sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Avanços medievais

Sumário para situar o blogonauta

1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em debate
5. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
6. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
7. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
8. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
9. Modelo de Einstein
10. Modelo de Friedmann-Lemaître.


Teólogos, filósofos, poetas e astrónomos em caminho
A apresentação do modelo geocêntrico que fiz teve como objectivos: mostrar a complexidade que está por detrás deste modelo e chamar a atenção para o modo como a humanidade vai percebendo a realidade.
Deixámos a fase mística, pelo menos aparentemente: fizeram-se observações e procurou encontrar-se uma explicação “racional” cada vez mais aperfeiçoada. Estes avanços não são sempre lineares e muitas vezes as preocupações racionais vivem em promiscuidade com as míticas, até na mesma pessoa.

Conservação da cultura no tempo dos Bárbaros
Como resultado das migrações bárbaras e da queda do Império Romano do Ocidente, perdeu-se o acesso aos tratados científicos originais antigos (em grego), restando apenas versões resumidas, e nem sempre correctas, feitas pelos romanos. A única instituição que não se desintegrou foi a Igreja e a ela se deve o desenvolvimento intelectual apoiado na conservação de muitos documentos, sobretudo nos mosteiros e conventos, que se tornaram, também, centros de instrução para o clero e oficinas de cópia e de reprodução dos documentos clássicos.


Herança aristotélica
Da Antiguidade Clássica vinham as concepções da grande pleíade de filósofos gregos, que Rafael quis homenagera numa daa suas obras primas: "A Escola de Atenas".


Os nomes entre parêntesis são os das personalidades em que Rafael se inspirou para pintar o rosto dos filósofos gregos, o que transforma o quadro também numa homenagem às pessoas de seu tempo: 1. Zenão de Cítio ou Zenão de Eléia; 2. Epicuro; 3. Frederico II, duque de Mântua e Montferrat; 4. Anicius Manlius Severinus Boethius ou Anaximandro ou Empédocles; 5. Averroes; 6. Pitágoras; 7. Alcibíades ou Alexandre, o Grande; 8. Antístenes ou Xenofonte; 9. Hipátia (Francesco Maria della Rovere ou Margherita mulher ou amante de Rafael); 10. Ésquines ou Xenofonte; 11. Parménides; 12. Sócrates; 13. Heráclito (Miguel Ângelo); 14. Platão segurando o Timeu (Leonardo da Vinci); 15. Aristóteles segurando Ética a Nicómaco; 16. Diógenes de Sínope; 17. Plotino; 18. Euclides ou Arquimedes acompanhado de estudantes (Bramante); 19. Estrabão ou Zoroastro (Baldassare Castiglione ou Pietro Bembo); 20. Ptolomeu R. Apeles (Rafael); 21. Protogenes (Il Sodoma ou Pietro Perugino).

Os que maior influência exerceram sobre o pensamento da Idade Média foram Platão e Aristóteles, as figuras centrais deste "fresco".
Aluno de Platão, Aristóteles discordava de uma parte fundamental da doutrina do seu mestre. Para Platão existiam dois mundos: o que apreendemos pelos sentidos, o mundo concreto, que está em constante mudança; e um outro mundo, abstrato, o das ideias, imutável e independente do tempo e do espaço material, que nos está apenas acessível pelo intelecto. Para Aristóteles existe apenas um único mundo, aquele em que vivemos e que sentimos. Por isso, Rafael nos dá conta desta divergência pondo Aristóteles a apontar para a Terra e Platão a apontar para o céu.


Aristóteles desenvolveu o hilemorfismo, uma doutrina segundo a qual todos os corpos são compostos por matéria (hyle: ύλη) e forma (morphé: μορφή) e que teve uma profunda influência durante mais de mil anos.
Para ele, o Universo estava dividido em duas partes:
1) o mundo sublunar (abaixo da Lua) em que tudo era formado a partir dos quatro elementos - a terra, a água, o ar e o fogo -  e as suas qualidades - quente, seco, frio e úmido - que entravam em proporções diferentes na formação dos vários corpos; no seu lugar natural, os elementos não tinham peso: por exemplo, porque o ar não tinha peso, não podia exercer pressão (pressão atmosférica).

Água: Combinação de frio e humidade
Ar: Combinação de quente e humidade
Fogo: Combinação de quente e secura
Terra: Combinação de frio e secura.

2) acima da Lua (mundo supralunar ou celeste), os corpos eram formados por um outro elemento diferente, um quinto elemento, que, por ser o quinto, se chamava Qintessência.

Um dos aspectos que mais nos interessa é a suposição de Aristóteles de que o estado natural dos objectos sublunares é a inércia. Cada um destes elementos tinha o seu lugar natural no cosmos ordenado, em direcção ao qual tinha tendência para se encaminhar por meio de um movimento característico (movimento "natural") e onde ficava em repouso. O lugar natural do elemento terra, por ser mais pesado que os outros, deveria ser necessariamente o centro do universo.
Neste mundo sublunar imperam, pois, a inércia e dois tipos de movimentos:
- o “natural”, resultante do “peso” do corpo, que o leva a procurar o local que lhe compete: o seu local de repouso;
- o “violento”, que é o resultado de uma qualquer força que lhe seja aplicada e o perturbe: todo o movimento é rectilíneo, a menos que uma força violenta o afaste do seu caminho.
Acima da Lua, também há movimento, não rectilíneo, mas circular, que é o movimento natural da Quintessência. Por isso, o movimento circular era o mais perfeito, característica que se tornou quase um dogma: “O céu deve ser necessariamente esférico, pois a esfera, sendo gerada pela rotação do círculo, é, de todos os corpos, o mais perfeito” dizia  Aristóteles

Questões científico-teológicas
1.A Terra é ou não esférica?
Apesar de os gregos terem aceitado que a Terra era redonda, os Padres da Igreja e outros cristãos tinham opiniões diversificadas:
- Lactâncio (240-320), com outros, defendia uma Terra plana porque não poderia haver homens a andar com a cabeça para baixo ou a chuva a cair para cima (Lactâncio, Divinarum Institutionum, cap.23);
- o comerciante Cosmas Indicopleustes, baseando-se nas suas viagens pelo Mar Vermelho e o Oceano Índico, desenhou um mapa mundi com a Terra rectangular em cujos lados se erguiam enormes muros que suportavam o Firmamento.

