sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Descobrimentos e "ciência" (1)

Sumário para situar o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Máquina do Mundo (Lusíadas, Canto X)
6. Descobrimentos e a "ciência" (1)
7. Descobrimentos e a "ciência" (2)
8. Os Lusíadas: significado da epopeia
9. As "contra-epopeias"
10. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
11. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
12. Medição das velocidades das galáxias (Efeito de Doppler)
13. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
14. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
15. Modelo de Einstein
16. Modelo de Friedmann-Lemaître.


Maravilhas do Espaço: uma imagem por post

Nesta imagem tirada no UV (ultravioleta) e nos RX, vêem-se buracos da coroa solar que produzem ventos solares a altas velocidades, átomos e electrões expelidos pelas "aberturas" do campo magnético.

Dois movimentos culturais em sentido contrário
O século XV e grande parte do XVI foram tempos áureos para Portugal, sobretudo devido à preparação e realização dos Descobrimentos, que trouxeram um grande desenvolvimento técnico e intelectual que acabou por se reflectir na própria mentalidade de toda a nação.
Foi também um tempo em que se cruzaram dois movimentos culturais: um, vindo de fora (a expansão do Renascimento); outro, partindo para fora (a divulgação das nossas descobertas).
Mas, enquanto os valores humanistas, que vinham chegando de Itália por diversas vias, progrediam lentamente e com atraso, pois implicavam grandes mudanças de mentalidade, o entusiasmo do povo e a enorme quantidade de elementos novos fornecidos pelos Descobrimentos espalharam-se rapidamente pela Europa.
A conjugação destes dois movimentos culturais potenciaram uma, poderíamos dizer, verdadeira ruptura, já que não só alterou radicalmente a relação do homem com a natureza, mas também potenciou uma visão nova da própria humanidade, com a sua diversidade de povos, promovendo uma nova concepção de pessoa e a consciência da própria individualidade e identidade, preparando uma “teorização antropocêntrica” do humanismo: “a Europa renasce” dizia André de Resende.


EXPANSÃO DO RENASCIMENTO
O humanismo do Renascimento
O movimento renascentista, iniciado nos finais do século XIII na Itália, passou por várias fases, todas elas marcadas com a preocupação de recuperar os ideais clássicos. O homem voltou a ser o centro do mundo, ao contrário da visão teocêntrica da Idade Média. O Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci procura sintetizar esse ideário humanista e clássico.


Este desenho está baseado na descrição das proporções relativas do corpo humano feita por M. Vitruvius  (séc. I aC) no seu Tratado De Architectura. Este arquitecto romano já havia tentado um desenho semelhante, mas sem grande sucesso. O desenho de Da Vinci consisite numa figura masculina nua em duas posições sobrepostas com os braços inscritos num círculo e num quadrado, ambos com a mesma área (quadratura do círculo). Muitas das proporções entre as várias partes do corpo satisfazem ao número áureo, φ, um número muito utilizado na arte, cujo valor aproximado é 1,618. Esta proporção encontra-se em toda a natureza, nas sementes da flor do girassol, nas conchas, na relação dos machos e fêmeas de uma colmeia e até em galáxias.


Por isso, este desenho é considerado como um símbolo da simetria básica do corpo humano e, por extensão, do Universo como um todo.

Renascimento em Portugal
É neste contexto cultural que se desenvolveram o humanismo, o individualismo e o espírito crítico e que surgiram múltiplas iniciativas e experiências que deram grande impulso ao panorama cultural. Nestas coisas não é fácil estabelecer uma data rigorosa. O Renascimento em Portugal estende-se por um período que vai de meados do séc. XV até finais do séc. XVII. Embora haja quem lhe atribua uma data precisa da sua chegada: 1527, quando Sá de Miranda introduziu o soneto (do ital. sonetto, "pequeno som") inventado por Petrarca.
De qualquer modo, estas ideias foram-se impondo lentamente em Portugal. Foi D. João III, rei entre 1521 e 1557, quem procurou dar um forte impulso à dimensão cultural, a que era muito devotado: estudou latim, grego e os clássicos, direito civil e também aprendeu noções básicas de matemática, astronomia e geografia. Mandou 50 bolseiros para universidades estrangeiras e convidou ilustres eruditos europeus a virem para Portugal. Entre as pessoas que mandou ao estrangeiro recolher informações, que depois o conduziram à reforma da Universidade (de Coimbra), destacam-se Damião de Góis, que esteve pouco tempo entre nós, e André de Resende.

