terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)

Sumário para o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. A caminho do modelo heliocêntrico
12. O génio do "método experimental" (Tycho Brahe e Kepler)
13. O génio do "modelo experimental" (Galileu)
14. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
15. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
16. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
17. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
18. Modelo de Einstein
19. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Uma imagem por post
 


Tycho Brahe e Kepler fazem uma dupla inseparável: Tycho, porque conseguiu realizar as observações astronómicas mais rigorosas possíveis, mas não sabia “matemática” suficiente para delas tirar todas as consequências; Brahe, porque tinha a “matemática”, mas não tinha os dados observacionais.

Durante décadas, Tycho melhorou aparelhos de medida e inventou outros chegando a fazer observações, a olho nu (o telescópio ainda não tinha sido inventado), da ordem de um minuto de grau: cerca de dez vezes mais precisas do que as obtidas antes dele. A imagem abaixo procura ajudar a perceber que 1 minuto de grau corresponde ao sector de arco que se obtém dividindo uma circunferência em 21 600 fracções.

360 (graus) x 60 (minutos que tem cada grau) = 21 600

Foi a precisão destes dados experimentais que permitiu a Kepler descobrir que os planetas não se moviam a velocidades constantes (2ª lei) e que as suas órbitas eram elípticas (1ª lei). Efectivamente, ao verificar que os seus cálculos, no caso do planeta Marte, davam um desvio de 8 minutos de grau relativamente às tabelas de Brahe, concluiu que a sua teoria tinha de estar errada, porque Brahe nunca cometera um erro daquela grandeza!
Mas disto tudo tratarei a seguir. Embora fale de cada um deles em separado, é inevitável haver alguma duplicação, porque as suas vidas, a dada altura, entrelaçaram-se de um modo muito profundo.


TYCHO BRAHE (Skåne, 14.Dez.1546 — Praga, 24.Out.1601)
Foi um astrónomo e alquimista dinamarquês que, apesar de ter sido o melhor astrónomo experimental antes do surgimento do telescópio e, com as suas cuidadosas observações, ter sido fundamental para a formulação das leis de Képler, não é muito referido.
O seu tio, que era muito rico por ter salvo a vida do rei Frederico II, queria fazer dele um bom “funcionário público” pelo que o mandou numa viagem de estudo pela Europa. Mas ele preferia a astronomia.
Tinha um temperamento irascível, era beberrão e glutão e adorava meter-se em disputas. Uma delas, causada por ter falhado a previsão astrológica da morte de Solimão, o Grande, terminou em duelo, tendo-lhe o seu adversário cortado o nariz, que ele substituiu por uma prótese de ouro, prata e cobre.
Mais tarde, já famoso, Frederico II ofereceu-lhe a ilha de Hven, em Oresund, e ajuda para a construção de um observatório.


Foi nessa ilha que Tycho construiu, a partir de 1576, o Uraniborg, “Castelo dos céus”, que tinha uma grande observatório à superfície e na cave um apetrechado laboratório para as suas experiências de alquimia.

  Plano do castelo e do Observatório de Uraniborg                                 Edifício Principal
                                                                                                  (Astronomiæ Instauratæ Mechanica 1598)

Foi um projecto caríssimo, pois estima-se que terá custado 1% do orçamento do Estado: em números actuais, qualquer coisa como 5 mil milhões de euros.
Contudo, como a força dos ventos fazia oscilar os aparelhos, Brahe decidiu mudar o observatório para um lugar mais adequado para fazer as observações, junto do Uraniborg. Foi assim que nasceu o Stjerneborg ("Castelo das estrelas"), um espaço, mais pequeno e aberto, destinado exclusivamente às observações astronómicas: os instrumentos foram colocados no sub-solo, cobertos por persianas de correr ou domos rotativos.

Aí procedeu a observações sistemáticas e rigorosas, noite após noite, entre 1576 e 1597, utilizando os instrumentos mais precisos que pode, para cumprir o seu grande objectivo a que se propusera aos 17 anos. Aqui mediu sistematicamente as várias posições e movimentos de 777 estrelas, tendo contando com a colaboração da sua irmã Sofia.
Aperfeiçoou os instrumentos já existentes e inventou outros totalmente novos. Construiu vários relógios (clepsidras, baseadas no escorrimento da água, ampulhetas de areia, velas graduadas) que utilizava simultaneamente para obter medições o mais precisas possível. Tinha um observador e um marcador de tempo a trabalharem juntos. Com o Quadrante e o Sextante, a precisão das observações passou de 10 minutos de grau para a ordem do minuto.