 Mapa  Mundi de Cosmas (séc. VI)                                      Terra e Firmamento      

Ao apresentar o mundo plano e o céu em forma de uma caixa de tampa curva, como o tabernáculo, descrito por Deus a Moisés, Cosmas pretendia provar que os geógrafos pré-cristãos estavam errados ao assumirem que a Terra era esférica.


- S.to Agostinho (354-430) aceitava a esfericidade da Terra, mas opunha-se à ideia de que os homens pudessem viver do lado oposto, pois não teriam acesso ao cristianismo, já que os apóstolos nunca poderiam atravessar a zona tórrida.Ora a salvação era para todos, pois “a toda a Terra se propagou a sua voz e até aos confins do mundo as suas palavras” como dizia S. Paulo (Rom 10,12) citando o Salmo18,5.

- Para S.to Isidoro de Sevilha (560-636), a Terra era esférica e formada por três continentes.


Tem três características significativas:
- a Ásia está situada na parte superior porque o Sol nasce a Este e o Paraíso era geralmente representado como estando na Ásia;
- á Ásia tem o tamanho igual ao dos outros dois continentes;
- o mar Mediterrâneo, que separa os três contimentes (Ásia, Europa e África), é representado pela haste vertical do T, enquanto o Oceano circundante tem a forma de um O.
Este mapa serviu de modelo a quase todos os mapas medievais chamados, por isso, mapas T-O.


Um dos mais famosos é o mapa mundi do Beato de Liebana ((?-798), elaborado a partir de várias fontes, cuja finalidade não era cartografar o mundo, mas ilustrar a diáspora dos Apóstolos. É também um mapa “orientado” pois o Oriente aparece no lado superior

E já agora, por curiosidade, aqui ficam os dois mais antigos mapa mundi, feitos, no século VI, na Babilónia.



2.As confusões
De pouco valeu o bom senso de S. Tomás de Aquino (1225-1274): “Há diversos modos de conhecer, diversas ciências. Por exemplo, tanto o astrólogo como o físico podem concluir que a Terra é redonda. Mas enquanto o astrólogo o deduz por algo abstracto, a matemática, o físico o faz por algo concreto, a matéria. Daí que nada impeça que umas mesmas coisas entrem dentro do campo das matérias filosóficas sendo conhecidas pela simples razão natural e, ao mesmo tempo, dentro do campo de outra ciência cujo modo de conhecer é pela luz da revelação divina. De onde se deduz que a teologia que estuda a doutrina sagrada, por seu género, é distinta da teologia que figura como parte da filosofía.” (Summa Theologica Ia, q. 1, a. 1)

Ainda condicionado pelos textos bíblicos, verificou-se, nos séculos XIII e XIV, um grande debate se desenrolou entre geógrafos, astrólogos, filósofos, teólogos e poetas.

Esferas celestes
Dante (1256-1361) dedicou especial atenção a este tema.
No Il Convivio (O Banquete) estabelece uma analogia entre as esferas celestes e as ciências do seu tempo.


As sete esferas dos planetas são comparadas às sete ciências do trivium (Gramática, Dialéctica e Retórica) e do quadrivium (Aritmética, Música, Geometria e Astronomia), as "sete artes liberais" básicas do ensino universitário do tempo.
À oitava esfera, a do Firmamento, associava a Física e a Metafísica: a Física, porque aí existiam, segundo Ptolomeu, 1022 estrelas e porque tinha um pólo aparente e um movimento diurno; a Metafísica, porque nela se encontrava a Via Láctea e porque tinha um pólo oculto e um movimento muito lento de Ocidente para Oriente.
À nona esfera associava a Ciência Moral.
Finalmente, ao Empíreo (Céu Imóvel) associava a Teologia, a mais perfeita de todas as ciências. Ele era a residência dos anjos e bem-aventurados, incluindo o próprio Deus, um céu que não fazia parte do sistema aristotélico, mas que, segundo muitos Doutores da Igreja, foi um dos quatro “coevos” (as primeiras criações de Deus). Os outros três coevos teriam sido os Anjos, a Primeira Matéria e o Tempo. O Empíreo, incorruptível e imóvel, era de um grande resplendor, sem no entanto conter fogo. Entre o Firmamento e o Empíreo encontrava-se ainda o "Primeiro Móbil", a verdadeira máquina que fazia girar todos os céus inferiores.
Além de alterar o número das esferas aristotélico, Dante introduz dimensões sobrenaturais:
- o movimento das esferas é realizado pelas várias categorias de Anjos, não por uma acção física mas espiritual;
- a primeira categoria: Anjos (Lua), Arcanjos (Mercúrio) e Tronos (Vénus);
- a segunda categoria: Dominações (Sol), Virtudes (Marte) e Principados (Júpiter);
- a terceira categoria: Potestades (Saturno), Querubins (Firmamento) e Serafins (Primeiro Móbil).

Na Divina Comédia, Paraíso, repete o modelo das dez esferas. Às sete dos planetas ptolomaicos acrescenta a oitava, a das estrelas fixas, morada da Igreja triunfante, a nona, o "Primum Mobile" ("Primeira esfera a ser movida") e a décima, morada de Deus, rodeado por nove anéis de anjos..


Esta décima esfera está para além da existência física. É o Empíreo, no qual as almas de todos os crentes se distribuem como as pétalas de uma enorme rosa.


O seu nome deriva do latim  empyreus, "(feito) de fogo", do grego empuros (έμπυρος de εν + πυρ, "fogo") "ardente, que está em fogo".
Dante, aí chegado, fica cara-a-cara com o próprio Deus e é-lhe concedida a compreensão da natureza divina e da humana. Mas a sua visão está além da compreensão humana: Deus aparece como três círculos que representam o Pai, o Filho e o Espírito Santo com a essência de cada parte de Deus, mas cada um separado.


