terça-feira, 5 de outubro de 2010

Descobrimentos e a "ciência" (3)

Sumário para situar o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Descobrimentos e a "ciência" (3)
9. Os Lusíadas: significado da epopeia
10. As "contra-epopeias"
11. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
12. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
13. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
14. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
15. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
16. Modelo de Einstein
17. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Maravilhas do Espaço: uma imagem por post


NOTA: Este post está intrinsecamente unido ao anterior, de que é a continuação.

Para terminar esta sucinta viagem pelo contributo dos Portugueses para o avanço a caminho de uma ciência moderna, vou referir mais três nomes, cuja principal intervenção aconteceu na «área da saúde», especialmente na farmacopeia.


GARCIA DE ORTA (Castelo de Vide, c.1500 — Goa, c.1568)
Este médico judeu português foi pioneiro no modo de abordar a Botânica, a Medicina Tropical e sobretudo a Farmacologia.
A sua vida teve um primeiro momento dedicado à formação clássica, como muitos do seu tempo. Num segundo momento foi confrontado com as “realidades novas” da Natureza que o apaixonaram pelo seu exotismo. E aqui surge o conflito, aliás próprio da sua época, entre o saber livresco e a observação directa. O seu livro mais conhecido tem um título que é uma espécie de resumo: Colóquios dos simples e drogas he cousas medicinais da Índia e assi dalgũas frutas achadas nella onde se tratam algũas cousas tocantes a medicina, pratica, e outras cousas boas pera saber.

 

Consiste num conjunto de 57 colóquios ou diálogos entre o próprio Garcia de Orta e um colega imaginário, Ruano, que, de visita à Índia, deseja saber mais sobre as drogas, especiarias e outros produtos naturais.
Está dividido em dois volumes: o I, com os Colóquios 1 a 25, e o II, com os restantes Colóquios. Além de estudar a origem, forma e propriedades terapêuticas de muitas “drogas orientais” (praticamente cada colóquio trata de uma), inclui também algumas observações clínicas, das quais se destaca a primeira descrição da cólera asiática, baseada na autópsia de um doente seu, morto por essa doença.
O livro é exemplar no modo de divulgar esse “novo saber” sobretudo por quatro aspectos.
Mostra o enorme esforço que Garcia de Orta dedicou para arrancar à flora indígena o segredo das suas propriedades farmacológicas.
Está escrito em português para permitir que todos pudessem ter acesso a ele e não só os eruditos: “Bem pudera eu compor este tratado em latim, como o tinha muytos annos antes composto, e fora a vossa senhoria mais aprasivel; pois o entendeis milhor que a materna linguoa, mas traladeo em português por ser mais geral, e porque sei que todos os que nestas indianas regiões habitam, sabendo a quem vai entitulado, folgaram de o leer” (“Dedicatória” a Martim Afonso de Sousa, I, p. 5)
Utiliza o “diálogo” como método expositivo, substituindo o tom monocórdico e maçudo dos livros eruditos pela vivacidade espontânea e atractiva de uma troca de argumentos entre representantes de duas “escolas” diferentes. Este diálogo / confronto é, de alguma maneira, uma dramatização do seu conflito interior, atrás referido, entre o “saber especulativo” (representado por Ruano) e o “saber positivo” (representado pelo próprio autor) e cuja resolução era a inevitável defesa do saber positivo, o que implicava afrontar, ainda não de forma decisiva mas já evidente, o “argumento de autoridade” dos antigos: “Não me ponhais medo com Dioscorides, nem Galeno; porque não ey de dizer senão a verdade e o que sey" (Colóquio 9, I, p.105).
Mas vai mais longe. Compreende e perdoa aos antigos devido à sua ignorância. O que não aceita é a atitude passiva e rotineira dos seus contemporâneos, como pode ver-se no Colóquio 46 sobre a pimenta (II, 241-250):
ORTA - Todos a huma voz se concertaram a nam dizer verdade, senão que Dioscorides he digno de perdam, porque escreveo per falsa emformaçam, e de longas terras, e o mar nam ser tam navegado como aguora he; e a esse imitou Plinio, e Galeno e Izidoro, e Avicena e todos os Arábios. E mais os que aguora escrevem, como António Musa e os Frades, tem maior culpa, pois não fazem mais que dizer todos de huma maneira, sem fazer deligencia em cousa tam sabida, como he a feiçam do arvore, e a fruta, e como madurece, e como se colhe.
RUANO - Como, todos esses que diseis, erraram?
ORTA - Si; se chamaes errar a dizer o que não he.
RUANO - Ora pois isso he asi, dizei o que vistes e ouvistes a pessoas dignas de fé; e per derradeiro eu virei com minhas duvidas.”
Depois de descrever a planta da pimenta, ouve uma resposta esperada.