ANDRÉ DE RESENDE (Évora,1500-1573)
Frade dominicano, teve uma vida multifacetada e viajou muito pela Europa, tornando-se amigo e seguidor de Erasmo.
Foi, provavelmente, o pioneiro da arqueologia em Portugal, dedicando-se ao estudo dos monumentos epigráficos da época romana. Contudo ainda não o movia o espírito científico, já que não hesitou em falsificar algumas inscrições.
A ele se deve uma das mais severas críticas ao atraso cultural português. Expôs as suas ideias, de um modo especial, na Oratio pro rostris ("Oração da Sapiência", proferida na abertura do ano lectivo da Universidade de/em Lisboa, em 1534):
"No entanto, estas nações (cultas da Europa) vencem-nos, não pelo engenho, não pela felicidade de um clima mais favorável, mas somente, e com vantagens, pelo cuidado e paciência dos estudos. Por isso, nelas, todos os dias aparecem homens doutos, que com os monumentos do seu engenho alcançam renome para si, e imortalidade para a pátria. Quando lemos os seus escritos, em boa verdade devíamos envergonhar-nos da nossa barbárie e do nosso desleixo”.

A promoção das letras e a utilização da língua portuguesa acabaram por criar um tipo social novo, ao permitir que o próprio plebeu se tornasse “educado”. Assim a  fonte do mérito e da “nobreza” passou a ser o “saber”, desvalorizando o tipo social antigo, cujo valor provinha de linhagem ilustre ou de feitos guerreiros notáveis,e não das "letras", às quais não atribuía importância.


O movimento renascentista, ao recuperar a mitologia e os ideais clássicos, tentou conciliá-los com a doutrina cristã. A aproximação das mundividências pagã e cristã terá começado com a tragédia Ecerinis (1315) de A. Mussato, considerado precursor do humanismo italiano.

André de Resende defendeu claramente a concórdia entre as culturas e cristã e profana:
- insistia na importância de saber grego e latim para ter acesso directo aos textos sagrados, literários e científicos;
- criticava a afirmação dos que dizem «Cristão sou, não ciceroniano, como se o ornato do estilo contendesse com a religião!»; a propósito da presença de uma lei eterna e imutável no coração humano identificava Deus com Júpiter Supremo: «Há, de facto, uma lei eterna, que, como Cícero diz no 2.º livro Das Leis, tem o poder de chamar à prática das boas acções, e afastar dos pecados. Poder este que não só é mais antigo que os povos e as cidades, mas coevo daquele Deus que protege e rege o Céu e as terras, pois que nasceu com a mente divina. Por isso, a lei verdadeira e principal, apta para mandar e proibir, é a recta razão de Júpiter. Ora, estes princípios de tal modo foram formulados pelo mais ilustre príncipe da filosofia latina, que em nada divergem dos preceitos da nossa religião.»

Camões seguiu outra via: os deuses pagãos apenas servem como mera ornamentação e valorização do dinamismo poético e para dar nome às constelações, como diz Tétis a Vasco da Gama (Os Lusíadas X, 82,2-8):
... porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

E repare-se nesta maravilhosa harmonização de José Anchieta (1534-1597), num poema anónimo, publicado em Coimbra, em 1563, De Gestis Mendi de Saa ("Sobre os feitos de Mendes de Sá"):
Quis memoret quali nomen celebretur honore
Christe, tuum? quem pulsa procul nigrantia regni
Agmina Tartarei; quam tristi caeca ululatu)
Antra nigrae sonuere domus? Tremuere pauore
Horrifico letale Chaos, Phlegetonque uoraces
Eructans flammas, Stygiaeque horrenda lacunae
Stagna, Acherontei fluctus, et Cerberus ingens
Latratu terrens Plutonia regna trifauci
Fleuerunt nigris informia monstra sub umbris
Anguicomi coetus, et saeui exterrita Ditis
Caeca tenebrosis immugiit aula cauernis;
Ingemuit monstrum infelix, fera Belua, luxit,
Lucifer ereptam saeuo sibi gutture praedam;
Squameus umbrosae Chaos in poenale Gehennae
A facie, Rex Christe, tua, collabitur Anguis. (vv. 1160-1174)
"Quem recordará com que honra se celebra o teu nome, ó Cristo? Como foram repelidos para longe os exércitos escuros do reino do Tártaro? Com que tristes gemidos soaram os antros da negra mansão? Tremeram de pavor horrífico o letal Caos e o Flegetonte que vomita chamas vorazes, e os pântanos horrendos da lagoa Estígia, as ondas do Aqueronte e o Cérbero imenso que aterra com o seu ladrar trifauce os reinos de Plutão. Choram sob as negras sombras os monstros informes, a companhia dos que têm a cabeleira de serpentes e, aterrado, o cego palácio do cruel Dite soltou um mugido em suas cavernas tenebrosas. Gemeu esse monstro infeliz, a Besta feroz, chorou Lúcifer, de ter-lhe sido arrebatada a presa às goelas cruéis. A serpente escamosa da sombria Gehena desliza para o Caos punitivo, fugindo da tua face, ó Cristo-Rei!" (Tradução portuguesa de A. Costa Ramalho).