A alma de Dante, através do amor absoluto de Deus, experimenta uma unificação com todas as coisas e sente-se impelido pelo "amor que move o sol e as outras estrelas" (l'amor che move il sole e l'altre stelle). É este o último verso da Divina Comédia.

Dante aborda também outros temas científicos
No Inferno, colocado no centro da Terra, nota uma mudança na direcção da gravidade (Canto XXXIV, 76–120) e estranha a existência de vento, no círculo mais interior congelado, já que não há mudanças de temperatura (Canto XXXIII, 102–105). Alguns sugerem que a leitura do Inferno, pode ter influenciado algumas das ideias de Galileu sobre mecânica.
No Purgatório, há repetidas referências às implicações da esfericidade da Terra, como a visão de estrelas diferentes no hemisfério Sul ou as diferentes posições do Sol. Veja-se, por exemplo, esta passagem do Canto XXVII, 1-6:

Si come quando i  primi raggi vibra                               Como quando os primeiros raios vibra
là dove il suo fattor lo sangue sparse                             lá onde seu factor sangue esparziu,
cadendo Ibero sotto l'alta Libra,                                   caindo o Ibero por sob a alta Libra,

e l'onde in Gange da nona riarse,                                  e a nona ondas no Ganges quentes viu,
si stava il sole; onde 'l giorno sen giva,                           tal era o Sol; e o dia então se esquiva,
come l'angel di Dio lieto ci apparse                               quando o anjo de Deus ledo surgiu.

Nesta tradução de Graça Moura, o tradutor explica em nota o sentido destes versos: "O Sol estava na posição em que se encontra, quando envia os primeiros raios sobre Jerusalém (lá onde seu factor sangue esparziu), enquanto em Espanha, o Ebro (o Ibero ) se encontra sob a constelação da Balança (Libra), e na Índia, as águas do Ganges são reacesas, incendiadas pela nona; no horizonte do Purgatório, estava portanto a pôr-se (o dia então se esquiva). É pôr do Sol no Purgatório, alba em Jerusalém, meia-noite em Espanha e meio-dia na Índia".
Com um breve exemplo mostra que tanto a teoria como a experiência confirmam que o ângulo de incidência de um raio de luz é igual ao ângulo de reflexão (Canto XV, 16-21).
No Paraíso, discute a importância do método experimental em ciência, com um exemplo (Canto II, 94-105). Descreve o relógio (Canto XXIV, 13–18) e o Teorema de Tales sobre um triângulo inscrito num círculo (Canto XIII, 101–102).

Também Camões seguiu o modelo das dez esferas, ao pôr Tétis a explicar a Vasco da Gama a "Máquina do Mundo" (Os Lusíadas, Canto X, estâncias 75 a 91). Mas esta descrição merece um tratamento especial, que farei no próximo post, até porque, contrariamente à maioria dos meus colegas estudantes, eu sempre fui um fã incondicional de Os Lusíadas.

Movimento das Esferas
Este era um problema cuja abordagem, para os teólogos, se podia tornar perigosa. Havia várias questões.

Onde está o movimento circular uniforme?
Embora no tempo de Ptolomeu, este movimento parecesse adequado para explicar a realidade, à medida que os métodos e os instrumentos de observação astronómica ficavam mais refinadas, as posições observadas cada vez se se afastavam mais da realidade. Para explicar melhor os resultados observados, foi necessário introduzir outra excentricidade, o ponto equante, introduzindo sucessivos círculos: a Eclíptica, com centro na Terra (T); o Deferente, com centro em D; o Círculo regular, com centro em E (ponto equante); o epiciclo, com centro no Deferente. Outras soluções foram tentadas, como a multiplicação sucessiva de epiciclos.

Modelo Geocêntrico Complexo                            Epiciclos múltiplos

Mas nada dava conta do movimento exacto. Então se os planetas não tinham um movimento uniforme, como se moviam? Haveria outro tipo de movimento? Mas isso seria por em causa a perfeição do Universo.

Por que razão se movem os corpos celestes?
A resposta era inicialmente simples: Deus ou os seus Anjos. E até houve doutos investigadores que, com algumas revelações á mistura, conseguiram identificar o nome dos anjos que punham as esferas planetárias em movimento: “Cassaneo no seu Cathalogo, com autoridade de outros Authores, expoem os nomes dos sete Anjos, que presidem aos Planetas, pela fórma seguinte. Casiel ou Virtude de Deos,affirma reger a Saturno; Satiel, que se interpreta Justiça de Deos, a Jupiter; Samuel, ou Auxilio de Deos, a Venus; Michael, ou Caza de Deos, a Mercurio; Rafael, que he o mesmo que Medicina de Deos, ao Sol; Gabriel, que se interpreta Fortaleza de Deos, a Lua” (João Rodrigues Chaves, Historia Ecclesiastica, (1744)).
Mas se esta era uma excelente resposta teológica, não tinha nada de “científica”. Além disso, o movimento quintessencial levantava cada vez mais suspeitas, porque nunca fora observado na Terra.
Por outro lado, se não eram os Anjos que moviam os corpos celestes, qual era a origem do seu movimento?

Esferas celestes cristalinas

Estas esferas onde se moviam os corpos celestes colocavam também alguns problemas.
Não podiam mover-se no vazio, pois "a natureza tem horror ao vazio" (ver a seguir Movimento Violento).
Sob influência das concepções pitagóricas, as esferas, ao roçarem umas nas outras teriam de produzir algum som ou alguma música. O problema é que ninguém ouvia nada. Para isso foram encontradas duas respostas. Não ouvimos porque nascemos no meio desse som e o cérebro já se habituou a ignorá-lo tal como as pessoas que vivem junto de um ribeiro não sentem o som das águas a correr. Eu vivei junto de um central eléctrica, cujas turbinas faziam um ruído que eu já não ouvia, mas por causa do qual alguns dos amigos que me visitavam mal conseguiam dormir. A outra foi dada pelo matemáticoportuguês André de Avelar (1546-1623?): como não havia ar para transmitir o som, “com muita razão, não se admite nos céus uma tal música nem som".
A outra dificuldade provinha do facto de haver vários epiciclos, alguns sobrepondo-se a outros. Mas era impossível essa intercessão pois a Quintessência de que eram feitas as esferas era impermeável, imutável e indestrutível.