Ilustração a cores da imagem a preto e branco do Livro de Mechanica

Depois da morte de Frederico II, o seu herdeiro expulsou-o da ilha de Hven para a dar à sua amante.
Mas dada a sua fama, foi convidado pelo imperador Rodolfo II, passando a viver em Praga, em 1600, onde construiu um observatório e continuou as suas cuidadosas observações. Com os dados que foi recolhendo desenvolveu um modelo híbrido (ver mais à frente) mas porque não possuía os conhecimentos de matemática e física para o fundamentar, teve que contratar um assistente. A escolha recaiu em Kepler, que tinha um temperamento algo semelhante ao seu, pelo que as discussões nem sempre eram pacíficas. Pouco a pouco, dado o interesse mútuo, acabaram por conviver de modo aceitável, embora Brahe não lhe desse acesso aos seus dados. De qualquer modo esses dezoito meses foram muito úteis para Kepler.
Foi com base nos cálculos de Tycho que o papa Gregório XIII decretou, pela Bula Inter Gravissimas, que à quinta-feira, 4.Out.1582 se seguiria a sexta-feira, 15.Out., para compensar a diferença acumulada ao longo de séculos. Este calendário, o actual, foi sendo lentamente adoptado pelos diversos países. Recordo o meu espanto, quando, ainda jovem, li no meu missal que S.ta Teresa de Ávila morrera na noite de 4 para 15 de Outubro de 1582. Só depois soube que foi precisamente nessa noite que foram suprimidos os dez dias ao calendário. A festa de S.ta Teresa celebra-se a 15 de Outubro, pois os santos são comemorados não na data de nascimento, mas da sua morte.


Antes de morrer, teria dito a Kepler "Ne frustra vixisse videar!" (Não deixes que pareça que vivi em vão), pedindo-lhe que acabasse e publicasse as Tabelas Rodolfinas, o que veio a acontecer.

ACONTECIMENTOS MARCANTES
Quatro acontecimentos tiveram influência decisiva na sua vocação de astrónomo e na formulação do projecto da sua vida: melhorar a precisão das observações astronómicas.

1. Eclipse parcial do Sol (21.Ag.1560)
Aconteceu quando tinha 14 anos e impressionou-o de tal modo, especialmente porque tinha sido previsto, que decidiu ser astrónomo. Ficou tão apaixonado por esta ciência que começou logo a fazer os seus próprios estudos ajudado por alguns professores, tendo comprado um livro de Efemérides e vários outros livros de astronomia, incluindo o De sphaera mundi de Sacrobosco.

2. Conjugação de Júpiter e Saturno (17.Ag.1569)
Foi a sua primeira observação astronómica, o que lhe permitiu verificar que as previsões dadas pelas Tabelas Afonsinas erraram por um mês e as tabelas de Copérnico por vários dias. Estas falhas fizeram-lhe perceber a necessidade e a importância de dispor de observações astronómicas muito mais precisas. Para obter umas Tabelas melhores procedeu a observações exactas e sistemáticas das posições dos planetas por um longo período de mais de vinte anos.
Já antes verificara a confusão que havia entre os dados dos vários astrónomos, quando, aos 17 anos, escreveu: “Estudei todas as cartas das estrelas e dos planetas disponíveis e nenhuma delas coincide com as outras. Há tantas medidas e métodos como astrónomos e todos estão em desacordo. O que é necessário é um projecto a longo prazo com o objectivo de mapear os céus realizado num único local e por um período de muitos anos”. Repare-se bem neste programa: 1) projecto a longo prazo, 2) mapear o céu (em todas as direcções), 3) com observações feitas no mesmo local e 4) por um período de muitos anos.