As descobertas dos Descobrimentos
A exploração pelos portugueses dos mares e continentes, que acabou com “toda uma dogmática milenar” feita de medos, monstros e lendas fantasmagóricas sobre a existência e inabitabilidade de uma zona tórrida intransponível ou a incomunicabilidade dos vários oceanos, teve efeitos tais nas mentalidades de então que hoje dificilmente serão exagerados.

A síntese do contributo dos Portugueses está muito bem descrita por Pedro Nunes:
"Não há dúvidas que as navegações deste reino de cem anos a esta parte são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas conjecturas, do que as de nenhuma outra gente do mundo. Os Portugueses ousaram cometer o grande Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas. E perderam-lhe tanto o medo, que nem a grande quentura da zona torrada, nem o descompassado frio da extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos ameaçavam, os pode estorvar. Perdendo a Estrela do Norte e tornando-a a cobrar, descobrindo e passando o temeroso Cabo da Boa Esperança, o mar da Etiópia, da Arábia e da Pérsia, puderam chegar à Índia. (...) Estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram, indo a acertar, mas partiram os nossos mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria (...) Levaram cartas mui particularmente rumadas e não já as de que os antigos usavam (...) Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o mar, e haver aí antípodas, do que até os santos duvidaram, e que não há região que nem por quente nem por fria se deixe de habitar". (Como não tenho acesso ao original, encontrei duas fontes para esta mesma esta citação: o Tratado da Esfera e o Tratado em defensam da carta de marear) 
Mais simples e até mais incisiva é esta frase lapidar de Garcia de Orta: “Digo que se sabe mais em um dia agora pelos portugueses do que se sabia em cem anos pelos romanos”.


Apesar disso, ainda estamos numa fase de transição para um método propriamente cientista: não se pode falar de "método científico", como veremos no século XVII. Por isso aparecem expressões como "pré-ciência", "ciência empírica" ou "empirismo científico".
Convém, no entanto, recordar que esta mudança, este aspecto inovador, tem uma longa pré-história na qual desempenha um papel significativo a chamada "aritmetização do real", a aproximação da matemática à realidade.

Aritmetização da realidade
Em Portugal, a substituição da numeração latina pela numeração árabe começou por volta de 1330, mas demorou séculos a implantar-se nas mentalidades, como se vê nesta recomendação das Ordenações Afonsinas (de D. Afonso V, em meados do séc. XV) para que os funcionários «sejam sotis, e penetrativos em toda a moralidade, e sciencia assy Civel como Canonica, e em Aresmetica, que hé arte verdadeiramente demonstrativa, pela qual se conhecem muitas cousas: e ham de seer verdadeiros em suas palavras, e amar a verdade, e arredar-se da falsidade».

Como se sabe, na numeração árabe os algarismos não valem por si mas pela sua posição: 1 vale uma unidade, mas o mesmo 1, no número 10, já vale uma dezena (numeração posicional). Na numeração latina não é assim: os algarismos são "absolutos" e representados por letras: I (1), V (5), X (10), L (59), C (100), D (500) e M (1 000). Ou melhor, inicialmente eram representados por símbolos que foram evoluindo para letras:


Por exemplo, como todos sabem 6 representa-se por VI (V (5) + I(1)). "Fazer contas", nesta numeração, especialmente de multiplicar ou de dividir, é bastante complicado.