Estrelas fixas
Todas as observações apontavam para que estivessem muito afastadas. Assim sendo, as velocidades em torno da Terra (que durava 24 horas) deviam atingir valores extremamente elevados. Claro que, para Deus, nada é impossível. Mas para a ciência há limites difíceis de explicar e aceitar.

Movimento violento
Convém recordar a lei da inércia aristotélica que se baseava no princípio do repouso: nada se move a menos que seja empurrado (movimento violento) ou se dirija para o seu lugar natural (movimento natural).
Vejamos o que acontece a um projéctil lançado por uma catapulta. Primeiro: não se move de modo natural. Segundo: é empurrado, mas apenas enquanto está em contacto com a catapulta (movimento violento). Isto é, ao ser lançado, deixa de ser empurrado e então termina o seu movimento violento a que estava sujeito. Só lhe resta o movimento natural, que o leva a cair, à saída da catapulta, para ficar em repouso. Ora não é isto que acontece. 


A resposta dos aristotélicos era algo rebuscada e pouco convincente. O ar à frente do projéctil era perturbado e então voltava para trás do projéctil para preencher o vazio criado pela sua passagem, porque “a natureza tem horror ao vazio” (Natura abhhorret vacuum). Aristóteles (384-322 a.C.) justificava esta afirmação com o “princípio da não contradição”: admitir a existência do vazio na natureza era ir contra o princípio da não contradição, que afirma que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ora um espaço vazio teria de estar privado de coisas, ou seja, no limite, seria o nada. Mas o nada não existe. Portanto também não pode existir o vazio.
Repare-se na explicação para uma garrafa cheia de água se partir ao congelar: a água, ao congelar, contrai-se (o que não é verdade, embora seja um caso excepcional: geralmente os líquidos, ao arrefecerem, contraem-se) e portanto deixa um espaço vazio. Devido ao “horror ao vazio”, a garrafa estilhaça-se!
Convém aqui fazer mais um parêntesis para recordar que havia quem defendesse a existência do vazio:
- alguns com o argumento simplista de que se não houvesse vazio os corpos não se poderiam deslocar… pois não tinham por onde passar (!?);
- mas sobretudo deve dar-se destaque a Leucipo (500-420 aC?) e sobretudo a Demócrito (460-370 aC) que propuseram uma teoria da matéria (o atomismo), segundo a qual a natureza era basicamente constituída por átomos e vazio. Esta ideia foi retomada há pouco mais de dois séculos e está na base da teoria atómica, embora com características diferentes, exigidas pelas novas descobertas.

Mas voltando ao movimento violento: neste terreno, os teólogos sentiam-se mais “livres”.
O filosófico e padre secular francês Jean Buridan (1300-1358) foi um dos mais famosos e influentes filósofos da Idade Média, apesar de ser muito pouco conhecido. Um dos seus contributos mais significativos foi a teoria do Ímpeto, que explicava o movimento de projécteis e objectos em queda livre, abrindo o caminho para a dinâmica de Galileu e para o princípio da Inércia de Newton. Portanto, tal como o movimento natural, o violento é também inerente, ao próprio corpo que se move. Depois de o ímpeto ser transmitido por uma força violenta ao projéctil, este como que o incorpora e, portanto, já não precisa de continuar a ser empurrado para se deslocar e seguir, como sabemos agora, uma trajectória balística. 


 Além disso, Buridan teve a incrível audácia, para um padre, de afirmar que “os movimentos dos céus estão submetidos às mesmas leis dos movimentos das coisas cá de baixo: a causa que mantém as revoluções das esferas celestes é a mesma que mantém a rotação do rebolo do ferreiro. Há uma Mecânica única pela qual se regem todas as coisas criadas, a esfera do Sol e o pião que o menino põe em rotação”. Segundo o historiador Pierre Duhem, “jamais houve, talvez, no domínio da ciência física, revolução tão profunda, tão fecunda quanto esta”.


Outros contributos para o “assalto final” a Aristóteles


Afonso X, o Sábio (1221-1284), avô do nosso rei D. Dinis, desenvolveu não só grandes reformas políticas mas também uma significativa actividade literária e científica. Criou a “Escola de Tradutores de Toledo” (Scriptorium), formada por peritos em línguas hebraica, árabe e latina, que resgataram muitos textos de la Antiguidade e traduziram documentos árabes e hebreus para latim e castelhano, estimulando o trabalho científico. São de destacar as Tábuas Afonsinas, um libro de tábelas astronómicas que continham as posições exactas dos corpos celestes em Toledo bem como o seu movimento, desde 1.Jan.1252, ano da sua coroação. Estas Tábuas foram utilizadas em toda a Europa até ao Renascimento. 


 Ficou famosa a sua observação sobre o complicado sistema ptolomaico: “Se o Senhor Todo Poderoso me tivesse consultado antes da Criação, ter-Lhe-ia recomendado algo mais simples”.

O dominicano S.to Alberto Magno (1193-1280), o Doutor Universal, teve um papel essencial na introdução da ciência grega e árabe nas universidades medievais, mas nunca hesitou em duvidar de Aristóteles. Numa de suas frases famosas, afirmou que “a ciência não consiste em ratificar o que outros disseram, mas em buscar as causas dos fenómenos”.

O franciscano Robert Grosseteste (1168-1253), bispo de Lincoln, considerado o fundador do pensamento científico em Oxford, tinha grande interesse pelo mundo natural e escreveu textos sobre temas como som, astronomia, geometria e óptica. Afirmava que uma teoria devia ser verificada pela experimentação, testando as suas consequências.


 O franciscano Roger Bacon (1214-1294), o Doutor Admirável, aluno do anterior, introduziu a observação da natureza e a experimentação como fundamentos do conhecimento natural. Propagou o conceito de "leis da natureza" e contribuiu com estudos para áreas como a mecânica, a geografia e principalmente a óptica. Os seus avanços em Óptica possibilitaram a invenção dos óculos e tornaram-se fundamentais para a invenção do telescópio e do microscópio. 