RUANO - Pareceme que destruis a todos os escritores antiguos e modernos, por isso oulhai o que fazeis porque Dioscorides diz...”.
ORTA desmonta o que dizem os antigos com o argumento “e isto sei eu muyto bem sabido como testemunha de vista. E pella mesma maneira sei que ha arvore ...”.
Finalmente Ruano dá-se por vencido (corrido):
RUANO - Verdadeiramente que eu me acho corrido, como eu não via e os outros isto, que está tam craro.
ORTA - Pois vedes aqui ha mais pimenta verde em cachos nacida, neste páo do arvore, e vedes aqui estoutra, que está feita em achar, de vinagre e sal, que não he defrente de todas, se a provardes.
RUANO - Bem vejo tudo, e ja que estou corrido de ver que nunqua isto especularam bem os escritores novos, não me corraes mais; porque Laguna se queixa dos Portuguezes, porque lhe nam dizem estas cousas, e diz que não tem mais cuidado que de robar e esfolar os índios.
ORTA - Verdade he que os Portuguezes não sam muyto curiosos, nem bons escritores: sam mais amiguos de fazer, que de dizer. Trabalham de aquirir per suas licitas mercadorias, porém nam tratam mal os Índios, porque os índios da paz sam muyto favorecidos dos guovernadores.”

Resta-me denunciar a sanha persecutória da Inquisição que chegou ao extremo de exumar os seus ossos e de o condenar à fogueira já morto. (In)felizmente já não foi a tempo de poder sentir o cheirinho à carne humana assada que tão excitante seria para os inquisidores e os muitos mirones, amantes de chafurdar em espectáculos que degradam a dignidade de quem os vê, a eles assiste e os aprecia saborosamente.



AMATO LUSITANO (Castelo Branco, 1511 – Tessalónica, 1568, de peste)
O verdadeiro nome deste notável médico português judeu era João Rodrigues. Estudou medicina em Salamanca, viajou por toda a Europa, sendo impedido de voltar a Portugal pelo receio da Inquisição.
A ele se deve a primeira descrição das válvulas venosas. Também descobriu, enquanto assistente de Cananus, a circulação do sangue, através de inspecções da veia Ázigos, formada pela junção das veias lombar ascendente direita e a subcostal direita. Só na “nossa” wikipedia encontrei esta afirmação.
Do que me lembro, a circulação do sangue é geralmente atribuída a Harvey (1578, Folkestone - 1657, Roehampton). No entanto, talvez o seu principal contributo tenha sido destacar uma situação não totalmente ignorada durante séculos, mas observada apenas de forma parcial e incompleta por vários pesquisadores. Entre estes conta-se Miguel Servet  (1511-1553), que descreveu a circulação pulmonar.
Portanto, Harvey não só pôs em causa teorias erradas anteriores, mas, ao fazer a sua comprovação morfológica e experimental, criou uma nova era no pensamento humano, a era da Experimentação Clínica.

Mas voltemos a Amato Lusitano. A sua obra principal, Curationium Centuriae Septem, “As sete Centúrias das Curas Medicinais” (1556), conheceu 59 traduções em diferentes línguas tal foi a sua importância. Cada «Centúria» apresenta 100 (daí o seu nome) casos clínicos («Curas»), com a idade do doente e a descrição da doença e terapêutica utilizada. Este conjunto de dados permitem-nos, para lá dos aspectos meramente médicos, ter também uma visão completa da sociedade do séc. XVI.


CURA V
Da dor de cólica proveniente de lombrigas
A mulher de um canteiro, angustiada com dores de cólica, depois de ter usado muitos e vários remédios, bebeu o antídoto Mitridático, lançou pela boca uma lombriga, arredondada e comprida, ficando sã.
LIÇÃO
É certo que há cólicas originadas pelas lombrigas, pois destas provêm até outras afecções, como a bulimia, fome insaciável. O mesmo se conclui da história sagrada do livro 3º da Medicina da TRALLIANO.

