquele engano
da forma mais impossível.
E Deus disse: "Que haja o Hoyle." E houve o Hoyle.
E Deus, olhando para Hoyle, ordenou-lhe
que produzisse elementos pesados
do jeito que lhe aprouvesse.
E Hoyle decidiu fabricar elementos
pesados nas estrelas
e espalhá-los mediante explosões de supernovas.
Ele tinha, porém, de obter as mesmas quantidades
que teriam resultado da nucleossíntese do ylem,
se Deus não se tivesse esquecido de chamar a massa cinco. 
E assim, com a ajuda de Deus, Hoyle fez os elementos desse modo.
Mas era tão complicado que, hoje em dia, nem Hoyle, nem Deus,
nem ninguém mais pode determinar exactamente como foi feito.
Amén."

Gostou? Então volte a ler agora com acompanhamento ao violino por Einstein.



Referências
(1*) PIO XII no Discurso "Un ora" à Academia Pontifícia das Ciências, a 22.Nov.1951. Esta citação vem no nº 35 da versão francesa: ver La Documentation Catholique (DC) nº 1110 de 16.Dez.1921, vol XLVIII, col. 1547. 
(2*) Discurso de 7.Set.1952; ver DC, vol XLIX, col. 1217.
(3*) Hylem vem do grego hile (ὕλη), que significa "matéria". Este termo já aprecia na teoria aristotélica do hilemorfismo, de hile e morphé (μορφή), "forma", com a qual Aristóteles procurava responder às aporias de Parménides (unidade-pluralidade) e Heráclito (mutabilidade-imobilidade das coisas) sobre a natureza das mudanças substanciais no Cosmos, no Universo.
(4*) S. SINGH, Big Bang (Gradiva) p. 368. Este post  deve muito a este livro, que já tenho referido noutras ocasiões, tanto nos episódios divertidos dos personagens, como nas citações. Aqui utilizei sobretudo o cap. 4, pp. 301-397.

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