O franciscano Guilherme de Ockham (1285-1350), o Doutor Invencível, uma das vítimas da peste negra, foi o criador da chamada “Navalha de Ockam”: se há várias explicações igualmente válidas para explicar um fenómeno, então devemos escolher a mais simples: entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (as entidades não devem ser multiplicadas além do necessário).  

Manuscrito de 1341 com a inscrição frater Occham iste

Esta regra veio a ser um elemento estruturante do método científico
Um momento dramático da sua vida ocorreu quando chegou à conclusão de que o papa João XXII defendia uma heresia acerca da pobreza evangélica. A partir daqui redigiu vários ensaios sobre a infalibilidade papal, defendendo a tese de que a autoridade do líder é limitada pelo direito natural e pela liberdade dos súbditos. Apoiava-se em fundamentos bíblicos, acabando por chegar à afirmação categórica de que “um cristão não contraria os ensinamentos evangélicos quando se coloca ao lado do poder temporal em disputa com o poder papal”.

Nicolau Oresme (1325-1382) utilizou o argumento da simplicidade (navalha de Ockham) contra os argumentos de Aristóteles e em defesa da teoria de que é a Terra que se move e não os corpos celestes. Considerou que “a passagem bíblica que fala do movimento do Sol está em conformidade com a linguagem popular, pelo que não deve ser tomada à letra”. Contudo, não considerou estes dois argumentos conclusivos, pelo que “eu próprio mantenho que são os céus a mover-se e não a Terra"
Foi o descobridor da curvatura da luz através da refracção atmosférica, embora esta descoberta tenha sido atribuída a Robert Hooke. Também estudou os movimentos uniforme e uniformemente variado, deduziu o teorema da velocidade média e a lei da queda dos corpos, que é mais geralmente atribuída a Galileu.
Foi o primeiro a usar um gráfico, com dois eixos perpendiculares, um indicando o tempo e o outro a velocidade de um móvel. Chamou a esses eixos as coordenadas latitude e longitude, um sistema que pode ser considerado precursor da actual representação gráfica das funções.

O seu nome foi dado a uma cratera do lado invisível da Lua, que fica a sudeste do Mare Ingenii


Nicolau de Cusa (1401-1464) foi um cardeal da Igreja, filósofo do Renascimento e autor de inúmeras obras, sendo a principal Da Douta Ignorância. Identificado como anti-aristotélico e anti-escolástico, introduziu a noção de coincidentia oppositorum ("coincidência de opostos", que é o próprio Deus) para superar todas as contradições da realidade.
Foi um dos primeiros filósofos a questionar o modelo geocêntrico do mundo. As suas obras foram lidas por Copernico, Galileu, G. Bruno e por Kepler, que, logo a abrir o seu primeiro trabalho publicado, o classificou de "divinamente inspirado". Afirmou que o círculo perfeito não podia existir, abrindo caminho às leis de Kepler. Ao negar a finitude do Universo e a centralidade da Terra influenciou G. Bruno, que defendia que o Universo era infinito e povoado por uma infinidade de estrelas como o Sol com outros planetas como a Terra contendo igualmente vida inteligente. Os escritos de N. Cusa foram essenciais para a descoberta do cálculo diferencial por Leibniz e para os trabalhos do matemático Cantor sobre os conjuntos infinitos.Contudo não apresentou nenhum modelo, ficando-se pelas suas intuições e na metafísica.
Foi o primeiro a usar lentes para corrigir a miopia.

E para terminar em beleza aí vai esta iluminura de um dos seus livros.


Fontes


Google, geralmente identificados
Charles VAN D0REN, Breve História do Saber, Caderno, Lisboa 2007.
Luís Miguel BERNARDO, Teorias Cosmológicas Antigas
Simon SANG, Big Bang, Gradiva, Lisboa 2010.
Conhecimentos pessoais que fui acumulando ao longo de décadas e cuja paternidade já não sei indicar.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

ADENDA

O post que coloquei ontem à noite ficou sem a parte inicial do texto. Não sei qual a razão. Por isso aqui vai uma "segunda via" do que falta.

Ponto da situação
Há dois ou três posts atrás desenhei o esquema global que me propunha seguir. Acontece que vou tão "devagarzinho" e utilizando tantos atalhos que o leitor facilmente se poderá perder e não saber nem onde nem para onde vai.


Por isso resolvi iniciar cada post com uma espécie de índice, que vá indicando o ponto onde estamos.
Neste primeiro "capítulo", a ideia é chegar à primeira formulação do modelo de Big Bang e dar conta dos vários avanços e dificuldades. A itálico o que já foi escrito; a negrito o tema de hoje:
1. Big Bang (Sumário)
2. História milenar (Mitos da criação e começo da ciência com os gregos)
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
5. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
6. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
7. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
8. Modelo de Einstein
9. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Contemplando o céu estrelado
Antigamente só dispúnhamos dos olhos para ver o céu! Assim foram sendo feitas muitas observações, mas faltava "uma lei" que sistematizasse esses dados. Houve algumas tentativas, antes dos gregos, para explicar o Universo, como, por exemplo, esta proposta suméria.


Mais uma vez foram os Gregos que tentaram respostas "racionais".

Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio


Ponto da situação
Há dois ou três posts atrás desenhei o esquema global que me propunha seguir. Acontece que vou tão "devagarzinho" e utilizando tantos atalhos que o leitor facilmente se poderá perder e não saber nem onde nem para onde vai.


Por isso resolvi iniciar cada post com uma espécie de índice, que vá indicando o ponto onde estamos.
Neste primeiro "capítulo", a ideia é chegar à primeira formulação do modelo de Big Bang e dar conta dos vários avanços e dificuldades. A vermelho o que já foi escrito; a negrito o tema de hoje:
1. Big Bang: (Sumário)
2. História milenar: Mitos da criação e começo da ciência com os gregos
3. Modelo geocêntrico e o aperfeiçoamento do Telescópio
4. Os avanços a partir de Copérnico (modelo geocêntico) e de Galileu (aperfeiçoamento da "medição")
5. Medição das distâncias astronómicas (Cefeidas)
6. Lei de Hubble, que apresenta provas experimentais da expansão do Universo
7. Modelos teóricos, que partem todos da Teoria da Relatividade
8. Modelo de Einstein
9. Modelo de Friedmann-Lemaître.