Depois da passagem para a numeração árabe, foram introduzidos vários tipos de fazer os cálculos. Um dos mais correntes era o método de gelosia, (gelosia significa hoje "grade de ripas" ou "persiana")que utilizava a seguinte tabela (taboa)


Para multiplicar 2749 por 836 procedia-se do seguinte modo:
- começava por se dispor os algarismos dos números a multiplicar na horizontal e na vertical;
- seleccionava-se a quadrícula correspondente a cada algarismo;
- construía-se um gráfico que associava as quadrículas de todos os algarismos:


O resultado final obtém-se somando os valores das colunas oblíquas, da direita para a esquerda, não esquecendo "os que vão". Por exemplo, a terceira diagonal soma 10 (2 + 2 + 2 + 2 + 2), mas vem 1 da segunda diagonal (7 + 5 + 4 = 16; portanto fica o 6 e "vai 1"). Assim temos, de acordo com a linha à esquerda (de cima para baixo) e a linha em baixo (da esquerda para a direita), 2 298 164.
Como pode verificar-se o resultado está correcto: 2749 x 836 = 2 298 164.

Importância da Matemática
O estudo da matemática tornou-se obrigatório e até D. João III se dedicou a ele não só para aprender, mas também para estimular a sua corte a fazê-lo. Nem todos concordavam com esta primazia da Matemática.
Frei Heitor Pinto (1525? -1584?), no seu livro Imagem da Vida Cristã, constituído por onze diálogos, dedica o VIII à justiça, o Diálogo sobre a Justiça, colocando em confronto as perspectivas tradicionais e a nova visão, através do diálogo entre um jurista e um matemático:


«— Não se pode negar, disse o jurista, ser a Matemática útil ao príncipe, como o são todas as mais ciências e artes liberais, as quais lhe dão grande lustro e resplendor. Mas o que lhe mais convém e é própria sua, e sumamente necessária é a ciência do Direito. Porque, como diz no prólogo da suas Instituições o imperador Justiniano, a imperatória magestade convém não somente aformosentada com armas, mas armada com leis, para que um tempo e outro, assim o da guerra como o da paz, possa ser direitamente governado. Para os nossos ganharem os grandes reinos da Índia e destruírem nela a gentilidade e secta mafomética lhe aproveitou muito o invencível ânimo, com que pelejaram, e o singular e pasmoso esforço, com que nas batalhas navais tingiram o mar, e o tornavam sanguinho, e nas da terra a semeavam de corpos mortos, regando as campos com o sangue da bárbara gente inimiga de Cristo. Mas para se isto sustentar foram as leis sumamente necessárias. Dizei-me, se não fossem as leis, por que os nossos se regem no mar e na terra, como poderiam eles sustentar a Índia, nem ainda achá-la e conquista-la?
— Mas senão fosse a Matemática, disse o matemático, como poderiam eles lá levar essas leis? Vós não vedes que é isso contra vós? Dizei-me: esse mar tão profundo e tempestuoso como se pudera navegar sem matemática? Como se puderam atravessar as duvidosas ondas das imensas águas, e fazer-se estrada real e directíssima por entre elas sem conhecimento do Norte, e das estrelas, e dos círculos celestes? A agulha e a carta de marear que cousa é senão mera matemática? Essas regiões tão separadas tão estranhas como fora possível descobrirem-se, se os nossos não foram instructos no conhecimento dos movimentos do céu, nos graus da altura, nos círculos e cursos dos planetas, na divisão dos climas, no mapa, no astrolábio, no quadrante, na propriedade e variedade dos ventos, nos eclipses, na arte de navegação, na Cosmografia e sítio do mundo, na quantidade da terra, na natureza dos elementos, e finalmente no conhecimento da esfera, o que tudo consiste na Matemática? Por onda consta o que trazeis contra mim e contra vós, e o que cuidais que é contra a Matemática é por ela, e o que alegais para seu descrédito alego eu para sua valia".




 Poema Jean e Paulo GARFUNKEL

Cruz de estrelas
apontando o sul
norteando a terra
talismã de luz no céu do planeta
punhal brilhante
rasgando a noite
da solidão brasileira

Quem me dera
simplesmente estar
e olhar as estrelas
sem pensar nas cruzes
ou nas bandeiras
quem me dera as luzes da via láctea
iluminassem as cabeças

e acendesse um sol em cada pessoa
que aquecesse o sonho
e secasse a mágoa
esta terra é boa
esse povo agita
não é à toa
que a gente voa
que a gente canta
e acredita.


NOTA: Por falta de espaço, este tema continua no post seguinte.
As fontes serão indicadas no final.

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