Duas observações:
1) Mitridático: o Mitridato era uma mistura, muito usada desde a Antiguidade, composta por 54 ingredientes entre vinho e drogas, que supostamente prevenia e curava certas doenças, além de proteger contra envenenamentos. Plínio o Velho, na sua Naturalis Historiae, uma enciclopédia em 37 Livros, não acreditava muito nessa mistela tão complexa, sobretudo por causa da disparidade das proporções dos ingredientes: “Que deus teria determinado estas proporcões tão absurdas? Trata-se simplemente de uma ostentória demonstração de arte e de uma fanfarronice da ciência”. Aliás, Plínio mostrou-se também céptico relativamente a alguns dos mitos da sua época. Por exemplo: “O pássaro pégaso, com cabeça de cavalo, e o grifo com orelhas e o bico em forma de gancho (...) eu julgo serem fabulosos. (...) Também as sereias não merecem o nosso crédito (...) Quem acreditar neste género de coisa também não negará que as serpentes, ao lamberem as orelhas de Melampo, lhe deram o poder de entender a língua dos pássaros”.
De acordo com um mito, Melampo foi o primeiro mortal a quem foram concedidos poderes proféticos, foi o primeiro a praticar a medicina e a temperar o vinho com água. Também percebia a linguagem dos pássaros porque as suas orelhas foram lambidas por uma ninhada de serpentes agradecidas por ele as ter salvado das garras dos seus servidores e de ter enterrado os seus ascendentes. Além disso, Apolo ensinara-o a profetizar, observando as vísceras das vítimas sacrificadas (R. Graves, O Grande Livro dos Mitos Gregos, p. 279).
2) Alessandro Tralliano foi um médico do séc. VI, tão famoso que ficou conhecido simplesmente por Alessandro il medico. O seu sobrenome vem de Tralles, uma cidade da Líbia, onde terá nascido.

O nome Amato Lusitano foi adoptado logo no seu primeiro livro: Index Dioscoridis (1536).
É oportuno recordar que Dioscórides (40-90 dC), um greco-romano, é considerado o pai da Farmacopeia, com a sua obra De Materia Medica (Livro I bilingue (grego e latim) e Livros I e II, em grego), uma enciclopédia em cinco Volumes (pode ver a tradução em inglês), de consulta obrigatória em todo o mundo grego, latino e árabe do séc. II até à Idade Moderna. Como o original se perdeu foi sendo sucessivamente copiado durante mais de um milénio


Nesta verdadeira enciclopédia são descritas cerca de 600 plantas, 35 fármacos de origem animal e 90 de origem mineral, dos quais 100 ainda são considerados farmacologicamente. A sua influência foi enorme até ao século XVIII, tendo tido inúmeras traduções.


CRISTÓVÃO DA COSTA (Cabo Verde?, 1515 – Huelva. 1594)
Este cirurgião, médico e botânico judeu português foi, pela primeira vez, à Índia como soldado, tendo ficado prisioneiro. Depois voltou lá por força do seu desejo de encontrar “nas diferentes regiões e províncias homens sábios e curiosos dos quais pudessem aprender alguma coisa de novo e também para ver a diversidade das plantas que Deus criou para melhorar a saúde humana”, como explica na sua obra principal Tractado delas drogas y medicinas de las Indias Orientales (1578). A estrutura desta obra seguiu a dos Colóquios de Garcia de Orta copiando-a em grande parte, mas melhorando-a com um maior rigor e precisão sistemática na descrição das plantas. Além disso acrescentou 47 desenhos muito detalhados e forneceu novas e importantes informações sobre plantas das Índias ocidentais.


Texto original dos dois primeiros parágrafos da página 68:
Vsam delas hojas majadas en las Erisipolas y en los flemones y al redor de las heridas, para defender el humor, que no corra a elas y majadas com sal de Ormuz para resolver flemones, y com cenixa de Cambaya para deshacer las hinchazones flematicas y melancolicas.
Conseruan este Tamarindo com sal para durar mas: y salado le traen a Portugal, y a las tierras del Arabia, y a Persia, y a Turquia. Y haze(~)n del vn vinagre muy gracioso y no menos grata conserua com Açucar se haze del, maduro reziente, y sin sal.