Contemplação do céu estrelado
Antigamente só dispúnhamos dos olhos para ver o céu! Assim foram sendo feitas muitas observações, mas faltava "uma lei" que sistematizasse esses dados.  Houve algumas tentativas, antes dos gregos, para explicar o Universo, como, por exemplo, esta proposta suméria.



Universo mesopotâmico

Mais uma vez foram os Gregos que tentaram respostas "racionais".
Empédocles (495-435 aC) procurou explicar a sucessão regular do dia e da noite com o "modelo de duas esferas" concêntricas: a interior era luminosa numa metade e transparente na outra, dando uma volta cada 24 horas; a exterior continha o firmamento, que era visível durante a noite, rodando uma vez cada 365 dias.



Modelo de duas esferas de Empédocles

Os gregos verificaram que havia uns corpos celestes que estavam mais ou  menos fixos - as "estrelas fixas" - e outros que mudavam de posição - os planetas (πλανήτης, "errante, vagabundo").

Modelo Pirocêntrico (tem o fogo (piro-) no centro)
Para alguns, o primeiro a propor um modelo de Universo foi Filolau de Crotona, em meados do século V aC. Para outros, ele apenas teria sido o divulgador da doutrina pitagórica e do seu modelo de Universo.
Os Pitagóricos chamavam-se a si mesmos mathematikoi (Μαθηματικός, "os que estudam tudo; desejosos de aprender", que vem do verbo μανθάνω, "aprender, estudar" ). Esta palavra vem da raiz indo-europeia, men- que indica  "movimentos do espírito", bem como mênis (μήνις), "ressentimento, ira", que é a primeira palavra da Ilíada  e de algum modo justifica toda a acção:  
          Μήνιν άειδε, θεά, Πηληιάδεω Άχιλήος (Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida).

Os Pitagóricos eram mais uma "irmandade", que confundia misticismo e "ciência", do que uma escola.




Para eles, a realidade era "matemática": os números são a essência da realidade. A partir deste pressuposto, era natural que o círculo fosse a forma mais perfeita.
O seu modelo do Universo não se trata de um modelo geocêntrico, mas pirocêntrico. A Terra não foi colocada no centro por razões de ordem moral e religiosa, já que, para eles, a Terra e tudo o que ela contém, incluindo a humanidade, era considerado imperfeito. Assim sendo, nunca poderia ocupar o centro, que é o local mais importante no Universo. Esse lugar especial estava reservado ao "Fogo Central", a "casa de Zeus", ou “motor” do Universo. Todos os astros giram em torno desse centro em órbitas circulares (símbolo da perfeição). As órbitas circulares mantiveram-se durante dois milénios. O modelo contava ainda com uma Anti-Terra (Antichthon de chthon (χθών), "terra", que aparece na nossa palavra autóctone) não só para que o número de astros fosse dez mas também para evitar que a Terra visse o Fogo Central. Para isso, a Anti-Terra girava de tal modo que ficava sempre entre a Terra e o Fogo Central.





É curioso que foram os números que de algum modo vieram pôr em causa os fundamentos dos Pitagóricos. Coisa aparentemente mais simples não poderia ser, mas pôs em causa essa ubiquidade numérica: a raiz quadrada de dois. Geometricamente é evidente que a raiz quadrada de dois existe.




Basta aplicar o "teorema de Pitágoras" (que ele teria herdado dos babilónicos!?) ao triângulo acima. A hipotenusa é exactamente "a raiz quadrada de dois". Mas quanto vale numericamente? Não é possível saber, mesmo hoje, porque se trata de um "número irracional", isto é, não se pode obter pela divisão de dois números inteiros. Podemos calculá-lo com vários milhões de decimais. Aqui ficam os primeiros 75


√ 2 ≈ 1,4142135623 7309504880 1688724209 6980785696 7187537694 8073176679 7379907324 78462...


Terá sido Hipaso de Metaponto (que teria nascido no ano 500 aC), um seguidor de Pitágoras (de 570-497 aC), que teria demonstrado que se tratava de um número irracional. No entanto, Pitágoras considerava que a raiz de 2 "maculava" a perfeição dos números e, portanto, não poderia existir. A lenda diz que, não tendo conseguido refutar os argumentos de Hipaso com a lógica, Pitágoras condenou-o ao afogamento. Terá mesmo de ser uma lenda, pois quando Pitágoras morreu, Hipaso teria 3 anos!


Modelo(s) Geocêntrico(s)
Dois discípulos de Platão propuseram dois modelos diferentes.
O modelo de Aristóteles (384-322 aC) mistura os elementos, que formam toda a matéria, os planetas e as estrelas fixas: no centro a Terra é formada por terra com uma camada exterior de água - os mares - sobre a qual havia uma camada de ar - a atmosfera - e outra de fogo que termina na esfera da Lua, à qual se seguem as esferas do Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno (os únicos cinco planetas conhecidos até ao século XIX) e finalmente a esfera das estrelas fixas. Aristóteles aproveitou a concepção geométrica pitagórica de um modelo esférico, simples e harmonioso, mas retirou as características mitológicas, introduzindo uma alteração substancial: colocou a Terra no centro, dando assim origem ao geocentrismo.



Modelo geocêntrico de Aristóteles

Aristóteles não concordava com o seu mestre Platão. Enquanto este insistia no fundamento matemático da natureza, Aristóteles defendia que o mundo seria melhor compreendido através da sua observação. S. Tomás de Aquino sintetiza bem esta ideia numa célebre frase que decorei nos meus tempos de Seminário: Nihil est in intellectu quod non fuerit prius in sensu: "Nada existe no intelecto se antes não tiver estado nos sentidos". Não sei se teve alguma influência, mas o poeta grego Alcmane, do séc. VII AC, tem uma afirmação que, sendo mais lata, tem subjacente uma ideia semelhante: Пεῖρά τοι μαθήσιος ἀρχά: "A experiência (experimentação!?) é a base do conhecimento".