3. Descoberta de uma Nova (estrela) (11.Nov.1572)
Nessa noite de Novembro, reparou numa estrela, na constelação da Cassiopeia, que não se lembrava de alguma vez, ter visto. Por isso lhe chamou Nova, hoje conhecida como Supernova, a SN 1572 (ver o remanescente que hoje existe, na imagem que abre este post). Era mais brilhante que Vénus, pelo que pode ser vista à luz do dia durante 18 meses. O fenómeno foi muito impressionante, pois a última ocorrência acontecera no ano 125 aC, tendo sido registada na História Natural de Plínio. A grande questão para Tycho era saber se a Nova estava na alta atmosfera, mais perto do que a Lua, isto é, no mundo sublunar, ou se estava para lá da Lua, o que, neste caso, poria em causa a doutrina aristotélica, segundo a qual na esfera celeste não podia acontecer qualquer mudança, pois era imutável.
Esta estrela era, pois, um bom teste para a teoria aristotélica:
- se fosse uma nova estrela fixa, ela não poderia ter qualquer paralaxe, pois, por definição, a estrela estaria “fixa na abóbada celeste";
- se fosse um fenómeno atmosférico teria uma paralaxe mensurável dada a sua proximidade da Terra.
Tycho, que acabara de construir um Sextante com um raio de 1,6 m, que permitia fazer medições em minutos de arco, demonstrou que a nova estrela não apresentava nenhuma mudança de posição, nem em altitude, nem em latitude ou longitude, isto é, não tinha nenhuma paralaxe observável e que, portanto, estava muito para além da esfera da Lua.

Em 1573, Brahe apresentou estes resultados e as suas conclusões no De Nova et Nullius Aevi Memoria Prius Visa Stella (Sobre a Nova e Previamente Nunca Vista Estrela): esta era o título do "livro inicial", ao qual se juntaram vários outros

4. Passagem do Cometa em 1577
Este fenómeno também impressionou o ainda muito jovem Kepler.

                            Cartaz sobre o Cometa                                                    Notas tomadas por Brahe

As observações de Tycho Brahe mostraram que o cometa se movia entre as esferas dos planetas, e, portanto, que o "céu" não era imutável, e as "esferas cristalinas", concebidas na tradição aristotélica, não podiam ser entidades físicas. É o que ele explica no Mundi Aetherei Recentioribus Phaenomenis (Sobre o Novo Fenómeno no Mundo Etéreo), que publicou, em 1588: um livro com ilustrações, dedicado não só aos fenómenos recentes mas também à descrição de novos aparelhos, bem como à apresentação do seu modelo (ver mais abaixo). No capítulo VIII do Liber secundus, refere-se a este cometa, destacando que o mais importante era saber a distância a que se encontrava o cometa e o único meio para a determinar era pelo método da paralaxe. Concluiu que o cometa tinha uma paralaxe menor do que a da Lua e, portanto, teria de estar para lá da esfera desta, muito perto da esfera de Vénus: “Descobri por cuidadosas observações e demonstrações do presente cometa que ele está localizado e caminha acima da Lua, nos céus. [...] Portanto, a opinião de Aristóteles é inteiramente falsa quando ele assevera que os cometas se localizam acima da Terra, no ar, e que não podem ser gerados nos céus, pois ele estabeleceu isso sobre a base do seu próprio bom pensamento e não por qualquer observação ou demonstração matemática”.

A = Terra; C = Sol.
Órbita da Lua: BDEF.
Órbita de Mercúrio: LKMN.
Órbita de Vénus: OPQR.
Órbita do Cometa: STVX.

A (super)nova de 1572, que era uma prova contra a teoria aristotélica da imutabilidade do mundo celeste, nada adiantava contra a existência no céu de esferas sólidas de cristal. Foi o cometa de 1577 que veio responder a esta questão. Afinal, o facto de um corpo localizado para lá da esfera da Lua poder percorrer o céu é prova certa de que não existem esferas de cristais, pois um corpo sólido não poderia ser perfurado por um cometa.
Como as Novas e os Cometas já eram conhecidos há muito tempo, Aristóteles desenvolvera sobre eles a seguinte teoria. A Terra, aquecida pelo Sol, originava fumaças secas ou nuvens húmidas.As fumaças procuravam o seu lugar natural e subiam acima das nuvens, que, ao condensarem-se e caírem, obrigavam as fumaças, que subiam, a vir para baixo; então inflamavam-se, originando estrelas cadentes ou meteoros. Mas quando as fumaças subiam muito alto, quase até o limite da camada celeste, inflamam-se muito mais e então formavam os cometas.
O que Brahe fez foi romper com esta interpretação aristotélica comum entre os cientistas, de que:
- os cometas não eram fenómenos celestes, mas terrestres e
- o mundo supra lunar era incorruptível.