Tradução
"Utilizam as folhas amassadas nas erisipelas e nos fleimões e (para pôr) em redor das feridas para impedir o humor de correr para elas; e amassadas com sal de Ormuz para curar os fleimões; e com cinza de Cambaia para desfazer os inchaços fleugmáticos e melancólicos.
Conservam este Tamarindo com sal para durar mais. E salgado o trazem para Portugal e para as terras da Arábia, para a Pérsia e para a Turquia. E fazem com ele um vinagre saboroso e (também) se faz com ele, maduro reziente (?), com açúcar e sem sal, uma conserva não menos agradável" .

Assim terminei a apresentação de alguns ilustres “cientistas” portugueses que deram um grande contributo não só na dimensão experiencial mas também na gnoseológica. Em tempos de mudança, não bastam descobertas e intuições, são também necessárias ferramentas e mecanismos intelectuais capazes de conceptualizem os dados experimentais e fazer a sua articulação.


1. Progressos na arte de marear
- invenção da caravela, dotada de grande mobilidade, com cerca de 15 metros de quilha e um porte médio de 150 toneladas, de casco alongado e resistente e com velas triangulares que permitiam navegar à bolina, isto é, deslocar-se em ziguezague, de forma a poder avançar com ventos desfavoráveis;


- descoberta dos ventos alísios, fundamental para a facilidade e a segurança das viagens no Atlântico;
- melhoria dos métodos de cálculo da latitude;
- aperfeiçoamento do astrolábio náutico e outros instrumentos indispensável a uma navegação mais segura, como a balestilha e o quadrante, utilizados para ler a altura dos astros e, consequentemente, para determinar as latitudes; o anel graduado e o instrumento de sombras, ambos destinados a medir com maior rigor a altura do sol; o nónio, que melhora a utilização do astrolábio;
- elaboração de roteiros minuciosos com as costas e seus acidentes, guias náuticos, livros de marinharia, regimentos, tábuas solares e outros.

2. Progressos na cartografia
- o mapa ou planisfério de Cantino (1502): a mais antiga carta conhecida onde aparece o Brasil e a Linha de Tordesilhas; é a primeira visão moderna do Mundo, pois foi executado imediatamente a seguir às grandes viagens dos Descobrimentos. Trata-se de uma cópia de uma carta portuguesa anónima existente na Casa da Guiné e da Mina. Supõe-se que o italiano Cantino terá subornado um cartógrafo para fazer esta cópia;

Planisfério de Cantino
- a carta atlântica de 1504 de Pedro Reinel: a primeira carta náutica conhecida com indicação de latitudes;
- o Atlas de Lopo Homem-Reinés ou Atlas de Miller, de 1519, onde surge o Brasil, mostrando indígenas, alguns explorando de pau-brasil.


3. Observação e descrição da natureza
- transformação radical da imagem que os europeus tinham do mundo, desmistificando muitas fábulas através de um saber fundamentado na “experiência”, isto é, na vivência das coisas, na “experiência” (“o que vi”) que não é ainda “experimentação”, provando:
     - a habitabilidade da zona “tórrida” (equatorial);
     - a comunicação entre os hemisférios Norte e Sul;
     - a ligação entre o Atlântico e o Índico;
     - a descoberta de um “Novo Mundo”, o continente americano;
     - a esfericidade da Terra, já defendida pelos Gregos, mas muito contestada na Idade Média;
- contributo para uma nova mentalidade científica, assente na observação e no espírito crítico, recusando o “argumento de autoridade” (dos antigos), embora sem conseguir alcançar uma atitude científica sistemática.

4. Uma única humanidade
Os Descobrimentos trouxeram uma nova visão do Mundo e da Natureza, à escala mundial, o conhecimento de novos povos e novas culturas e a demonstração da não existência de monstros humanos, o que significa que o género humano tem uma e a mesma natureza.

… com um desfecho tão lamentável
Se reparámos, os últimos três autores referidos eram judeus. E até foram perseguidos.
Este facto fez-me lembrar uma observação de D. S. Landers, em A Riqueza e a Pobreza das Nações, com um título muito sugestivo “Os cafres da Europa” (pp. 146-149), aliás de autoria do P.e António Vieira.
“Quando os Portugueses conquistaram o Atlântico sul, estavam na vanguarda da técnica de navegação. Um empenho em aprender com cientistas estrangeiros, muitos deles judeus, fizera que os conhecimentos adquiridos fossem directamente traduzidos em aplicações práticas; e, quando em 1492, os Espanhóis decidiram compelir os judeus a professar o cristianismo ou a abandonar o país, muitos encontraram refúgio em Portugal, nessa época mais complacente quanto aos seus sentimentos anti-judaicos. Mas, em 1497, pressões da igreja católica e de Espanha levaram a coroa portuguesa a abandonar essa tolerância. Cerca de 70 000 judeus forma forçados a um baptismo espúrio, embora válido como sacramento".