Mas o método científico de Aristóteles não deve ser entendido como hoje. Ele olhava o mundo "à distância" e tirava as suas conclusões. Não sujava as mãos na experiência. O caso mais paradigmático e anedótico era a sua afirmação de que homens e mulheres tinham um número diferente de dentes! Ora, bastava tê-los contado para verificar que assim não era!


O método de Heráclides (388-315 aC) surge para responder às dificuldades do sistema geocêntrico em explicar os movimentos dos planetas com relação às estrelas fixas. Trata-se de um sistema misto em que a Terra "continuava" no centro do Universo, mas Mercúrio e Vénus orbitavam em torno do Sol, até porque eram sempre vistos muito próximos dele. Defendeu também a ideia de que a Terra rodava sobre si própria demorando um dia, o que explicava o movimento diário de todos os astros. Já Hicetas (400-335 aC) propusera que a Terra girava em torno de um eixo.


Este foi o primeiro de muitos ajustamento a que o modelo geocêntrico foi sujeito para melhor responder às observações que iam sendo feitas.

Mas o modelo mais famoso deve-se a Ptolomeu (120-180 dC). É geocêntrico, com órbitas circulares e com uma esfera exterior com as estrelas fixas.




O movimento dos planetas era explicado de um modo algo complexo: os epiciclos. O que roda em torno da Terra, não é o planeta, mas um ponto chamado Deferente. E é em torno desse Deferente que o planeta descreve a sua órbita, o Epiciclo.



            Esquema                                         e                              Epiciclo


Mas Ptolomeu resolveu aperfeiçoar (complicar) ainda mais o seu modelo, colocando a Terra numa posição um pouco afastada do Centro do Deferente (portanto o Deferente é um círculo excêntrico em relação à Terra). E, para explicar o movimento não uniforme dos planetas, introduziu um novo ponto, o Equante, que fica simétrico à Terra em relação ao Centro do Deferente, e em relação ao qual o centro do epiciclo se move a uma velocidade constante.




Possivelmente Ptolomeu foi buscar a ideia dos epiciclos ao matemático e astrónomo grego Apolónio de Pérgamo (262 a 190 aC), chamado o Grande Geómetra, que melhorar o modelo de Eudoxo de Cnido (390 a 337 aC).
Recordei tudo isto, para dar conta da complexidade do modelo, que conhecemos como muito simples, e saudar todo o trabalho de várias gerações para obterem um modelo cada vez mais capaz de responder ao que realmente se passava na natureza.

E já agora, como mera curiosidade apresento aqui um desenho de modelo ptolomaico feito pelo cosmógrafo e cartógrafo português Bartolomeu Velho (?-1568), publicado no seu livro Cosmographia (França, 1568). A sua novidade é que do lado esquerdo indica as distâncias ao centro da Terra e do lado direito a duração, em anos, da translação dos vários "planetas".





Trajectória do centro de massa do Sistema Solar
Só mais uma complicação final.
Rigorosamente o Sol não está no centro (ou foco) mas ele próprio orbita em torno do centro de massa (baricentro) do Sistema Solar. Num post anterior já expliquei que, quando um corpo gira em torno de outro, nenhum está totalmente fixo. Ambas giram em torno do centro de massa, ponto que está tanto mais próximo do centro do maior quanto maior for a diferença das suas massas.
Pois também o Sol, apesar de conter a quase totalidade da massa do Sistema Solar (99,86% ), orbita, como todos os planetas, em torno do centro de massa do Sistema Solar. O movimento é muito complicado por causa das perturbações gravitacionais dos oito planetas e também outros corpos.





Mesmo depois da Idade Média, aparecem gravuras com o modelo geocêntrico, apesar de já ter sido demonstrada a sua falsidade.


Mas a imagem mais famosa foi publicada por Camille Flamarion, representando a curiosidade humana para saber o que haverá para lá do visível, das "estrelas fixas".



TELESCÓPIO
O grande impulso para a astronomia veio do Telescópio, que tem uma longa história atrás.
Desde a antiguidade povos como os egípcios, gregos e romanos conheciam a arte de talhar e polir cristais de rochas e usam essas primeiras lupas primitivas como objectos decorativos. Não se sabe ao certo quando as lentes foram inventadas. A notícia mais antiga aparece, em 721 aC, na referência a um cristal de rocha recortado com propriedades de ampliação. Não encontrei a localização de tal inscrição.




Os chineses já dominavam a arte de produzir lentes simples a partir de cristais de quartzo e outros materiais, com armações de diferentes materiais, como o carey, retirado das escamas da tartaruga . Alguns destes "óculos" tinham finalidades ornamentais e medicinais. Confúcio (500 aC) diz ter aliviado a visão de um sapateiro com o uso de lentes. Marco Polo, na visita à China, em 1270, encontrou pessoas que usavam aqueles ornamentos. O imperador Nero usava pedras preciosas para ver melhor os actores em palco.

Os primeiros óculos foram fabricados por Salvino D'Armato em 1285, conforme se lê na sua inscrição funerária: "Aqui jaz Salvino D'Armato de Amati de Florença. Inventor dos Óculos. Deus perdoe os seus pecados. A. D. 1317". Há, no entanto, quem atribua a sua invenção ao monge Alejandro Spina, que, nos meados do século XIII, divulgou o segredo e a construção da fabricação de lentes correctivas.
Depois da sua invenção, os óculos rapidamente se popularizam e logo começaram as primeiras experiências de combinação de lentes para aplicação em instrumentos de ampliação de imagens, resultando na criação do primeiro microscópio composto (duas ou mais lentes).
Nos finais do século XVI, os italianos descobriram novos métodos de produção de vidro, o que permitiu a associação de lentes. Mas foi o holandês Hans Lippershey que, em 1608, patenteou a descoberta do telescópio, quando, ao olhar através de duas lentes, viu a torre da Igreja ampliada. Porque usava lentes, tratava-se de um telescópio refractor. Diz-se que fez a descoberta quando ensinava os miúdos a brincar com duas lentes.




Parece que o primeiro  utilizador do telescópio em astronomia poderá ter sido Thomas Harriot (1560 - 1621): as suas observações datam de Agosto de 1609. Foi também o primeiro tentar mapear a Lua (mapa que ficou inédito até 1965) e a observar manchas solares, em Dezembro de 1610.