MODELO HÍBRIDO
Os surgimentos da Nova de 1572 e do Cometa de 1577 e os debates que suscitaram, se não mostram nenhum avanço no próprio modelo copernicano, contribuíram para a evolução da chamada “crise dos modelos ptolomaicos". Esta crise surgira, sobretudo, com Copérnico, que, com a sua hipótese heliocêntrica, tentara resolver problemas, como a obtenção de tabelas mais precisas para os movimentos planetários, uma disposição mais sistematizada do mundo celeste e a resolução do problema da precessão dos equinócios. Copérnico não resolveu estes problemas e, na verdade, até criou outros, mas sobretudo abriu novos horizontes.
Em 1583, ele notou que, perto da oposição (relativamente ao Sol), Marte tinha um movimento retrógrado, o que provava que Marte poderia aproximar-se muito mais da Terra que o Sol, o que era verdade no sistema de Copérnico, mas não no de Ptolomeu. No entanto, Tycho ainda não estava totalmente convencido das ideias de Copérnico.
Por isso propôs o seu próprio modelo:
- a Terra mantém-se no centro;
- à sua volta gravitam apenas a Lua e o Sol;
- os restantes planetas orbitam em torno do Sol.
Trata-se, portanto, de um modelo "híbrido", que procurava conciliar os modelos ptolomaico e copernicano.

A paternidade deste modelo deu origem a uma acalorada disputa entre Tycho e Ursus Dithmarsus, já que a única diferença estava no facto de o modelo de Ursus considerar também a rotação da Terra, pelo que foi chamado de "sistema semi-ticónico".


Pode dizer-se que não tinha grande sentido esta disputa (como tantas outras sobre paternidade entre cientistas) pois, no fundo, eram versões de um antiquíssimo modelo: o de Heráclides de Ponto (390-333 a.C.), que já considerava a rotação da Terra, o que Brahe não incluía. De qualquer modo o que ficou foi o modelo ticónico.
Tycho, por um lado criticava os modelos ptolomaicos por:
- não corresponderem, de acordo com as suas observações, à disposição dos corpos celestes;
- terem necessidade de um grande número de epiciclos;
- usarem o equante, um ponto fictício que não corresponde nenhuma realidade física.
Por outro lado, mantinha a o fundamental da teoria aristotélica ao colocar o Sol a girar em torno da Terra.
As críticas ao modelo que Copérnico prendiam-se com o facto de a Terra em rotação não responder às velhas questões, do tipo “por que não nos foge a Terra quando saltamos”.
Além disso, havia as dificuldades teológicas, pois a Sagrada Escritura apontava mais para uma Terra estática do que com movimento de rotação e de translação. De qualquer modo, dado o seu sentido experimentalista, os argumentos físicos pesaram mais na rejeição do modelo de Copérnico, especialmente a falta de observação de qualquer paralaxe estelar.
Entretanto, o seu modelo híbrido não correspondia perfeitamente aos seus dados extremamente precisos e como ele não conseguia resolver o problema contratou Kepler.
O seu relacionamento não foi fácil, sobretudo porque Brahe se recusava a dar os resultados das suas observações a Kepler, que assim se sentia incapaz de avançar. Mas deixemos isso para a secção dedicada a Kepler, que só conseguiu o que queria depois da morte do seu “patrão”.
(continua por falta de espaço)

2 comentários:

Jairo Grossi disse...

Excelente compilação dos fatos relacionados às vidas destes gênios que mudaram a nossa visão de mundo.

Zé Dias disse...

Muito obrigada pelo seu comentário, Jairo Grossi!

O blog está já encerrado porque o seu autor (meu pai) faleceu, mas continuará aqui sempre presente para quem o quiser ler e reler!

Renata Silva