«Vi que em Lisboa se alcançaram
povo baixo e vilãos
contra os novos christãos
mais de quatro mil mataram
dos que ouvera nas mãos
os deles queimaram
mininos espedaçaram
fizeram grandes cruezas
grandes roubos e vilezas
em todos quantos acharam.»
(Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea)

"Em 1506, Lisboa viu o seu primeiro progrom que deixou um saldo de 2 000 “cristãos-novos” mortos. Desde então, a vida intelectual e científica de Portugal desceu a nível de intolerância, fanatismo e pureza de sangue. O declínio foi gradual. A Inquisição portuguesa só foi instalada na década de 1540 e o seu primeiro herege foi queimado em auto-de-fé três anos depois; mas só se tornou sombriamente implacável na década de 1580, depois da união das coroas portuguesa e espanhola na pessoa de Filipe II. Os criptojudeus, incluindo Abraão Zacuto e outros astrónomos, acharam entretanto que a vida em Portugal estava a ficar demasiado perigosa para justificar a saída do país em massa. Levaram dinheiro, experiência comercial, ligações, conhecimentos e – ainda mais importante – aquelas qualidades imensuráveis de curiosidade e inconformismo que constituem o fermento do pensamento” (o sublinhado é meu).
Depois, deixou de haver mais jovens portugueses a estudar no estrangeiro e a importação de livros foi reduzida por exigências do Santo Ofício.
As deficiências intelectuais portuguesas não tardaram a tornar-se proverbiais: “a mesquinhez e falta de curiosidade desta nossa nação portuguesa” (Diogo Couto; 1603); “o povo (português) é tão pouco curioso que nenhum homem sabe mais do que lhe é estritamente necessário” (Mary Breadley, visitante inglesa).
“Em 1600, mas mais ainda em 1700, Portugal tornaram-se um país atrasado e fraco”.

Camões já (pres)sentira este movimento irreversível de degradação:
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
De hũa austera, apagada e vil tristeza. (Os Lusíadas X,145)

Mas penso que deveria acrescentar-se à fuga forçada dos judeus e às malfeitorias da Inquisição um outro facto: o desastre de Alcácer Quibir (1578), que ceifou grande parte das nossas lideranças.
Batalha de AlcácerQuibir
Única representação conhecida da batalha (M. LEITÃO DE ANDRADE, "Miscellânea", 1629)

E depois veio a perda de independência (1580) e a catástrofe da Armada Invencível (1588) que acabou com o que restava dos nossos comandantes e organizadores.
E, de novo, foi o POVO, que, como em 1383, foi capaz de se ir organizando e de conseguir conquistar a independência... Mas o fulgor intelectual e científico, quase destruído, não voltou mais com a mesma força interior nem a mesma projecção exterior. É como se ainda andássemos à procura de um "daimon" interior que como povo temos, mas que deixámos adormecer e encobrir por outras "guerras" às vezes fratricidas.  
 
COMENTÁRIO FINAL
Quis finalizar com um balanço do que se fez mas também do que, de repente, deixou de se fazer. Recordar a subida ao céu e a descida aos infernos é um exercício muito oportuno para os tempos que atravessamos. A História continua a ser mestra da vida. E sobretudo ensina-nos que nem os píncaros da fama nos devem fazer perder a cabeça nem os tempos de desgraça nos devem atirar para o desânimo e a inacção. Um distanciamento crítico, mesmo no furacão dos acontecimentos, bons ou maus, podem trazer aquela dose de bom senso e de sabedoria de vida que nos ajude a continuar a ser os agentes de uma História que nunca está acabada, mas que sempre será feita de bons e maus momentos. A nossa força está em saber ser humildes perante as vitórias e corajosos perante os fracassos.
 
Que os cem anos da República e os quase mil anos de existência nos saibam dar a perspectiva histórica e a consciência da responsabilidade que é continuar a cumprir este país. AMEN.

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