Harriot: Mapa da Lua               e           Manchas Solares


Mas foi J. Fabricius quem primeiro publicou as suas observações, ainda em 1611, no seu livro De maculis in Sole observatis, livro, que permaneceu desconhecido por algum tempo. Entretanto Galileu deu a conhecer as suas observações em Roma.



Manchas solares descritas por Fabricius


Mas o conhecimento das manchas solares já tinha uma longa história. A referência mais antiga foi feita pelo chinês Gan De em 364 aC. A primeira menção na literatura ocidental é de 17.Março.807 dC e deve-se ao monge beneditino Adelmus, que observou uma mancha tão grande que foi visivel durante oito dias. Uma outra foi visível por altura da morte de Carlos Magno (28.Janeiro.814). A actividade das manchas solares, em 1129, foi registada por John of Worcester.


Descrição da actividade solar em 1129


De qualquer modo,é com Galileu que o telescópio se divulgou e se tornou um instrumento cada vez mais indispensável à astronomia. 


Luneta de Galileu

É formada por duas lentes: a objectiva, biconvexa de grande distância focal, e a ocular, divergente de pequena distância focal e pequeno diâmetro, colocadas de modo a que os Focos coincidissem no mesmo ponto.
Os raios luminosos entram na objectiva, colocada na frente do tubo, e convergem até ao Foco. Mas antes passam pela ocular que dá uma imagem não invertida e maior que o objecto.


        Formato      e                  Construção da Imagem


Aperfeiçoando as lentes conseguiu uma ampliação de 20 vezes. Falarei no próximo post das suas “descobertas”.


Luneta de Kepler
Em 1611, Kepler introduziu uma alteração: é formada também por duas lentes, mas ambas convergentes.
A trajectória dos dos raios luminosos é semelhante à que acontece na luneta de Galileu, mas os raios convergem antes de atingir a ocular, que fornece uma imagem maior e invertida do astro observado.


Formato        e                Construção da Imagem


Portanto, contrariamente à de Galileu dá uma imagem invertida pelo que se usa apenas em observações astronómicas.
As lentes, no entanto, apresentam um problema chamado aberração cromática (ver mais abaixo). Para limitar este problema, as lentes tinham de ter um pequeno grau de curvatura, ou seja, uma distância focal muito grande, o que obrigava a telescópios muito longos. O maior talvez tenha sido o de Hevelius, com 42 m de comprimento, enquanto o de Galileu tinha entre 1,5 a 2 m.



  Com este telescópio, Hevelius fez um mapa pormenorizado da Lua com 286 crateras, montanhas, “mares”.





Telescópio de Reflexão

Newton (1643 -1727), pensando que nenhuma lente poderia resolver o problema da aberração cromática, inventou o telescópio de reflexão, substituindo as lentes por espelhos, já que espelho reflecte todas as cores de modo igual e, portanto, não sofrendo de aberração cromática.
No seu telescópio, a imagem, focada pelo espelho primário esférico ou parabólico, é desviada por um espelho secundário (plano) colocado a 45º, para observação através da ocular, perpendicular ao tubo do telescópio.


Formato          e             Composição da Imagem


Em 1672, o francês Cassegrain introduziu uma alteração, que vigorou até hoje: um espelho secundário, convexo, reflecte a luz que lhe incide, para trás do espelho principal, passando por um orifício existente no seu centro, formando a imagem atrás do espelho principal.


 Formato     e                 Composição da Imagem

Solução para a Aberração Cromática

O problema da aberração cromática foi resolvido por John Dollond (1706 - 1761), oculista inglês, por meio de uma combinação adequada de lentes.
Este fenómeno deve-se ao facto de a luz ser formada por várias cores que. ao passarem pelo bordo de uma lente, são desviadas de modo diferente. Dollond resolveu acoplar duas lentes, com coeficientes de refracção diferentes (uma lente convergente de cristal leve e outra lente divergente de cristal pesado) para compensar a aberração cromática efectuada por uma só lente, inventando a  lente acromática, hoje usada nas objectivas das máquinas fotográficas e cinematográficas, microscópios, telescópios.





Para trabalhos de elevada qualidade, a correcção acromática é feita com lentes compostas de três ou mais tipos de vidro, constituindo as objectivas chamadas apocromáticas, popularmente conhecidas como "processadas".



TELESCÓPIOS DO FUTURO
E agora uma brincadeira. Dois telescópios previstos para estarem a funcionar lá para futuro a médio prazo.
O Hipertelescópio SKA (Square Kilometre Array) vai estender-se por um círculo de 3000 km de diâmetro (da Austrália à África do Sul). Será formado por 3000 antenas parabólicas e 250 conjuntos de antenas compactas, com a forma de cinco braços espiralados. Quando estiver a funcionar em pleno, lá para o ano 2020, o volume de dados recolhidos será 200 vezes maior que o actual volume de dados mensal da Internet.
A área total de recolha de dados terá aproximadamente 1 km2, daí o seu nome “square kilometer”. Será 50 vezes mais sensível e terá uma velocidade de análise (survey) de dados dez mil vezes superior aos melhores telescópios actuais.
O seu objectivo é responder a perguntas fundamentais sobre o Universo: como se formaram as primeiras estrelas e galáxias pouco depois do Big Bang, como evoluíram desde então, qual o papel do magnetismo no Universo, qual a natureza da gravidade. E ainda vai à procura de vida extraterrestre.



Fonte: Expresso de 15.Maio.2010

O Hipertelescópio EEI (Exo Earth Imaginer) será constituído por por 10 000 espelhos de 3 m que formarão uma esfera no espaço com 400 km de diâmetro, no centro da qual estará um satélite recheado de aparelhos que sintetizarão as imagens e os dados e depois de processados os enviarão para a Terra. Terá uma ampliação de cem milhões de vezes, o que lhe permitirá identificar sobre os exoplanetas (planetas de outros sistemas solares) formações atmosféricas, continentes, cadeias montanhosas, variações sazonais, etc..

Fonte: Science et Vie Hors Série nº 239 (Junho.2007), p. 77